O livro que me levou ao eclipse - Eclipse e constelação inspiram um poema! - O final de tarde que antecedeu o eclipse - O eclipse enfim - Os fotógrafos do grande eclipse - Tu pisavas nos astros distraído... - Carpindo hortas....
“Que haverá com a lua que sempre
que a gente a olha é com o
súbito espanto da primeira vez?
(O eterno espanto, Mário Quintana)
“Quando a lua apareceu
Ninguém sonhava mais do que eu
Já era tarde
Mas a noite é uma criança distraída.”
(“Coisas da vida” - Rita Lee, 1976)
"A Terra, esta nossa misteriosa morada,
vai projetando sua forma naquele redondo
espelho. Muito lentamente sobe a mancha
negra sobre aquela cintilante claridade. É mesmo
um dragão de trevas que vai calmamente
bebendo aquela água tão clara; devorando,
pétala por pétala, aquela flor tranquila."
(Eclipse lunar. Cecília Meirelles. 1966)
que a gente a olha é com o
súbito espanto da primeira vez?
(O eterno espanto, Mário Quintana)
“Quando a lua apareceu
Ninguém sonhava mais do que eu
Já era tarde
Mas a noite é uma criança distraída.”
(“Coisas da vida” - Rita Lee, 1976)
"A Terra, esta nossa misteriosa morada,
vai projetando sua forma naquele redondo
espelho. Muito lentamente sobe a mancha
negra sobre aquela cintilante claridade. É mesmo
um dragão de trevas que vai calmamente
bebendo aquela água tão clara; devorando,
pétala por pétala, aquela flor tranquila."
(Eclipse lunar. Cecília Meirelles. 1966)
Assim
como os cometas e as chuvas de estrelas, os eclipses, sejam eles do Sol ou da
Lua, estão entre os fenômenos mais espetaculares que ocorrem no firmamento, e,
como já disse aqui, desde a mais tenra infância eu sempre fui atraído por estes
intrigantes fenômenos. Aqui falarei do primeiro eclipse total da Lua que
presenciei em minha vida, o qual, inclusive, tive a suprema felicidade de
documentá-lo fotografando-o, embora o resultado não fora muito promissor devido
à minha inexperiência e a deficiência do equipamento.
O livro que me levou ao eclipse
A
folhinha pendurada na parede marcava a data de 24 de maio de 1975, o dia anterior
ao eclipse. Porém, soube deste evento cerca de dois anos antes, através da leitura de um
livro que com frequência eu retirei na Biblioteca Municipal — o ótimo “A Lua —
Satélite Natural da Terra” —, do escritor Franklin M. Branley, que trazia a
informação de que na madrugada do dia 25 de maio de 1975 se daria o eclipse de
que trato agora. Anotei esta e outras datas em meu caderno de registros
astronômicos e aguardei ansiosamente a chegada deste dia especial.
Como seria a primeira oportunidade que eu teria de observar um eclipse do gênero — o que me deixou para lá de eufórico —, prontamente pedi dinheiro para o meu pai e fui para a cidade comprar um filme adequado para poder fotografá-lo. Na posse de um Kodak Tri-X Pan 400 ASA 120 mm, fui até a casa de meu amigo Teschinha, e pedi emprestada sua a sua velha máquina Kapsa.
Nesta semana só se falava da possível contratação do jogador Pelé pela equipe norte-americana Kosmos, mas, mesmo estando por demais entretido com futebol nesta época, o que só me interessava nestes dias era o novo fenômeno do Cosmos propriamente dito, o eclipse lunar!
Durante todos os momentos que antecederam o eclipse, minha expectativa era enorme pois eu não tinha a menor noção do que poderia acontecer num fenômeno como esse, e quase tudo seria surpresa para mim a não ser saber que, ao contrário dos eclipses solares, seria a Terra que projetaria sua sombra no disco lunar. E mais, o Branley me dizia que um eclipse lunar pode durar mais de 5 horas enquanto um do Sol não passa de 7 minutos, além de ele poder ser visto olho nu ou com o auxílio de binóculos, lunetas ou telescópios, uma vez que ele não traz nenhum prejuízo à visão, ao contrário do que ocorre com os eclipses solares.
