domingo, 29 de dezembro de 2013

OS AGITADÍSSIMOS DOMINGOS DA USINA

Eramos felizes e... sabíamos!... - Zeitgeist - Na escola de Jesus - O “órgão vital do povoado” - A venda da encruzilhada - Isosmia caipira - Crianças: mil diversões e traquinagens... - Aspirantes e titulares - O linguajar nada recomendável no campo de futebol - Trilha sonora dominical - Sentir-se “endomingado” - Sinal dos tempos

“Existirá ainda aquela espécie de alegria?
Alegres de tudo, sem nem saber por quê?”
(Os Anos 40. Raquel Jardim, 1973)

"Ali, sentado sobre toscos bancos
À porta da espaçosa hospedaria,
Os mais velhos praticam gravemente;
Mais longe, alegre chusma de crianças
Retorcia-se na relva aveludada,
Tudo descansa, folga e se diverte
No dia memorável do domingo"
(Anchieta ou O Evangelho nas Selvas, 
Canto II-I. Fagundes Varella. 1875)

“Eu me lembro com saudade
O tempo que passou
O tempo passa tão depressa
Mas em mim deixou
Jovens tardes de domingo
Tantas alegrias
Velhos tempos
Belos dias
(...) Hoje os meus domingos
São doces recordações”
(Jovens Tardes de
Domingo. Roberto Carlos, 1978)


Vou te conduzir pelo tempo mais que pelo espaço, te levando em busca de um lugar existente ainda, um recanto cujo nome não mudou na boca do povo, mas um lugar hoje irreconhecível em suas atividades, que não mais existem, que a perspectiva se alterou — a Usina é, sacramentada e (quiçá) irreversivelmente, como diria o Rego, “fogo morto”, mas ainda vive na saudade e na recordação de muitos, como este que vos escreve.



Clube Recreativo Usina Palmeiras, 1998
No período compreendido entre as décadas de 1950 e 80, algumas áreas rurais de Araras ganhavam uma movimentação intensa e especial aos finais de semana, e, dentre elas, uma das que se destacavam como uma espécie meca dominical da zona norte rural de Araras, era a Usina Palmeiras. A um tempo, a Usina se resumia em duas  coisas: um bairro rural e um estado de espírito, uma indústria e uma forma de liberdade. 

Naquele epicentro convergente que eram seu clube, o campo de futebol, a venda e seus rios, as pessoas pareciam viver numa alegria contagiante de animais quando filhotes, quando tudo na vida é alegria, diversão e o mínimo de preocupações. 

Aqueles que aí conviveram ou visitaram nestes tempos felizes e deles tem saudades, com certeza retiveram em si boas e inapagáveis lembranças. 

A seguir, procurarei mostrar um pouco do clima dominical desse lugar e o espírito dessa gente e dos forasteiros que a frequentavam. Vamos, então, permitir que nossos olhos se voltem um pouco para esses tempos de nossa juventude e passemos, nas asas da imaginação, uma manhã e uma tarde de domingo neste abençoado lugar.

Ah, amigos, pobres daqueles que não puderam desfrutar de um domingo ali, que não souberam das grandeza e maravilhas de um mundo quase insuspeitado. E eu bem sei, que, como o tal personagem maluco da Turma da Mônica, o Louco — aquele que subvertia a inércia de uma imagem congelada, ou seja, era capaz de entrar na paisagem de um quadro dependurado na parede e viver uma aventura ali —, você vai ficar maluco também querendo entrar dentro das fotos e voltar no tempo, mas contenha-se, amigo, que ainda não inventaram a tal máquina do tempo!....


Éramos felizes e... sabíamos!...

No bocha, os amigos Edi Leite, 
Binão e Fio Tesche, em 1974
Naqueles bons tempos, a Usina Palmeiras era um desses locais da zona rural onde a alegria fazia morada aos finais de semana – seus domingos tinham a magnificência típica de festas rurais. E, sem dúvida, ela era o principal polo atrativo da citada região devido à intensa agitação que ali se dava, o que a tornava, no mínimo, o lugar mais movimentado da zona norte rural da cidade. O que era um dia desses neste abençoado lugar e os prazeres que ele proporcionava, mal se pode avaliar.

O Militão, o
violeiro da Usina
Finda uma semana de atividades relacionadas à Usina, nada mais justo que um merecido descanso, um bom divertimento. Neste quesito, a Usina sempre esteve bem servida, seja em épocas passadas, sejas nos tempos antes do encerramento de suas atividades, que era, sem dúvida uma infraestrutura completa e bem acabada — um trabalho caprichado de anos a fio de sucessivas administrações.

Opções de laser não faltavam e estendiam-se abertamente a ambos os sexos, seja para adultos e velhos, seja para jovens e crianças. E não eram só os usineiros que podiam desfrutar de tudo o que ela oferecia, pois à Usina acorriam outros segmentos da comunidade, como trabalhadores ligados à outras atividades agrícolas que não a da cana-de-açúcar, e mesmo gente da própria cidade, como se verá. Tinha-se a impressão que toda a Usina estava organizada de modo a atrair gente de todas as redondezas para ali, constituindo assim um elo com outras moradas da região, como se todos fossem interdependentes, lembrando que, acima de tudo, a Usina era uma localidade autônoma e autossuficiente.


