domingo, 11 de agosto de 2013

O JARDIM DO ÉDEN

Velhos hábitos rurais - O “liame forte que era o compadrio” - O homem que falava assoviando!... - Café e fartura - Um roubo abortado!... - O velho sítio “Santa Maria” - Extinção de hábitos e de animais - Terra de antepassados

“Conhecer nosso passado nem sempre resulta
em descobrir nosso passado. Muitas vezes basta
reordenarmos fatos conhecidos, e somarmos
a eles análises adequadas, para obtermos
algo tão valioso quanto novas informações:
 novas conclusões - ou novos entendimentos.”
(Roberto Lopes, revista História, Nº 45, out. 2001, p. 5)

 “Porque a maioria dos homens não se interessa pela
natureza, e abriria mão da parte que lhes cabe?”
(Henry Thoureau, 1817-1862, escritor norte-americano) 



Conservo na memória de menino criado em zona rural aspectos inesquecíveis da vida ao ar livre, principalmente das brincadeiras que nós, crianças da Usina, fazíamos pelos campos e matas do lugar. E a natureza era, sem dúvida, o melhor presente que tivemos em nossa mudança para ali. Sem me dar conta ainda, curtia muito mais este nosso “novo status”, e apesar de parecer um regresso  que, afinal, íamos para a zona rural , era uma evidente evolução, pelo menos para mim, que tudo ia ao encontro às minhas tendências e inclinações naturalistas.  

A Usina, na época de sua inauguração em 1946

Com facilidade consigo me transportar em pensamentos à esses dias de meninice, e reviver antigas histórias com todo o sentimento e colorido que possuíam  cenas e cenários, palcos de inúmeras vivências que divertiam, apaixonavam e extasiavam. E tudo ficou: ficou na memória e na saudade, na consideração, no mais fundo do meu bem-querer. Mas não se veja privilégios nisto, porque assim se dá com todas as crianças, uma vez que boa parte daquilo que elas veem ou ouvem nos primeiros anos  época de total despreocupação e curiosidade , relembram com mais facilidade e precisão, por que é justamente nesta época que elas contemplam tudo como novidade e observam mais cuidadosamente o que lhe produz admiração. Com o tempo, as nossas atitudes em relação às coisas passam a ser condicionadas, em grande parte, por opiniões e sentimentos que absorvemos do ambiente reinante em nossa infância; e assim, pelos pensamentos e sentimentos alimentados neste período, determina cada jovem a história de sua vida.

Sei que por todos esses lugares onde brincamos e vivemos na virada dos anos 60/70 – lugares que eram caros para muita gente dali, em especial as crianças –, passaram muitos poetas, e muito eram poetas que nunca fizeram versos, que jamais rimaram brinquedo com arvoredo, cerrado com aprendizado, ou mesmo paisagem com terraplanagem, mas que, mentalmente, construíram  poemas ao seu modo, de acordo com seu jeito peculiar de ser, amando, por exemplo, uma pequena reserva de mata de que falarei adiante, como se ela fosse um lugar mágico e encantado. 

Estou ciente de que a maioria dos leitores não tem nenhum interesse particular pela história de minha vida e minha formação, mas gostaria de dizer que, na Usina, pouco a pouco, a natureza foi se tornando terreno conhecido e familiar para mim – ante minha sensibilidade, as paisagens não mais seriam apenas paisagens visuais, mas sim, cenários multissensoriais que me ofereciam uma verdadeira profusão de cores, aromas, ruídos e impressões táteis que eu desfrutaria avidamente, e me causariam impressões que iriam modelar meu modo de ver e sentir o mundo. Era como se uma força telúrica existente ali houvesse me tomado e fosse me modelando ao seu bel-prazer. Por outro lado, aliado à isso, eu tinha a teórica do livros e revistas que lia, e a Usina, com sua pujante natureza, me fornecia a prática, o lugar onde eu podia conhecer e praticar in loco boa parte do tudo aquilo que lia.

A verdade é que, desde a mais tenra infância, fui uma criança hipersensível à natureza  tinha um interesse incomum por qualquer objeto natural, como árvores, pedras, nuvens, animais, rios etc. Desse modo, tudo aquilo que eu colhia com o espírito livre e despreocupado  a “descoberta” do mundo e o prazer das primeiras impressões , ficava mais facilmente gravado em minha memória receptiva, deixando uma recordação mais viva, sentida e duradoura. Assim, com a memória banhada de novos e estimulantes sentimentos, nada do que absorvia nesta quadra da infância se perderia no futuro.

Lembro-me  já o disse aqui , que toda vez que saía da escola mais cedo, minha verdadeira loucura era voltar para a Usina o mais rápido possível, e se eu e meus irmãos conseguíamos carona para isso, vibrávamos de alegria, pois em breve estaríamos nos perdendo feitos loucos em seu ambiente - na verdade, a real alegria nossa era bater bola pelo resto da tarde, ou mesmo, se era verão, ir nadar nos rios. A Usina era, sem pestanejar, o lugar mais importante de minha vida – o meu exato conceito de felicidade, de menino cujo maior brinquedo era a própria natureza. Eu não queria outra vida... nem melhor imaginava... muito provavelmente, não havia!... Era uma surpresa dessas – a falta de um professor, e a gente ficava maluco com a promissora perspectiva de um resto de tarde perdido em vadiagens!