Como seria a primeira oportunidade que eu teria de observar um eclipse do gênero — o que me deixou para lá de eufórico —, prontamente pedi dinheiro para o meu pai e fui para a cidade comprar um filme adequado para poder fotografá-lo. Na posse de um Kodak Tri-X Pan 400 ASA 120 mm, fui até a casa de meu amigo Teschinha, e pedi emprestada sua a sua velha máquina Kapsa.
Nesta semana só se falava da possível contratação do jogador Pelé pela equipe norte-americana Kosmos, mas, mesmo estando por demais entretido com futebol nesta época, o que só me interessava nestes dias era o novo fenômeno do Cosmos propriamente dito, o eclipse lunar!
Durante todos os momentos que antecederam o eclipse, minha expectativa era enorme pois eu não tinha a menor noção do que poderia acontecer num fenômeno como esse, e quase tudo seria surpresa para mim a não ser saber que, ao contrário dos eclipses solares, seria a Terra que projetaria sua sombra no disco lunar. E mais, o Branley me dizia que um eclipse lunar pode durar mais de 5 horas enquanto um do Sol não passa de 7 minutos, além de ele poder ser visto olho nu ou com o auxílio de binóculos, lunetas ou telescópios, uma vez que ele não traz nenhum prejuízo à visão, ao contrário do que ocorre com os eclipses solares.
Eclipse e constelação inspiram um poema!
No
início dos anos 70, eu costumava tirar também para ler na biblioteca de Araras
o “Atlas de Astronomia” do argentino Ignácio Puig, e por ele soube que a
estrela alfa da constelação do Escorpião — a bela Antares — era 113 milhões de
vezes maior que o Sol! Que loucura! E sabendo que a Lua iria nascer dentro da
constelação de Escorpião — mais precisamente entre as três estrelas que formam
a sua garra —, logo após do jantar, como eu às vezes fazia, peguei minha luneta
e foi até o reservatório do Restilo conferir mais atentamente essa estrela gigante
que iria surgir sobre o horizonte leste no céu da noitinha. Eu estava fascinado
com essa informação, pois há muito sabia que a diferença de tamanho entre o Sol
e a Terra, comparativamente, era a mesma entre uma bola de futebol e a cabeça
de um alfinete — então, imagina agora a diferença proporcional entre Antares e
a Terra!
Allen Cohen |
Curiosamente, um sujeito da cidade norte-americana de São Francisco, o poeta psicodélico e pacifista Allen Cohen (1941-2004), fez um poema para esse eclipse, onde afirmou que a Lua fora assassinada nesta noite pelas garras do Escorpião:
“The moon is dead
Iit was killed tonight
By the sting of Scorpio”…
Até então, eu que me deslumbrava com as prosaicas e populares Três Marias ─ agora eram as três discretas estrelas da garra do Escorpião que me interessavam... e o melhor: lá estaria eu comprovando visualmente o fato apontado por Aristóteles há mais de 300 anos, o de que um eclipse lunar era uma das simples provas de que a Terra era redonda, e lá se via claramente sua sombra circular se projetando naquele distante alvo cósmico...
O final de tarde que antecedeu o eclipse
Às vésperas do início do Inverno, o céu se mostrava límpido e sem nuvens, prometendo um belo espetáculo, o que viria facilitar muito a minha sessão de fotos. Mais tarde, a noite mostrou-se com uma verdadeira noite de eclipse deve ser, com todas as suas exigências protocolares: céu límpido, frio, silêncio e solidão, noite que, se não fosse pela enorme vontade de ver o fenômeno, eu não iria abandonar o aconchego de minha cama apenas para curtir uma simples noite de Lua cheia.
Lua cheia nascendo atrás dos prédios da Usina, no final de tarde de 24-5-1975. Foto: Wenilton . |
À certa altura, a Lua despontou por detrás da copa da mangueira do quintal. Dias antes, Dona Margarida, nossa professora de Ciências, falando sobre a influência da luz da Lua sobre a natureza, disse que, em noites de Lua cheia, a seiva corre ativamente por todas as parte de uma árvore.
─ Que legal, Dona Margarida! No próximo dia 24 de maio, vai ter um eclipse da Lua cheia, e eu vou fotografar!