 A Usina, agregando suas três colônias mais as colônias da fazenda Palmeiras, talvez não chegasse à um milhar de almas, mas aos domingos, quando todos os citados moradores de sítios e fazendas periféricas aí afluíam, isto, somado aos visitantes da zona urbana de Araras e outras cidades vizinhas, no mínimo esta cota duplicava.


Zeitgeist

Os irmãos Ricardo e Astorzinho 
Baggio, Renato Borgato e Neto
 Baggio, por volta de 1972
Um dia de domingo na Usina era um estado de espírito, um acontecimento – o dia tinha “ares de festa”, e digo, com toda a segurança, que era uma espécie do chamado zeitgeist o espírito de época, o clima de um advento social de um período marcante que, infelizmente, se extinguiu. Era o dia em que por toda a extensão da Usina enxameava uma miscelânea humana incrível, tanto o é que penso que nunca vi um retrato vivo e tão fiel do Brasil rural quanto os domingos da Usina, aquela agitação toda, aquela gente hospitaleira, aquela contagiante tonalidade ambiente que parece que as próprias manhã e a tarde naturalmente trajavam-se de domingo! 

Durante todo o dia era um ir e vir de pessoas – um pulular incrível daquela “gentarada” que ali se reunia – uma multidão heterogênea diversificada, que 
mal o Sol se levantava, surgia de todas as redondezas, vinda de sítios, bairros rurais, colônias e fazendas, bem como das cidades vizinhas, todas radiantes e em constante palpitação. 


Judite, Rosangela Borgato,
Wenilton e Rosinha, 1976


Neste dia, por ali podia se deparar com cortadores de cana, colhedores de café e algodão, lavradores, horticultores, oleiros, boiadeiros, feitores, cavaleiros, estivadores, caminhoneiros, aposentados, religiosos, músicos e visitantes de todas as idades. 

Com o passar das horas, a agitação corria solta por todos os lugares – em todos os recantos da colônia de cima e de baixo, do clube, do campo de futebol e da venda do Vichietini se encontravam compadres e comadres, trabalhadores, visitantes e parentes – numa palavra: efervescência, que o dia vibrava de inquietação no vaivém e no vozerio indistinto da multidão. Os amigos chegando, o entusiasmo aumentava e o volume da voz e das risadas faziam crescer ainda mais os gestos das mãos que se estendiam, num mar de beijos, apertos de mãos e abraços de quem não se via há tempos.


Os catequistas e as crianças

Chegada do ônibus da Usina ao Clube, trazendo as madres e catequistas. 
Eu estou em pé acenando sobre o para-choque do ônibus. Por volta de 1975.
Por volta das oito horas, com o ônibus trazendo as irmãs do colégio INSA, os catequistas, músicos e às vezes um padre, havia outro incremento na agitação. Com a chegada dessa comitiva, a atenção da criançada radiante se voltava para ela – era quando se apinhavam à sua volta em sua parada em frente ao clube, entrando todas em verdadeiro alvoroço, falando aos jatos, parecendo um enorme formigueiro assanhado em processo de mudança de ninho – era, como diria meu irmão Wagner, um “tropé”, palavra que ouvi pela primeira vez vinda da boca dele, e que o Aurélio registra como tropel. Havia outra que ele costumava dizer: “forfé”, uma acaipirada no termo francês forfait...Na Usina, este termo também se aplicava, mas vamos reserva-lo para as partidas de futebol... 

Era sempre assim: mal abria-se a porta do ônibus, levas de crianças “inchiridas” vinham dar boas-vindas e ver as novidades – mais por aquele motivo que este, naturalmente... Jovens e adultos desciam do ônibus, todos trazendo caixas e pacotes que despertavam num grau máximo a inata curiosidade infantil, e, não raro, mesmo sabendo quem eram e o que encontrariam, pareciam agir com uma curiosidade sempre nova. Uma criança inventava de remexer num pacote qualquer, e lá vinha um “Tira a mão cheia de dedos daí, menino!”... Um outro menino chegava atrasado, e vinha correndo feito louco pelo passeio, é já ouvia de um catequista: “O que que é, menino, parece que vai tirar o pai da forca!”... E o menino, esboçando um sorriso amarelo, retrucava: “- Sartei de banda!”...


A Madre Maria 
Domingas Mazarello
A irmã Margarida 
Depois, de braços e mãos dadas com as madres e catequistas, os grupos se dirigiam ora para o clube ora para a casa da colônia que servia de sala de aula. E os meninos, prestativos que eram, ajudavam também a carregar os pacotes, mas a disputa mesmo era para ver quem ia carregar a guitarra do Joaquim Gouveia, objeto de desejo que os meninos ficavam namorando o tempo todo. Dirigia este grupo de catequistas uma madre-superiora, a irmã Margarida, irmã esta que era muito sizuda no tratamento das crianças. Outra irmã de que não me esqueci, era a madre Maria Domingas Mazarello, uma pessoa amabilíssima cuja voz jamais me esqueci.