Na vida adulta, através de livros especializados, vim a conhecer o nome popular de boa parte das ervas, árvores e animais que ali conheci. E minha memória  que eu sei ser relativamente boa , permite-me afirmar hoje que desde os quatro anos eu já era atraído pelas ervas e plantas que brotavam entre os paralelepípedos e frestas dos tijolos, no nível do chão onde eu brincava, e creio que desde esta época eu, inconscientemente, já vinha reunindo matéria-prima que seria utilizada anos mais tarde em trabalhos literários, como, p. ex., estas memórias em que o leitor põe seus olhos agora. 

Lembro-me que, no inverno de 1978 — pouco mais que um ano após termos retornado à Araras —, quando fui trabalhar na empresa Adpapéis, notei que havia, cerca de 100 metros morro acima, uma pequena reserva de cerrado, muito bonita, por sinal. Era no Jardim Rollo, na "Vila Industrial" recentemente inaugurada ali. Nunca me esqueço que, toda vez que eu ia entrando na empresa no horário de trabalho, eu olhava para ela e desejava sair correndo dali e ir em sua direção e me enfurnar ali. Hoje eu me pergunto: Mas porque, cargas d’água, aquela pequena mata me atraía tanto? Sim, não há dúvida de que sua imagem me remetia inconscientemente ao cerradinho de minha infância lá na Usina, embora, eu não tivesse atinado com isso na época. Do mesmo modo que o cerradinho da Usina, esta pequena mata foi destruída para dar lugar à uma empresa que fazia tipos para impressoras, a Manig, muito provavelmente a última reserva de cerrado situada no entornos da zona urbana de Araras.
 

Desmatamentos anteriores à inauguração da Usina e atual situação

O citado desmatamento em 1938
Mas voltemos um pouco mais no tempo. Pouco mais de 30 anos antes de mudarmos para ali ainda restavam extensas reservas florestais de Mata Atlântica que sobreviveram ao advento do café, e que, com o surgimento da própria Usina, foram desmatadas para darem lugar à canaviais. Fotos recentemente descobertas exibem estas matas faustosas sendo postas abaixo por volta de 1938, portanto, 8 anos antes da inauguração da Usina, o que se deu em 1946. À época, as reservas de mata eram consideradas “embaraços à cana-de açúcar”.

Hoje, a fisionomia vegetal da Usina está quase irreconhecível, quase que completamente mudada, e na maioria dos casos  e felizmente  para melhor do que quando ali chegamos, mas não irei falar aqui desse “melhoramento”, mas, por outro lado, relembrar e lamentar o desaparecimento de uma formação vegetal que existiu ali, e da qual, na atualidade, sobraram somente meros resquícios na cidade. Desse lugar abençoado de que agora falarei, posso dizer hoje, com toda segurança, que foi o Jardim do Éden de minha meninice, e não só de minha mas de muitas outras crianças que ali viveram e puderam desfrutar de seus encantos e benefícios! 


O debout na natureza

Corria o ano de 1967, ao final do seu primeiro trimestre.

Dentre os diversos palcos que a Usina oferecia para nossas inúmeras brincadeiras, havia uma pequena reserva de mata, situada logo atrás de toda a “colônia de baixo”, reserva esta que, décadas mais tarde, já biólogo vim a saber se tratar de um cerrado. Foi esta a imagem que guardei de sua vegetação: árvores  pequenas e esparsas; galhos e troncos retorcidos; cascas grossas e trincadas; folhas como que secas, grandes e espessas; e o solo atapetado de relvas, nele se transitando facilmente, livre de touceiras e emaranhados. Era uma diferença tão notável, pois elas diferiam das grandes árvores, ou pelo menos dos pés de fruta que até então eu conhecia, e foi isto que me permitiu saber anos depois de qual formação florestal se tratava. 

Ao centro, atrás da colônia, o "cerradinho" em 1971.

O que eu sei dizer é que eu adorei aquele tipo de vegetação — me apaixonei mesmo. Não vou chegar ao absurdo de dizer que enlouqueci como Nabuco Donosor quando se deparou com os jardins da Babilônia, mas muito provavelmente, me senti tão encantado quanto o astrônomo francês Emmanuel Liais, que em 1858 se deslumbrou com o cerrado mineiro na região do Rio das Velhas.

— Gente, olha que lugar legal para brincar!

Estou correto em afirmar que a área compreendida pela Usina se assenta totalmente numa área de solo de cerrado, pois mapas de levantamento pedológico consultados indicam para o lugar o latossolo roxo eutrófico,  portanto, solo de cerrado. 