─ Nossa, você consegue fazer isso, Wenilton?!
─ Sim! Desde os 12 anos eu fotografo o céu!
─ Meus parabéns.
─ Obrigado!
─ Dona Margarida, é só nas árvores que a Lua cheia causa influencia ou ela também influencia os arbustos e plantinhas?
─ Sim, nelas também.
─ Então o eclipse vai influenciar nas margaridas, professora?...
─ Gostei da brincadeira, menino!
* * *
Assim das pardas névoas secas alinhadas no horizonte distante, vinha assomando silenciosamente o alaranjado disco da Lua cheia, e, serena e bela como nunca, conforme se elevava, já na noitinha, após ter deixado a opaca região do Cinturão de Vênus, a sua magnética de luz de prata ia se espalhando pelos campos, carrascais, rios e lagoas, plantações diversas, enfim.
E ali, em meio à solidão total, contemplava aquele carão cheio e luminoso a espalhar sobre tudo o sorriso das coisas tranquilas, enchendo as cercanias de serenidade. Porém, perdido em cismas, tentava entender o porque de os meus irmãos e amigos da Usina, e mesmo os da cidade, não amarem a Astronomia e não se interessarem pela contemplação celeste como eu. Por que não questionavam sobre a natureza e a vida em outros mundos? Por que não tinham os mesmos ideais de contemplar o céu apaixonadamente e procurar decifrar os “mistérios do firmamento” ? Por alguma razão que eu desconhecia, o céu não lhes atraía e não mesmo queriam mesmo “viajar” pelos espaços infinitos do céu! Invariavelmente, tinha de me contentar com o fato de que, ali naquele lugar, todos os sentimentos, descobertas e experiências que vivia só pertenciam a mim mesmo e, por sua própria natureza, era difícil dividi-los com os outros, afinal, quando se é apaixonado por Astronomia, tudo o que através dela vemos e sabemos é insólito, misterioso, extraordinário e até mesmo incomensurável. Mas eu, caros amigos, é bom que se diga novamente que comecei atuando já à nível celeste, isto desde que vi o belíssimo e inesquecível cometa Ikeya-Seki aos 4 anos, no memorável final de 21 outubro de 1985, onde surgiu essa paixão que nunca mais me abandonou!...
* * *
Após o banho e o jantar, assisti um pouco de TV, e, de quando em quando, ia para o quintal dar uma olhada na altura da Lua — tudo se mantinha favorável, com o céu completamente limpo de nuvens. Depois, enquanto contava as horas que faltavam para o início do grande fenômeno — e muitas horas ainda distavam –, fui para o meu quarto reler o livro da Branley para dar uma reavivada nas informações, e, assim, tornar a noite mais excitante na hora das fotos.
* * *
À hora aprazada, peguei as tralhas e fui para o quintal. E foi numa caixa d’água (foto, 2008) em frente à nossa horta o lugar que usei como apoio para fixar a máquina e registrar o fenômeno. Era uma noite de final de outono, noite frigidíssima, e minha mãe, pouco antes de início do eclipse, como precaução, preparou uma garrafinha térmica de café quente para mim, com a intenção de me aquecer durante o trabalho. Creio que, pela própria circunstância, foi o café mais delicioso que tomei em minha vida.
Tão excitado estava com a noite tão
propícia, que eu esfregava as mãos mais por estar contente do que propriamente por
frio... Diria até, como James Fletcher:
“Oh, mais gloriosa das noites!
não foste feita para o sono"
Convém esclarecer que esta caixa d’água era um reservatório feito de tijolos e acabamento em cimento, e nós meninos a utilizávamos nos dias de verão como se fosse uma pequena piscina, mas nestes anos todos, jamais soube qual a real utilidade que ela teve após construída. Para molhar a horta do quintal, creio que não, uma vez que uma simples mangueira ligada à uma torneira bastava.
* * *
Meu pai acordou, e vendo a porta da cozinha aberta, foi checar e me encontrou lá no meio do escuro do quintal. Sonolento e meio desligado, perguntou:
─ Quem taí?!
─ Sou eu, pai, o Wenilton!
─ O que você está fazendo a esta hora da noite aí fora?!
─ Estou vendo o eclipse.