Em pé, o catequista Laerte Borella, no clube da Usina.  A menina morena à sua frente 
é Liliane Maria, filha do Amador Consoni, o proprietário  da venda tocada  pelo 
Vichietini. Atrás do Laerte, eu e o Zico. A foto foi feita durante a festa de entrega
de presentes na nossa Primeira Comunhão, ocorrida em dezembro de 1971.
Que beleza que era quilo tudo: o cenário em frente a venda, a escola e o clube - vistos dos altos do campo de futebol, tudo brilhava na doçura do sol matinal – parecia que um sopro intenso de vida, misto de alegria, liberdade e entusiasmo contagiava à todos. Parece que ali, todos os elementos positivos para a realização de um dia feliz estavam reunidos. E as coisas corriam todas nos seus conformes, tudo regulando feito um relógio suíço, sem problemas ou altercações – com exceção do buliçoso ambiente campo de futebol, como se verá... Talvez alguém – naquela época eu não –, já desconfiasse que aquilo era um modelo perfeito de como usufruir a vida em meio à simplicidade, pois toda aquela camaradagem, aquela cooperação pacífica e espírito de comunidade enchiam os olhos – tudo cativava, pois tudo era resultado de uma organizada mente coletiva. E todas estas pessoas estavam envolvidas uma com as outras em laço estreitos, diga-se, uma perfeita unificação de cabeças, para usar um termo bem setentista. Todo mundo tinha o nome de todos em suas mentes, pois todos se conheciam e se chamavam pelos nomes. 

Não há muito o que falar sobre os preceitos religiosos e morais passados às crianças, mas diziam irmãs e catequistas que se tivéssemos que ter valor, não podíamos abrir mão da religião, através da qual aprenderíamos noções de compaixão, caridade, bondade, benevolência, misericórdia, amor ao próximo, e até mesmo, devido ao momento pelo qual o país se imergia, noções de civismo.

Enfim, parodiando um pensamento do Otto Lara Resende, diria que um domingo sem catecismo na Usina não era um domingo...



A venda do Vichietini – o “orgão vital do povoado”

A venda do Vichietini, vista através de minha luneta, 
estando eu nos altos do Restilo. Janeiro de 1975
A venda do João Vichietin era um caso à parte, um lugar onde um outro tipo de gente se acotovelava: a maioria “avessa” ao catecismo, mas, naturalmente, não à bebida, ao bocha, ao jogo de baralho, e, acima de tudo, ao futebol... Digo isto, pois, invariavelmente,  nada seduzia mais que os jogos de futebol, que eram o suprassumo dominical da Usina. Mas no campo de futebol, porém, haviam outras altercações, outras alegrias e indignações: assovios, gritos, vaias, gargalhadas e o pior, as inevitáveis brigas envolvendo jogadores e também torcedores.

Durante todo o tempo, havia nela um burburinho contínuo enquanto não fechassem suas portas, pois era um movimento comercial constante, de manhã até a noitinha, com  pessoas entrando e saindo - um fluxo e refluxo que parecia não ter fim. 

Dezenas e dezenas de clientes durante todo o dia se acotovelavam em seu interior na rotina das compras, e mais incrementado era esse fluxo se fosse o primeiro domingo após o pagamento. A impressão que se tinha era que tudo o que um cliente procurasse nela era encontrado. Ai, se podia ouvir, dentre outras chamadas, coisas assim, e sempre com bom humor:




- Zé-do-Pito, olha seu rolo de fumo!

- Lauro, me vê uma Nugget para eu dar um trato na botina!


- Ziiicooo, vê um sorvete italiano para mim!

- Vai querê que mói o café, seu Mirto?

- Vê um Galak branquinho que nem eu, seu Vichietini!...

- Ô, Tutti-Frutti, me veja um chiclete Tutti-Frutti para mim!...

- Desce quantas linguiça do varal, Malaquias?


- Sandália de corda ou chinelo Havaiana, Tuca?
- Se não tiver pirulito Kibon de chocolate, serve chupeta de caramelo, Isnaldo?
- Ih, seu Tesche, vou ficar devendo: essa Parquetina está ressecada!

- Acabou a goma arábica, Marcos! Vai ter que colar o papagaio com cola de trigo, mesmo!...

- Kent não, Paulinho! Pr’ocê só tem cigarrinho de chocolate!...


"Fio" Tesche e Renato Borgato, anos 70
Um gole pro santo seguido de rápido trago de cachaça, um estalo de língua e após uma sardelada no ar, lá ia o cliente satisfeito levando a sua “compra”– uns, com o produto numa cesta de bambu; outros, numa sacola de pano ou de papel, e a maioria em caixas de papelão ou embrulhos de papel manteiga ou manilha, que ainda não existiam as modernas sacolas plásticas ou “carrinhos de supermercado”.

No avançar da manhã, a animação crescia à medida que os bofes eram regados com tragos e mais tragos de aguardente, cerveja, vinho e outras bebidas. Na verdade, mal as portas se abriam, o pessoal principiava a beber, e mais ou menos por volta das 9 horas, fazia-se um círculo sobre a sombra da imensa figueira e ali tinha continuação a animada altercação. Em frente à venda, sob a sombra generosa da velha figueira, no banco de madeira ou sentados nos capôs dos carros, entre goles de bebida e refrigerantes, as conversam corriam soltas e comentários gerais enchiam o ar. 

Rolava solto o baralho, a queda de braço, o jogo de palitinho e outros entretenimentos roceiros. Era quando recordações de velhas passagens vinham à tona e novidades eram colocadas em dia – lamentavam-se as mortes recentes, os incidentes do cotidiano, o trabalho na lavoura, o time que perdera, a política... Se era à tarde, pequenos rádios transmitiam as partidas de futebol dos grandes times; toca-fitas ligados alto

Em frente à venda, o Ranato Borgato 
e, ao fundo, o  Lauro Antonio; anos 70
rivalizavam rolando músicas brega ou caipira, e, mais frequentemente, canções internacionais. 