O cerradinho era um capãozinho de mato limitado por uma colônia num dos lados e por um laranjal noutro, ao passo que, pelos demais lados, um rio e um descampado que completavam o agradável cenário. Por detrás — pois era justamente esse lado de trás que o tornava mais interessante e magnifico — terras desconhecidas por “descobrir”, o segredo, a tentação de novas aventuras... Junto dele o cerradinho se tornava um verdadeiro labirinto, constituindo um lugar interessantíssimo para se brincar. 

Era pequeno como reserva florestal, e devia ter, segundo cálculos feitos através do Google Map, no máximo 150 x 150 metros, constituindo assim uma área de cerca de 22 mil metros quadrados, portanto, menos de 1 alqueire, porém, área deveras extensa para nós crianças, que poderíamos quase nos perder em seus meandros em nossas brincadeiras.


Lugar para se perder... e esquecer do mundo!

Wenilton, aos 6 anos, 
quando conheceu o Cerradinho

Acredito que, a partir da convivência com este cerrado, ainda que de forma inconsciente, eu passei a ter meus conceitos permeados pela noção de que as matas não são espaços arcaicos, hostis, inóspitos e pré-humanos, como muitas vezes nos passavam as histórias e lendas infantis, e até mesmo os ensinamentos no Grupo, que eram estes os conceitos que haviam sido encravadas de maneira quase dogmática cérebro adentro nestes bons tempos dos primeiros bancos escolares. Daí, foram se diluindo em minha mente as ideias ancestrais que impunham limites entre as cidades e os matos, os humanos e o meio-ambiente, e eu passei a ver na natureza, sem os antigos medos, uma extensão da minha própria casa – para ser mais preciso, uma extensão de nosso próprio quintal. 

Ah, caros leitores, o que era este recanto!... Aos jovens e bem-dispostos meninos da Usina, bastava pular o muro e dar três passos adiante para adentrar esta pequena e reconfortante mata, sob um admirável céu azul daqueles tempos! Ei, vocês aí da cidade, que vivem espremidos entre edifícios altos e casas sem quintais, mal podem imaginar o que era para aqueles meninos esta pequena reserva de cerrado e arredores: era a sua Amazônia, o seu Pantanal, o seu sertão, em suma, o seu reino encantado! 

Lembro-me que nos recessos deste pequeno paraíso havia recantos encantadores, lugares tão bem desenhados e convidativos, que não havia criança que não desejasse se perder em seus meandros: aqui, um gramado sob um docel, ideal para um discreto piquenique; ali, um arranjo de vegetação arvorezinhas graciosas, às vezes formando uma cúpula semelhante à uma rústica e convidativa cabana, com a amenidade de um recanto único; logo ali, uma trilha que, aparentemente, não levava à nada, mas ideal para quem queria se isolar curtindo sua fauna e flora; acolá, uma árvore que uma criança facilmente escalaria, e nela se ocultaria perfeitamente em sua copa... – enfim, um lugar que não faria feio como um cenário qualquer no 5º Devaneio do livro Os Devaneios do Caminhante Solitário do Jean-Jacques Rousseau. Tínhamos, por isso, juntos às nossas casas, as vantagens salutares do ar puro, o cheiro da vegetação logo atrás das casas, a amenidade da vegetação, os recantos solitários que diariamente as aves, insetos, mamíferos e repteis animavam. 

Podia-se, então imaginar lugar mais agradável para nossas diversões? Nós, meninos da Usina, até então, não queríamos saber de outro. O cerradinho era o meu chão e representava para mim o equivalente às grandes matas brasileiras de que nos falavam os professores. Aquele pedacinho sagrado de mata, cheios de meandros e segredos, aquele recanto confinado acima da Usina que para nossas almas juvenis significava o infinito e a liberdade, a terra que se transformava naquilo que nós queríamos, só para nos divertir...


O cerrado: mata feita para criança brincar

Valéria Coutinho Pereira, e, ao fundo, o lado norte do 
descampado onde antes se erguia o Cerradinho. Notar 
o muro de contenção que foi construído após a grande 
enchente de 29-3-1973, que destruiu parte da estrada.
Conforme os anos iam passando, em minhas leituras vim a descobrir que tanto na literatura, quanto no cinema e nas artes, as florestas (e também os desertos!), eram o refúgio de peregrinos, religiosos, místicos, aventureiros, viajantes, naturalistas, heróis, bandidos, degredados e fugitivos; porém, especificamente sobre o cerrado, alguém escreveu que nele se podia viajar a cavalo em todas as direções  como se vê, uma característica vantajosa para quem quer se movimentar dentro do mato à vontade e sem empecilhos.

Para mim, o cerrado tinha algo muito mais especial que uma grande mata, pois me parecia ser uma espécie de lugar para entretenimento e uso exclusivo das crianças, e, acima de tudo, para sua iniciação nos aprendizados da natureza – até hoje sou da opinião que ele é uma formação vegetal criada por Deus para as crianças brasileiras brincarem: e o cerrado é uma mata miniaturizada, ou selva liliputiana, onde o chão é forrado de gramíneas e serrapilheira, sem muitos enroscos (como grandes cipós, emaranhados e tranqueiras), e as árvores são de baixa estatura, e de troncos contorcidos que facilitam sua exploração  portanto, um ambiente natural arbóreo ideal para as crianças brincarem. Décadas mais tarde, um dos meus mestres na Ornitologia, o notável Helmut Sick, viria me dizer que, “o cerrado tem grande encanto para quem saiba observá-lo como amigo da natureza”. Perfeita colocação!

Na foto, visão panorâmica do "tanque do meio", e da "colônia de cima", em janeiro de 1975, e, em primeiro plano, as "leiras de vinhoto" o lugar onde três anos antes se erguia o cerradinho.

O motivo de este cerrado ter sido posto abaixo foi a construção de um reservatório de vinhoto que ficou sendo conhecido como “Restilo”, bem como as leiras destinadas a receber seu conteúdo após os rotineiros esvaziamentos. 

Lembro-me dos tratores, motoniveladoras, buldozzers e caminhões — os “basculantes”, ou “vasculantes”, como dizíamos  da empreiteira que aí trabalhavam, de toda a madeira retirada e da terra, muito vermelha, cujo revolvimento e aplainamento fazia seu frescor e sua crueza rescender por toda a colônia. Só quem brincou com e em meio à terra virgem pode saber o que é um cheiro desses, o odor que brota do chão quando a terra é revolvida  esse cheiro que os horticultores e trabalhadores rurais conhecem tão bem  o húmus, as raízes, a essência da terra enfim! Isto para não falar da simpática aparição de pequenos e discretos animais, como tatuzinhos, minhocas, lesmas, opiliões, escolopendras e centopeias, que são a alegria das crianças criadas na zona rural. Vale lembrar que além deste cerradinho, havia um outro trecho dele, do outro da estrada que levava ao laranjal do Tramontelli, mas uma reserva muito menor, cerca de ¼ do original, e com vegetação já muito rala e degradada. Usina.


Fauna do cerradinho

Gambazinho (Didelphis marsupialis)
Era também aí, e em suas imediações, que uma infinidade de pequenos animais alados, bem como pequenos quadrúpedes, podiam existir livremente e se multiplicar em paz, sem nada temer a não ser seus predadores, ou um eventual caçador. 

De setembro em diante, esse recanto se tornava realmente delicioso de se frequentar, bem como os campos em seus entornos, e ambos se enchiam de vida com a presença de borboletas, cigarras, pombas, tizius, coleirinhas e bigodinhos, petrins e ui-pís, nambus, codornas, perdizes, lagartos, calangos, coelhos, preás e tatús, e de vez em quando, uma seriema passageira, e pior, cobras venenosas!... Como esquecer os pequenos bandos de tuins, que se confundiam com o verde da folhagem de um pé de mamona, e ali ficavam como que segredando entre si, e bastava nos aproximarmos para que eles alçassem voo rapidamente e sumissem?

Lembro-me também que era deste cerrado que surgiam os gambazinhos, que vinham se aninhar no forro do canil do quintal de nossa casa, onde procriavam. Vale dizer que estes gambazinhos desapareceram justamente com o desmatamento do cerradinho.


Tatus suspirando no breu das tocas

Foi aí também, logo que nos mudamos para a Usina, que meu pai ia com alguns amigos foi um certo dia caçar tatus. Lembro-me que partiram àquela hora indefinida do lusco-fusco, momento pré-noitinha que não já é dia e nem totalmente noite, quando apenas sombras vagas, silhuetas e cenários disformes são vistos ora no chão ora contra o fundo do céu. E o lusco-fusco é justamente a hora em que os tatus entram em atividade, quando saem a vagar pelos campos, onde remexem avidamente em cupinzeiros e formigueiros de saúva, e nestes se deliciam loucamente com o abdômen gorduroso dos içás.

Munidos de um enxadão, uma lanterna de carbureto e um saco de estopa, lá iam eles se enveredar pelo cerrado e as macegas atrás da colônia. Nestas horas, há muita euforia e afobação ─ e o atropelo quase sempre faz com que alguém esqueça alguma coisa importante na partida , tal é o nível de excitação, e, segundo os velhos caçadores, correria nestas horas só atrapalha.

Tatu-galinha (Dasypus novemcinctus)
A espécie que era caçada era o popular Tatu-galinha (Dasypus novemcinctus L., foto), batismo este devido ao fato de sua saborosa carne lembrar muito a de galinha. Com 50 centímetros de comprimento e 4 quilos de peso em média, este tatu rende uma razoável quantidade de carne após limpo.

Devia se instigante ir fazer uma caçada no meio do mato nestas horas, seja no localizar a abertura de uma toca, seja no surpreender um tatu passando e sair no seu encalço. A euforia naquele corre-corre todo do “cerca lá que eu cerco cá”, o trabalho de “desentoca“ naquela escuridão com a luz vacilante da lanterna iluminando o bichinho.