De repente, alguém da colônia da fazenda Palmeiras surgia - geralmente era o técnico Renato Borgato - e, em meio à balburdia, e alardeava uma alvissareira novidade: “– Moçada, hoje à noite tem rasta-pé na fazenda!” Instantaneamente, exclamações de alegria enchiam os ares, e os jovens mudavam seus planos, deixando de lado até mesmo a sessão de cinema no clube, embora os rasta-pés fossem mais comuns aos sábados.


A venda da encruzilhada!...

"A estrada da fazenda da Baronesa de Arari, em 
Araras". Quadro do pintor Almeida Júnior, 1899.
Nesta encruzilhada onde se erguia a venda, num dia ensolarado de domingo, era olhar para as quatro direções das estradas que nela desembocavam, e vê-las quase sempre apinhadas de gente. Foi num dos lances desta estrada, a parte que vai para o lado norte subindo o morro e ladeando o campo de futebol, adiante das duas paineiras quando flete para a esquerda, que o célebre pintor caipira Almeida Jr. fez uma linda pintura no distante 1889. O quadro, do qual não se sabe o paradeiro, chama-se "A estrada da fazenda da Baronesa de Arari, em Araras"

E em se falando de pinturas, aquela parte da usina aos domingos mais parecia um cenário saído de uma pintura naif — cenário de poesia pura, onde, dentre outras coisas, numa confusão feliz de planos e cores, se fundiam efusivamente crianças, animais, pássaros, borboletas, flores, árvores e música. A Usina vestia sua roupa de domingo na mais pura tradição rural brasileira, e creio que nenhuma impressão aldeã mais fiel poderia ser encontrada na cidade.

Parodiando o extinto jornalista Daniel Piza, se a Brasília arquitetônica é a inveja das outras cidades, a Usina Palmeiras era a inveja das outras usinas: combinava como nenhuma as grandes perspectivas e os pequenos achados, o exterior e o interior, a ordem e o agito. Numa palavra: a Usina Palmeiras era a capital rural da cidade.

Voltando à venda, imagino que por mais que os catequistas e irmãs lutassem para que a prática do Catecismo fosse a menina dos olhos dos domingos usineiros, a venda do Vichietini, para usar uma expressão do Thoureau, era o “órgão vital do povoado!




Isosmia caipira

Esta velha venda, tão diferente da que a sucedeu em meados da década de 1980, era bem diferente, e diferente devido à um quesito muito sutil: tinha ela um cheiro especial, que a baixa circulação de ar tornava mais intenso e característico, um cheiro que, sem que eu me desse conta, me atraía e me “embriagava” – era uma espécie de perfume que, hoje, os modernos supermercados, mesmo com toda sua diversidade de aromas não têm igual: era o cheiro rústico, “humilde” e nostálgico das coisas roceiras de outrora, em contrapartida ao moderno odor sintético e sensaborão das grandes redes de supermercado...

Já comentei este fato em outro capítulo, mas vale a pena repetir o rol desses extasiantes aromas – aquilo que chamei de isosmia, ou seja, a confusão de cheiros orgânicos diversos, e, no caso, um blend de pó de café, pimenta-do-reino moída, mortadela, tubaína, lingüiça de varal, suco de limão vertido em caipirinha e, naturalmente, cachaça jogada pro santo... 
Alpargata Roda

Mas havia outros cheiros muitos bons lá na Usina: o da florada dos laranjais de Tramontelli no mês de agosto; o dos canaviais nos meses de inverno, um aroma frio sentido por entre os aceiros; as canas esmagadas na moenda, o melaço, o álcool da destilaria e o açúcar quentinho sendo ensacado; o da terra vermelha revolvida nas terraplanagens; o dos lírios brancos nos brejais; o "cheiro de chuva" (na verdade, um fungo 
Cola tipo goma arábica.
chamado Geosmin); o dos estrumes de vaca nos pastos, estábulos; quintais de terra, galinheiros e chiqueiros; o das achas chiando nos fogões de lenha; o do anil nos quaradouros; as queimadas nos canaviais; mato cortado, 
capim-gordura; o éter nos vestiários de futebol.., e até mesmo outros não tão bons, mas igualmente marcantes, como o dos nateiros, ou seja, o do barro dos rios quando eram esvaziados para tarrafarem peixes, umcheiro peculiar, espécie de maresia paludícula, e, para finalizar, o, com minha exceção, unânime cheiro nauseabundo do vinhoto, que não comentarei aqui, pois merece um capítulo a parte, por mais estranho que isso pareça.

Enfim, amigos, era tanto cheiro bom num só lugar que o fato renderia um inspirado livro como o "Cantares Populares" do Garcia Lorca, livro que tem poesias que surgiram de lembranças de sua infância, inspiradas pelos cheiros e formas da cidade de Granada onde nascera.  

Crianças: mil diversões e traquinagens...

Edvaldo Godoy, irmãs Eunice e Eliza Mathias,  Edna 
de Godoy, e "Tuca" Petrucci, por volta de 1974
A chegada do ônibus vindo da cidade tinha como efeito direto um verdadeiro reboliço entre a criançada, o que implicava numa verdadeira injeção de ânimo na manhã domingueira. E para criança, quanto maior é o número de pessoas, as novidades e as expectativas, melhor. 