Se a memória não me falha, creio que meu pai não caçou nenhum tatu nesta noite, pois eu, que era tão atento aos alimentos "exóticos" que se surgiam em casa ocasionalmente naqueles tempos, não me recordo de ter visto minha mãe preparando esta carne para nós – coisa que eu jamais comeria. E mais: talvez por isso mesmo, ou seja, o fato de ele não se um pé-quente, não me lembro de ele ter ido fazer novas caçadas com seus amigos. E reforço mais ainda esta opinião, lembrando que nunca tivemos em casa dependuras nos esteios do rancho seja uma carapaça seja um rabo de tatu, e, com certeza, se este ultimo existisse, não teríamos escapado à uma surra com ele...


Carne de caramujo: receita da vovó!...

Aruá-do-mato (Megalobulimus sp.)
Não só este cerrado foi posto abaixo, mas também o eucaliptal que havia do lado sudoeste da Usina, onde íamos as vezes, sendo ele delimitado no lado leste pelo laranjal do Tramontelli. Foi aí que vim a conhecer o caracol-do-cafeeiro, ou aruá-do-mato (Megalobulimus sp., foto), que é um caramujo bastante comum também em matas, pomares e hortas, cuja carapaça é uma bela concha bojuda, de formato espiral alongada, e de cor rosa-marrom claro. É visto com frequência à sombra, em cantos de muro, entre folhas secas, pois o sol direto desidrata os seus tecidos, e preferem os dias chuvosos, úmidos, enevoados e sombrios.

Ana Alves Rocha, 1967
Certa vez, num dos seus serões matinais, minha avó Ana Rocha me contou que quando eles apareciam em grande número nos cafezais da fazenda Montevidéu, ela e os filhos iam coletá-los. Depois de retirá-los do caracol, os moluscos eram colocados numa bacia com água, vinagre e sal para sair a “baba” viscosa, e ali os deixava de molho por alguns minutos. Após serem temperados, os “filés” eram fritos em óleo quente, e dizia a minha vó que todos os filhos adoravam e comiam sem cerimônia. Segundo ela, o sabor lembra o da carne de galinha. 

Noutra ocasião, ainda na casa desta minha avó, vi minha prima Isabel Pedro comer um exemplar destes depois de grelhá-lo na chapa quente do fogão de lenha. Hoje, sei que caramujos são normalmente usados na alimentação humana, como o Escargot (Helix aspersa) e o Caramujo-africano (Achatina fulica que hoje é praga no Brasil , mas, naquela época, não suportei ver aquilo, e até tive asco, achando-o algo repugnante demais par descer goela abaixo, embora, paradoxalmente, eu adorasse comer içá frito!... 

Quanto a este eucaliptal, não sei dizer se ele foi posto abaixo pelo mesmo motivo do cerradinho, mas desconfio que ele virou lenha para abastecimento dos fogões dos moradores das colônias da Usina.



Flora do cerradinho

Vassourinha (Baccharis dracunculifolia)
As árvores comuns neste cerradinho de que me recordo, eram alecrins-de-campinas,  Cordia sp., assa-peixe (Vernonia polysphaera), jurubeba (Solanum paniculatum L.) e fumo-bravo (Solanum mauritianum Scop.), e uma de que me recodo muito, o catiguá (Trichilia sp.), de que falarei adiante; mas também devia haver fruta-de-lobo ou lobeira (Solanum lycocarpum), angico-do-cerrado (Nadenanthera falcata), e até mesmo o barbatimão (Stryphnodendron barbatimam Mart.), dividindo espaço com árvores exóticas como a mamona, o eucalipto e a contas-de-santa-bárbara (Melia azedarach L.), as três, comuníssimas na Usina. A mamona aumentou muito depois do desmate, quando também surgiu muito assa-peixe (Vernonia polysphaera) e alecrim-do-campo ou vassourinha (Baccharis dracunculifolia, foto), esta, inclusive, me lembro de vê-la sendo usada como vareta nos morteiros que se soltavam atrás da igreja Matriz nos meus tempos de Grupo “Zurita”, no dia 15 de agosto, Dia da Padroeira.  

Flor-de-madeira (Merremia tuberosa)
Um dia desses, conversando com a Mara Ballotin e falando-lhe do velho cerradinho, ela puxou pela memória e lembrou-se de uma flor comuníssima, típica de cerrado, a bela flor-de-madeira, e eu imediatamente me recordei dela, principalmente porque ela era numerosa ali e, acima de tudo, era a principal flor que as meninas gostavam de colher pela mata. As flores, inicialmente, são de um belo amarelo intenso, e depois, quando secam, se convertem em interessantes rosas secas, muito usadas em artesanato, e como é uma planta trepadeira é muito usada também para cobrir pérgolas e cercas de arame. Se tivesse de escolher uma planta símbolo deste cerradinho, sem dúvida seria a flor-de-madeira a contemplada, que ela era a cara desta pequena reserva de mata!



De cerrado à plantação de milho!...

Após esse desmate, entre as leiras abertas e os muros dos quintais das casas, ficou uma ampla faixa de terra, de cerca de 70 x 100 metros, onde nosso tio Augusto Paura, que também era funcionário da Usina, todo ano plantava milho, que depois era distribuído para a colônia. Era naquela época faustosa do ano em que todas as mães faziam pamonhas, curaus e milhos verdes cozidos! 

Ao norte desse terreno, ladeando a estrada que levava ao citado laranjal, ficava um pequeno terreno descampado onde tentamos inutilmente fazer dele nosso campinho de futebol  uma área de cerca de 30 x 60 metros  mas por ser um terreno de chão duro, e o pior, ao lado do “tanque do meio”, a coisa não vingou e, por isto mesmo, era horrível jogar bola aí, pois um chute muito forte fazia a bola ir cair dentro do rio!... Na verdade, já o disse aqui, este descampado, inicialmente, ia ser um pasto onde meu pai tentou criar cavalos e bois logo que mudamos para ali, mas, não sei por que, a coisa não vingou mesmo com a Usina preparando o terreno para isso, e até o cercou com moirões e arame farpado – daí nasceu nosso frustrado campinho de futebol.

A Usina, na agradável manhã 19 de janeiro de 1975, vista à partir dos altos do Restilo, mostrando a "colônia do 
meio" e os prédios e chaminés, e, no médio plano, o milharal onde três anos antes se erguia o cerradinho. 
Comigo nesta manhã, estavam os grandes e saudosos amigos, que já partiram para outros planos: o Isnaldo e Julião.
Ladeando este campinho, ainda para o lado norte, havia um barranco que, num espraiamento, ia desembocar no citado tanque. Foi neste lugar, à sombra de um capãozinho de Alecrins-de-campinas, que, por longos meses, dois calceteiros quebraram pedras destinadas ao calçamento de toda Usina, o que se deu entre 1972 e o ano seguinte. Nunca me esqueço de que um desses calceteiros, talvez por brincadeira, construiu num bloco de pedra branca de granito duas pequenas rodas bem largas com um orifício central, algo semelhantes às do carro que o Fred Flintstone usava, e estas rodas, apesar de nossa cobiça, ficaram jogadas ali por todos estes meses, até que, muito provavelmente, a citada grande enchente deu cabo delas, e talvez hoje ambas repousem em algum lugar dentro do tanque.

Foram dias de grande aprendizado a convivência com este cerrado, um recanto de experiências sublimes, de vivências espirituais e educativas, e, acima de tudo, de muita empatia. Ali podíamos, de certo modo, viver a condição natural e primitiva da humanidade, ficando longe do artificialismo da civilização. Vindo da cidade para a Usina como crianças quase que totalmente urbanas, ali podíamos exercer a nossa porção mais animal e instintiva no contato íntimo com o mundo natural  ali, nada das convenções da vida em sociedade: era o “voltar” à natureza e se dar ao luxo de sermos nós mesmos, de falar o que pensássemos e até mesmo gritar sem razão ou repreensão, como um índio em meio à uma aldeia.

Nunca me esqueço de que fora aí, às bordas do cerradinho, o lugar onde fumamos pela primeira vez os ardidos cigarrinhos que fazíamos com os cipós que pendiam das árvores atrás do muro do quintal da casa do Marcos Coutinho Pereira. Eram tão fortes e asfixiantes, que, até hoje, parece que guardo o sabor de suas baforadas em minha boca! Fumávamos todos, meninos e meninas, mas jamais nenhum de nossos pais ficara sabendo desta perigosa brincadeira.

Marcos, Isnaldo e eu, em 19-1-1975
Lembro-me também, no caminho que havia entre os muros e este cerradinho, que junto de alguém que não me recordo quem, de ao revirar um tronco podre, vi pela primeira vez um engodo de coró, ou seja, uma larva de besouro que era usada como isca de pescar. Louco que já era por insetos, achei incrível conhecer esta larva de corpo gordo e cor de vela, com a cabeça escura, porém. Chamado também de pão-de-galinha, joão-torresmo, esta larva é usada também como alimento pelos índios, que a devoram feito loucos. 

Havia famílias da colônia que costumavam jogar neste caminho restos do lixo de alimentos consumidos durante a semana, e foi aí que vim a conhecer o tempero Fondor  ou algum precursor dele , e cheirar aquele frasco me deixou impressionado aquele dia. Comum também era encontrar latinhas de presuntada da Swift, que vinha com aquela curiosa chavezinha que chamava muito a atenção. Vale dizer que, estranhamente, em nossa despensa, para a minha tristeza, jamais entraram estas duas tentadoras iguarias.

O Celso e o Augusto Domingues, 
por volta de 1972, dois dos 
frequentadores do cerradinho.
Nunca vou me esquecer que foi aí o lugar onde, pela primeira vez, vi o planeta Mercúrio numa de suas elongações anuais, numa brumosa tarde de princípios de 1973, assunto que comento em outro texto. Lembro-me também  e já contei esta história aqui com detalhes , que este cerrado, na porção em que fazia divisa com o fundo do quintal da primeira casa em que moramos ali, foi o exato lugar onde, pela primeira vez em minha vida, pude ver e ouvir o enigmático pássaro conhecido como sem-fim (Tapera naevi), cantando abertamente num pé de mamona seco, e sem se preocupar com minha presença ali. 