E era nelas que estava a verdadeira poesia do lugar: desde há muito desperta, corriam em grupos com aquela espontaneidade que se nota nos cães brincalhões quando veem se aproximar uma pessoa conhecida.



Crianças antes das aulas de catecismo, em
frente ao Grupo, meados da década de 1960
Gente chegando, indo e vindo, entrando e saindo, subindo ou descendo, falando ou gritando – tudo era motivo para atração, curiosidade e descobertas entre os baixinhos. Aquele tumulto sadio, aquele vozerio desbragado, as sonoras gargalhadas, o grito alegre da criançada, a descompostura dos pais nos filhos desordeiros, os choros de nenéns – tudo entretinha o espírito aberto e desocupado.

O futebol infantil, no qual eu jogava, depois do catecismo era um dos entretenimentos da molecada. Os que ficavam no clube, se divertiam jogando ping-pong, ou ouvindo o já citado guitarrista Joaquim Gouveia desfilar seu repertório de músicas da Jovem Guarda. 

Um menino colocava a guitarra no colo, e se sentia um artista; outro, invejoso, ficava olhando com olhos cheios de cobiça, querendo tomá-la para si, e, não demorava muito, ouvia: “Nunca viu, cara de pavio?!”... Lá fora, meninos batiam figurinha sentados na mureta da varanda, enquanto as meninas se entretinham com brincadeiras folclóricas tipicamente femininas, como, p. ex., jogar peteca ou brincar de bate-bate.



Crianças e adultos posam para uma foto. À esqu., o Ivo Caetano

Nestas horas de liberdade, todos os recantos eram tomados de assalto por uma legião de crianças, que não paravam um minuto sequer em suas estripulias – passeavam de velocípedes, patinetes, monaretas e velotrolls; brincavam com cachorros vadios; pululavam por todos 
Iô-iô de celafane e serragem.
os recantos, escalando árvores, subindo em muros, em carroçarias de caminhões, filando uma rabeira de bicicleta, caçando cigarras etc.


E domingo à tarde era dia em que da cidade vinham sorveteiros, pipoqueiros, vendedores algodão doce, cartuchos de amendoim, pirulitos psicodélico e também depequenos brinquedos, como os velhos e extintos iô-iôs de papel celofane recheados com serragem,  depresos por um fino elástico. Pela tarde afora, as crianças eram as donas das ruas – as ruas de lazer –, e todas brincavam despreocupadas num clima de harmonia, despreocupação e felicidade. Assim, massas de crianças turbilhonavam pelas ruas largas e  movendo-se em todas as direções. 


Alunos do catecismo, em dia de 1ª Comunhão, 1983.
Àquela idade, já exercitávamos uma certa malandragem. Lembro-me de uma delas: chegávamos em dois meninos num carrinho de pipoca, e enquanto distraíamos o vendedor, um outro menino chegava sorrateiramente por detrás do pipoqueiro, e furtava uns  chicletes que ele também vendia... E, sem comprar nada, despedíamos do pipoqueiro e íamos atrás do menino dividir os chicletes... 

Me recordo também dos pirulitos puxa-puxa de açúcar queimado, em formato de cone, que eram envolvidos em papel-manteiga, vendidos encaixados nos furinhos de uma prancha de madeira? O vendedor andava com uma tábua que prendia junto ao pescoço por uma cordinha, e pela estrada ele gritava seu pregão: "– Oooolha o piruliiiito!" O legal era quando o sol estava forte e os pirulitos começavam a derreter, e daí dava um baita trabalho para retirar o papel, e a gente chupava o pirulito com papel e tudo, que grudava nos dentes e as mãos ficavam uma lambuzeira só!..




Aspirantes e titulares

Dentre as crianças reconhecidas na foto, 
há o goleiro Sérgio Petruz, seguido do 
"Zulega" Prata , o Zé Roberto,?, o 
Neguinho Tifete, ?,  e o Toninho Prata.
Tifete, o malabarista
Era aquele tumulto sadio, aquele vozerio desbragado, as sonoras gargalhadas, o grito alegre das crianças, a descompostura dos pais nos filhos desordeiros, os choros de nenéns – tudo divertia o espírito aberto e desocupado, mas nada seduzia, porém, como os jogos de futebol, que eram o supra-sumo dominical da Usina! 

Aos domingos havia três partidas de futebol: de manhã, o jogo da molecada - o infantil da Usina (foto) -, que era sempre o time da Usina Palmeiras contra o da fazenda Palmeiras, e, às vezes, o do time da Usina contra o de outras fazendas da cidade, o que não era muito comum. 




Em pé: "Waltinho" Daltro, Manuel "Tomé" José Santos, 
Aparecido  "Lico", Luiz "Leiteiro" Dias, João Barboza, Walmir 
Antonio. Agachados:  Lauro Antonio, Renato Borgato, 
Wagner Daltro, João "Motorista", "Doni" Rocha, Antonio Barboza
À tarde, eram dois jogos, mas o "jogo dos adultos", com jogadores de idade à partir dos 16 anos. Eram os times aspirante e titular, sendo que este último eram os dos jogadores mais velhos e experientes. 

Ambos os times eram formados por jogadores da Usina, das fazenda Palmeiras e Montevidéu, de sítios vizinhos, de Araras e de outras cidades como Leme. Os forasteiros adoravam jogar para o time da Usina, e conseguir uma vaga era algo muito concorrido; por isto mesmo, ambos os times da Usina eram dois timaços, principalmente o titular, que dificilmente perdia para os visitantes. 