Analiso agora os anos em questão, os então moradores da “colônia de baixo” e as idades de cada criança, e obtenho um levantamento sobre os componentes da turma que frequentava este cerradinho  cuja idades iam dos 7 aos 13 anos. Primeiro as damas: Marta, Márcia, Magda e Mara Balotin; “Fia”, Valéria e Nilza Coutinho Pereira; Vânia e Daise Domingues; Sônia e Silvana Lima. Os meninos eram: Miltinho, Marcos e Isnaldo Coutinho Pereira; Aroldo, Hamilton e Evandro Lucrédio; Paulinho, Celso e Augusto Domingues; Ademir e Toninho Lima e, finalmente, eu e meus três irmãos, Weber, Wagner e Waltinho. Contabilizando: 11 meninas e 15 meninos. Como se vê, uma turma de crianças e jovens bastante numerosa, mesmo que, as vezes, não participassem os mais “velhos”, ou seja, os da faixa entre os 12 e 17 anos. Essa turma era ocasionalmente acrescida de amigos e primos que vinham da cidade, bem como de crianças oriundas da “colônia de cima”, de modo que criança para brincar ao ar livre era o que não faltava ali.

 O terreno que se revelou com o desmate do cerradinho era relativamente amplo, e com o crescimento de capinzais em substituição às árvores que ali existiam, o lugar passou a servir de refúgio à animais como coelhos e preás, lagartos e calangos, bem como à aves como nambus, perdizes e codornas e diversas espécies de fringilídeos, como os coleirinhas, tizius, bigodinhos e tico-ticos. Ali, naquela calma em que só muito raramente surgiam crianças com estilingues, espingardinha de pressão e gaiolas, eles podiam se multiplicar em paz sem temor algum.

Infeliz, ou felizmente, não me recordo de ninguém dentre nós crianças, de reclamarmos da extinção desta pequena reserva, mas, ah, se os que o desmataram – ou os que mandaram pô-lo abaixo –, tivessem um pouco daquele receio espiritual que tinham os romanos ao podarem um bosque para que a luz pudesse entrar num recanto considerado sagrado para eles! Ah, se eles soubessem o quão importante era para nós crianças esta pequena mata, e como ela tornava nossos sagrados dias de férias mais ricos e extasiantes – como já o disse, era o cerradinho o nosso Jardim do Éden!


“Me tira daqui, cazzo!”

O Waltinho e o Doni, 1967
Guardo no mais fundo das visões da meninice momentos de incomparável magia e alegria contagiante daqueles momentos quando passávamos a tarde brincando nos recessos ocultos e silenciosos do paradisíaco lugar que era o cerradinho. Houve também histórias cômicas ocorridas nesta pequena mata, e é hora de apresentar uma de que me recordo aos leitores. 

Uma delas se deu por volta de 1972, quando nosso primo Donizete Rocha (na foto, junto do Waltinho Daltro, em 1967) começou a vir passar os finais de semana na Usina. Estávamos a brincar de soldado e ladrão, e o Doni, na condição de ladrão foi capturado dentro da mata, e para não escapar enquanto eram caçados outros ladrões, achamos por bem amarrá-lo numa árvore. O Toninho Lima, menino que gostava de brincar com cordas, foi encarregado de imobilizá-lo. 

Havia nesta época — e ainda as há — uma pequena árvore conhecida como Catiguá (foto abaixo), citado anteriormente, que era encontrada por todas as imediações da Usina. Justamente ao lado do local onde brincávamos — o citado campinho de futebol —, encontramos uma arvorezinha dessas, e foi nela que o Toninho prendeu nosso primo, e o danado caprichou no serviço, amarrando-o firmemente com as mãos pra trás e também pelas canelas. E, para a infelicidade de nosso primo, esta árvore ficava num pequeno declive em meio à terra vermelha. Mal ele foi amarrado, saímos na caça dos outros fugitivos e sumimos em meio à mata. 

Catiguá (Trichilia sp.)
Capturados os ladrões restantes, ao voltar ao escampado, ouvimos alguém gritando. Alguém disse: "Se não for o Doni gritando, eu corto o saco!" Fomos nos aproximando e vimos ao longe nosso primo numa situação em que não sabíamos se ríamos ou ficávamos com pena dele... 

  Foi o maior esculacho da paróquia! E ele berrava: “Me tira daqui, cazzo!” Só atualmente fui saber que o Doni estava usando uma expressão italiana de baixo calão para protestar, expressão esta que ele pronunciava incorretamente, dizendo "catcha". Ocorre que esta árvore onde ele foi atado era nova ainda, com um tronco cujo diâmetro não devia passar de uns 5 centímetros ou pouco mais, e, para piorar, o tronco era flexível... Quando ele começou a agitar seu corpo para tentar se desvencilhar das cordas, o tronco não suportou seu peso e, daí, pumba!... Sem partir-se, o catiguá inclinou em direção ao chão, fazendo com o Doni ficasse com o rosto totalmente em contato com a terra vermelha, quase que sendo esmagado pelo peso de seu próprio corpo - caiu de chapa!... Esta curiosa arvoreta, fora como o célebre caniço de La Fontaine, aquele que, diante de um imponente carvalho que o ironizava, vergava ao vento mas não quebrava...