Nos intervalos das partidas, os torcedores desciam do campo e vinham tomar um trago ou beliscar um tira-gosto na citada venda do Vichietini, e assim como esta, o clube voltava também
Em pé: Neto Baggio, Walmir Antonio, ?, ?, Pedro Antonio, 
Irineu "Neu" Antonio, "Carlão" Borgato, Renato Borgato. 
Agachados: "Galo", ?, ?, Salvador "Vadô" Adão, ?,  Luiz 
Roberto "Mirão" Antonio, ?. Ano de 1974.
a se congestionar. Às vezes, um barzinho rústico era improvisado entre as figueiras ao lado do centro do campo, e ali eram vendidas bebidas para maiores, bebidas “sem gelo”, ou seja, pinga, vermutes, vinhos secos e licorosos, batidas, e, de quando em quando, um menino não resistia e pedia ao pai para provar uma batida de coco ou amendoim...
 
Retomava a partida e lá do alto do campo, entre apitos e estouros de chutes vinham a assuada entusiasmada das torcidas. Brigas e discussões aconteciam as vezes, mas, sempre que possível, eram rapidamente eram contidos pela turma do deixa disso. Um chute mais forte e a bola atravessava a muralha de altos eucaliptos – em instantes, um menino afobado descia correndo do campo para buscar a pelota, que às vezes ia cair lá em baixo em frente o passeio da escola, ou ao lado do campo, abaixo das imensas figueiras onde havia uma macega cerrada de capim colonião



O linguajar nada recomendável no campo de futebol!!!...

O campo de futebol, "para variar", era o lugar onde as amabilidades e cortesias típicas dos usineiros nem sempre faziam morada – a paixão pelo esporte era a mesma que em todos os lugares do planeta: perdia-se a cabeça por qualquer "motivo besta" mesmo! Mas, guardemos estas histórias mais “pesadas” para outra ocasião mais propícia, e vamos mostrar aqui uma pequena amostra do que se ouvia da boca dos torcedores durante as partidas. O bom humor estava sempre presente, e ria-se muito nestes momentos. Notar que várias palavras e expressões da época, dentre as mais de 300 que compilei, a maioria extintas, foram usadas nos exemplos.

Ao início do jogo, as coisas se mostravam positivas:

Na foto, o Waltinho em  23-3-1975.
- O que esse Doni está jogando, não está no gibi!

- Olha o Mirão: está fazendo o maior regaço!

- Aposto e ganho que o Fio vai fazer esse gol!

- Olha o gol do Wagner: puta cara peludo!

- Esse Vadô está abafando mesmo!

- Nossa, o Binão: que baita trupicão!...

- O Wartinho tá parecendo o Leão do Palmeiras: é cada defesa!


O massagista Galo, e os jogadores Macaia e Leiteiro, 1974
Notar na caixa de medicamentos do Galo, a Cruz Pátea,  
erroneamente chamada de Cruz de Malta, que, curiosamente, 
era símbolo do time do Vasco da Gama, mas não o da Usina... 

No desenrolar dos jogo, os ânimos se exaltavam:

- Vamo cascá o fumo nesse beque perna-de-pau, Caetano!

- Mete bronca nele, juiz!

- Ih, o Carlão caiu de maduro!

- Passa a bola, Macaia, seu marreco!

- Expulsa esse espeloteado, Gustinho!

- Faz um gol, que esse goleiro está dormindo de touca, Tomé!

- Esse juiz não apita nada, Garcia!

- Dá um chapéu nesse ranca-tôco, Lauro!

Uma partida em 1974


No segundo tempo, a coisa esquentava, e o pessoal baixava o nível, mesmo:


- Vai, vai: manda pastar, Renato!

- Chuta esta bola, Chupeta, seu molóide!

- Agora o Brazão cagou e sentou em cima!

- Vai, Walmir, pede prá cagar e sai de fininho!

- Nossa: que rebosteio na área!

- “Leiteiro: vai carregar latão de leite no jirau, que hoje ocê não tá jogando bosta nenhuma!...”

- Eu vou arrancar uma ripa desse alambrado, e vou dar com ela no meio da costa desse juiz!


Notem que, neste quesito, o pessoal era “desbocado” mesmo!...


Em momento de descontração, num intervalo de jogo, 
os amigos "Fio" Tesche, Oswaldo Tesche," Binão" Mathias, 
Toninho Prata, Sérgio Petruz e Weber Daltro, em 1975
E ao se aproximar o final do jogo, vinham as surpresas:

- Acaba logo com esta jóça de jogo, juiz!

- Esse ponta-esquerda safado vai sair daqui com um quente e dois fervendo!

- Urbano, eu corto o saco se nós não ganharmos desse timico!

- Mas esses perna-de-pau da Vila Candinha, Zé Marques, não vão ganhar da gente coisíssima nenhuma!

- Babau, Julieta: acabou o jogo e... perdemos!... 

.


Trilha sonora dominical

A Ilza e seu "radinho de 
pilha", meados dos anos 70
Conforme as horas passavam e o Sol mais alto ia , mais pessoas chegavam e o rumor crescia notavelmente, e chegava à tal ponto que a impressão que se tinha é que já não se podia mais destacar vozes dispersas, mas um só ruído compacto enchendo todo o lugar, lembrando-se que havia música rolando por todos os lados, seja do alto-falante do clube, dos rádios portáteis e toca-fitas dos automóveis.

Além disso, era um dia de trânsito intenso, onde se cruzavam carros, caminhões, motos, bicicletas, carroças e cavalos. Os ruídos eram contínuos: motores, buzinadas ocasionais, frenagens bruscas, um cantar de pneus nos pedregulhos da estrada, relinchos e estalar de relhos.


Em imagem atual, os irmãos Petruz que administravam 
o clube da Usina: José Carlos, Luiza, Ailton, Márcia.
Como se a venda ficasse numa das esquinas da encruzilhada de duas estradas, era ali que se dava a maior concentração de pessoas antes e depois do futebol. A estrada sentido Norte-Sul era a de trânsito mais intenso e por ela passavam os que se deslocavam entre Araras e as fazendas Montevidéu, São Bento e Santa Escolástica, Granja Paulista e inúmeros sítios das redondezas e além. No sentido Leste-Oeste, o trânsito era mais calmo, e por ela passavam sitiantes que moravam ora na fazenda Palmeiras, ora em Elihu Root  e a fazenda Santa Cruz, bem como os moradores de outros sítios ao longo da estrada.


Gutarra Célio
Já no clube, logo pela manhã, de quando em quando, soava a guitarra do já citado Joaquim Gouveia, que embalava as cantorias das aulas de catecismo. Sua guitarra era uma Célio, guitarra pequena, mas macia, de braço leve e confortável — foi o primeiro contato que tivemos com uma guitarra, e que tanto admirávamos, isto, ali elos idos de 1971. Era só ele surgir ali com ela e nós meninos afluíamos à sua volta só para vê-lo tocar, e, após, dar também uma “reinada” nela... Quantas vezes, colocando-a cuidadosamente no colo, arranhei as primeiras notas em suas cordas! Era ele quem, em sua DKW, trazia para a Usina a citada irmã Margarida, enquanto as outras vinham de ônibus.


Em frente ao "tanque do meio", o Valmir Caetano e sua mãe, 
Silvana Lima, Denise Mathiesen e Ivo Caetano, abril de 1974
Lá do alto-falante instalado na cumeeira do clube, vinha a música da velha vitrola, onde rolavam sucessos nacionais e internacionais da década passada bem como contemporâneos. O rei Roberto era unanimidade. Tocava também muita música francesa e italiana, que tanto sucesso fizeram nas décadas de 1960 e 70, além de trilhas sonoras de filmes, como os de far west. Vale dizer que muitos namoros se iniciaram nestes finais de semana, resultando em felizes e duradouros casamentos. 

Lembro que, em 1969, fora lançada no Brasil a canção “Je T'aime... Moi Non Plus”, cantada por Serge Gainsburg e Jane Birkin, uma canção erótica que se referia à relação entre Serge e a atriz Brigitte Bardot. A letra era de conteúdo picante, entremeada com gemidos de êxtase, culminando em um provável orgasmo no final da canção. Ela foi tocada por anos a fio nos alto-falantes do clube, e, curiosamente, ali nunca ninguém censurou a música, sequer as irmãs que davam aulas de catecismo aos domingos de manhã. Apesar disso, me recordo do comentário dos mais velhos sobre a “indecência” da música. O próprio Serge chegou a afirmar, após o disco ser condenado pelo Vaticano, que o papa se tornaria “o nosso melhor relações-públicas”...

Renato Borgato e criança,
se divertindo no "tanque de cima"


Noutros ambientes – ambientes aquáticos, diria –, lá em baixo, nos três tanques, o “do meio”, o “de baixo” e o “de cima”, muitos passavam a tarde a pescar peixes como tilápias, traíras, cascudos e lambaris, e, se fazia calor, outros se divertiam nadando em boias, ou na base de mergulhos e braçadas. À beira do “tanque de cima”, p. ex., também se reuniam as lavadeiras, e ali, entre uma lavagem e outra, tagarelavam à vontade, o que era um modo comum de entretenimento; e o mexerico, como não podia deixar de ser, era uma das principais formas de distração, destacando-se os acontecimentos escandalosos ou ridículos, de que a Usina não carecia, embora fossem muito raros.


Indiferente à tudo, se era época de safra, a Usina continuava em sua faina de moagem, num ranger constante das engrenagens do seu maquinário que trabalhava à todo vapor. 

Os menos aficcionados ao futebol, à bebida e à música, entretinham-se com o jogo de bocha atrás do clube. Daí também vinham ruídos que eram ouvidos em toda as redondezas – à curtos intervalos, ouvia-se a explosão das bolas de bocha de encontro ao pranchão de madeira no final da comprida quadra. Gritos e urros de alegria celebravam as vitórias. 


O bocha, na primeira metade da década de 1970. 
Identificados na foto: de camisa xadrez o "Marião" Oli-
vato, e com as mãos na cintura o Milton Pereira Coutinho

Vinha o final de tarde, e a debandada tinha início sutilmente, em sua lenta volta aos lares. Todos, sujos, suados e cansados, iam tratar de limpar o corpo, encher a barriga, e se tivessem disposição para sair e não se deixar levar pelas atrações dominicais da TV, assim o fariam, pois o domingo, pelo menos para o pessoal da Usina e fazendas da redondeza, ainda não havia terminado. 