Entre seus xingamentos e nossas gargalhadas, endireitamos o tronco e o desamarramos, mas rimos muito mais ainda ao notar que seu suor, misturado com a cor da terra, tingiu seu rosto e seu corpo deixando-o com uma aparência que, se não lembrava um trabalhador de mina, muito menos lembrava um índio!... Rimos tanto, e tanto o zoamos que o Doni ficou fulo da vida: "Vão morder seus pais na bunda" Ocêis são foda!"... Paramos a brincadeira ali mesmo e fomos para casa levar o primo para um bom banho, já que, por esta época, por nossa idade, ainda não nadávamos nos rios da Usina. 

O Toninho era danado, como se dizia: "de lascar", e, no fundo, acho mesmo que ele sabia que isso ia acontecer!... E o Doni prometia vingança: "Eu sei que foi sua essa ideia de jerico, Toninho! Deixa estar, jacaré!"... O Toninho rebatia: "Ah, Doni, você é um pamonha!"...


O copromancista!... 

Urtiga (Urtica dioica L.)
Lembro-me de uma outra história, mais engraçada ainda, passada aí, onde, durante uma brincadeira semelhante, eu protagonizei uma cena para lá de bizarra. 

Nosso grupo procurava por meninos do grupo rival refugiados no meio da mata. Íamos andando por um aceiro  eu tomando a dianteira do grupo , quando, pouco adiante, reparei que alguém havia feito necessidades justamente no meio da trilha. Aproximei-me e mal coloquei meus olhos nos dejetos, que eram recentes, feito um improvável detetive, diagnostiquei sem pestanejar: “Cocô de Wagner!” Mal disse isso, instintivamente olhei para cima, e lá estava sentado no galho de uma árvore, o meu irmão  sim o próprio Wagner , com  cara de constrangido estampando o maior sorriso amarelo!...

Em belíssima foto, o Wagner e o Isnaldo, na época desta história
Foi um festival de risadas, e ninguém entendia como eu tinha podido identificar meu irmão daquela maneira, sem muito raciocínio! Na verdade, pensando hoje sobre isso, além de engraçado, vejo que era realmente um mistério esse meu, diria, talento copromancista!... O que diria o Rubens Fonseca desta história?... 

Mas a coisa poderia ter sido pior, pois, felizmente,  novato que ainda era, meu irmão não se limpou com folhas de urtiga, o que era muito comum à nós crianças nesta época, e urtiga era o que não faltava nas imediações do cerradinho, e houve mesmo muita criança ali que passou por esse terrível inconveniente, ou seja, o de não limpar os traseiros, como diria o Rubens Fonseca, com “atenção plena”!... 

  O ocorrido deu tanto ibope, que rendeu assunto de sobra para o resto da semana! O que eu sei dizer, amigos, é que, depois desse dia, fiquei com a bizarra fama de reconhecer os dejetos de meus amigos no meio do mato apenas “batendo os olhos” neles, já que, durante as brincadeiras, fazer necessidades no meio do mato era a coisa mais normal do mundo!...


Um dia, tudo acaba!...

Minha convivência com este cerrado durou pouco mais que cinco anos, ou seja, ao final do primeiro trimestre de 1967, quando nos mudamos para Usina até a sua erradicação, o que infelizmente se deu em princípios de 1973. 

Atualmente, ele já não mais existe — é um canavial.

 Antes do espólio da extinta Usina ter sido adquirido por seu atual proprietário, com o abandono natural destes terrenos atrás da colônia, tive a esperança de que ele seria “ressuscitado”, e, para a minha alegria, fui testemunha de que isto realmente havia começado a acontecer, notando-se ali uma “nova” vegetação renascendo (foto abaixo), mas este mesmo proprietário — com certeza para não perder o investimento —, achou por bem aproveitar o terreno e plantar um pequeno capão de cana ali... 

Amigos, no mundo capitalista a coisa é assim mesmo: o dinheiro sempre fala mais alto, e a natureza, oras, a natureza!...

Se o cerradinho existisse ainda hoje, a visão que se teria dele visto a partir do lado sudeste da Usina seria 
algo próximo deste cenário. Ao centro, a última casa onde moramos. Foto feita décadas depois, em 2011.

Mas, enfim, é ao já citado filósofo francês  gente de minha mais alta estima , que irei tomar emprestado um verso para o desfecho deste capítulo: 

Então, com passo tranqüilo, enveredava-me eu
por algum recanto da floresta, algum
lugar deserto, onde nada me indicasse
a mão do homem, nem me denunciasse a
servidão e o domínio - asilo em que
pudesse crer ter primeiro entrado,
onde nenhum importuno viesse
interpor-se entre mim e a natureza."
                (O Encanto da Solidão, Jean-Jacques Rousseau)



* Este capítulo faz parte da série de nove livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 – OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA. Vol. 1 - The best days of our lives – abril de 1967 a dezembro de 1968. Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.

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