Desnecessário dizer que não havia na Usina a “vaga melancolia que todo brasileiro sente no fim de tarde de domingo”, de que falava o Nelson Motta, mesmo porque saíamos felizes do campo de futebol; e mais à noite, haveria ainda mais uma concorrida sessão de cinema (ou um rastapé na fazenda); e, depois, para os mais madrugadores e dispostos, no banco da venda do Vichietini tinha início mais um animado sarau com o violeiro Militão que entretinha à todos cantando suas animadas músicas nordestinas: “Tudo em volta é só beleza/ Céu de abril e as matas em flor/ Mas assum preto...” E como era bom ouvir as músicas do Luís Gonzaga na voz e nas cordas do Militão! Fora isto, quando não queríamos ficar na Usina, havia a alternativa de irmos com a família para a cidade, onde ou íamos para a casa dos avós ou então curtir a noite na praça Barão, ouvir a banda e comer pipoca.


O palco do Clube Recreativo em 1998.


Sentir-se “endomingado”

A bela Tuca Petruz e sua prima
 Sonia Petruz, em 19-1-1975
Eis aí, amigo, uma pequena amostra do que era a Usina Palmeiras num dia assim: um domingo tinha ares e sabores autênticos de domingo: a alegria era outra, as cores, os cheiros, a luz do sol, o azul do céu, as noites, a música, as vozes e os risos, o clima no ar, a agitação das pessoas, o reencontro dos amigos num lugar comum, as relações comunitárias, os inúmeros entretenimentos. Os acontecimentos tinham uma amplitude imensa e davam força e energia para atravessar bem disposto a semana de trabalho que se iniciaria. 

Quem morou ali e hoje mora na cidade, vai dizer o mesmo: a cidade não é a mesma coisa, não é o mesmo agito, tampouco a mesma alegria – a cidade aos domingos é chata mesmo. 


Identificados: irmã Margarida do INSA,
Cláudio "Mineiro" e Giácomo Petruz, 1974.
Particularmente falando (e não são poucos que farão coro à mim), todo aquele mundo de diversidades que a Usina oferecia nas mais variadas áreas, todas aquelas coisas boas que nos acostumamos ao longo dos anos não se pode comparar com a vida que vivo hoje, porque a vida nesta cidade é de uma pobreza extrema, de uma chatice sem tamanho – o domingo em Araras, se comparado com o da Usina, deixa muito a desejar, aliás, nem é justo comparar!... 

Pesando na balança do tempo, constato que Usina e sua gente, aos domingos, constituía um quadro legitimamente brasileiro – a impressão desses alegres dias da infância, aquela doce atividade febril em que vivíamos ficaram para sempre no meu subconsciente, e gravada de tal modo, que prepondera sempre na lembrança caso eu esteja num insosso domingo na zona urbana da cidade. 


E, caro amigos, novamente me recordando desses agitadíssimos domingos desta saudosa terra, tão diferentes desta pasmaceira da cidade que é a Araras, me vem à mente a famosa frase do poeta: “Ali, aos domingos, nos sentíamos endomingados.” Cabe perguntar: existirá ainda, em algum lugar de Araras, aquela espécie de alegria?


Sinal dos tempos

Belíssima tomada panorâmica da Usina, no distante ano de 1972, antes do calçamento do 
pátio, numa tarde calma de entressafra. Foto cedida gentilmente pelo amigo Oswaldo Tesche.
Por volta do início da década de 1990 as coisas mudariam radicalmente: as grandes fazendas, com a violência crescente no campo, começaram a cercar suas sedes, no que os livres acessos de antes tiveram um ponto final. 

Atualmente, para frequentar estas fazendas, só mesmo com autorização prévia dos proprietários, isto, quando eles permitem as visitas. 


As usinas, por sua vez, demoliram suas próprias colônias e passaram a pressionar os pequenos fazendeiros e sitiantes, isolando-os, e a saída para estes era vender tudo e ir embora para a cidade. Velhas fazendas também seriam compradas pelas usinas e depois demolidas para dar lugar à novos canaviais. 



Foto com câmera Kapsa, com exposição de tempo de 3 minutos, 
mostrando o cair da tarde sobre a "colônia de cima".  As trilhas 
de luzes na estrada registram a passagem do ônibus da Usina. 
Tanto o é, que em 2010, a velha Araras que se gabava de ser a primeira a libertar um escravo no Brasil – aliás, fato equivocado –, tivera sua mais importante fazenda ligada à história da escravatura local demolida para... se plantar cana!...  Me refiro à fazenda a fazenda São Tomé, que, inclusive, possuía um grande quilombo com centenas de escravos capitaneados sobre a proteção do histórico personagem Lourenço Dias.



E assim, tudo vêm se alterando num ritmo vertiginoso e irreversível. Ao contrário de hoje, quando a maioria dos times dos bairros rurais e fazendas desapareceram ou lutam para se manter, as visitas às zonas rurais em busca de entretenimento eram comuníssimas. Irônica e infelizmente – coisa impensável antes –, a própria Usina Palmeiras seria vítima fatal, não, porém, dessas mudanças que extinguiram sítios, colônias e fazendas, mas sim por problemas internos que levaram ao seu irremediável fechamento, e não me compete relatá-los aqui.





* Este capítulo faz parte da série de oito livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 - OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA". Volume 3 — A Space in time janeiro de 1969 a dezembro de 1971. Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.
 
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