─ Pois diga a esse tal de Clips que já tarde da noite e ele tem de ir embora, pois está mais do que na hora de você dormir!
Antes do início do eclipse, notava-se que uma transfiguração poderosa se estendia pela noite afora: a frio clarão azulada da Lua delineava as coisas distantes tornando-as claramente esmaecidas — uma luz mágica que banhava os campos, as matas, as plantações, os rios, as colônias, a Usina, tudo, enfim. Aquela luz não era comum e era um tentador convite a uma caminhada pelos arrabaldes, pois tal luz permitia se enxergar quase tudo. Na verdade, era um luar tão intenso que eu nem precisava de café. Como assim, Wenilton? Pois bem: cientistas dizem que quanto mais brilhante o Luar, menos produzimos melatonina, o hormônio do sono, portanto...
Por todos os lados, a cantoria de uma legião de grilos punha um contagiante acento na mansidão da madrugada. Um pensamento me veio à cabeça: “Eis algo que para sempre eu vou gostar!”
O eclipse enfim
Foto de John Westfall, 4 minutos de
exposição, 400 ASA, lente 55 mm, f/1.8
|
Caro leitor, é mister que para se ler esta passagem mais apropriadamente, soe ao fundo "Episódio da Lua", do maestro Villa-Lobos, na belíssima versão space music do tecladista Wagner Tiso!
http://redmp3.me/8115231/wagner-tiso-suite-ii-alem-da-floresta-preludio-episodio-da-lua.html
Estendia-se sobre a Usina uma noite magnífica e nada nesta noite tinha mais importância do que a Lua no céu — ela parecia-me como o ponto matemático: o centro de uma imensa circunferência, e tudo girava ao seu redor! Tanto o é que depois desse primeiro eclipse, eu passei a ver a encarar a Lua de uma maneira totalmente nova.
Durante o fenômeno, lá estava a Lua em meio às garras da constelação de Escorpião, próxima das estrelas Beta e Delta, respectivamente Acrab e Dschubba, estrelas de terceira magnitude que formam as citadas garras e a testa desta figura estelar de fácil reconhecimento no céu. Infelizmente, a Kapsa, por suas limitações, mal permitiu registrar as estrelas de menor grandeza. Um astrônomo amador conhecido como John Westfall, consegui com sua foto justamente o que eu esperava obter, uma tomada repleta de estrelas ao lado da Lua.
Uma coisa me chamava a atenção nesta madrugada: jatos de linha não cruzaram o céu uma única só vez! Era uma madrugada na virada de sábado para domingo, e por onde andavam eles?! No cinema da cidade estava bombando o filme “Aeroporto 75”, mas onde estavam os Boeings, DC- 10s, Caravelles e Electras da Varig-Cruzeiro, Vasp e Transbrasil? A verdade é que, durante as fotos de longa exposição, só a Lua prendia minha atenção ao céu. Rotas de jatos diurnas ou noturnas pareciam não existir ali!
Foi incrível observar as mudanças visuais que iam acontecendo durante o fenômeno, mas o show mesmo se iniciou quando a sombra da Terra começou a “morder” a Lua — é como se as fases que conhecemos (nova, crescente, cheia e minguante) — que na realidade duram cerca de um mês —, pudessem ser vistas no desenrolar de uma noite. Nessa fase, os tons das cores onde a luz do Sol não incidia diretamente, ficaram num notável contraste com a parte iluminada.
Após a fase de “mordida”, a região escura foi se estendendo no disco lunar se tornando cada vez mais intensa. Por volta das 2:30hs se deu o eclipse total, encontrando-se ela imersa na região conhecida como umbra, quando ficou com cor uma notável vermelho-alaranjado, vendo-se uma mancha muito escura no centro da sombra e uma zona exterior muito clara, porém mais avermelhada que a zona central.
Na época, citou-se que foi um eclipse que parecia ser ligeiramente mais escuro que o normal, fato que se deveu às partículas lançadas pela explosão do vulcão Fuego, que entrou em atividade na Guatemala em outubro de 1971.
Como já o disse aqui, eu havia visto em 1966 um eclipse do Sol, mas o da Lua era muito diferente — a Lua, apesar de eclipsada, pela notável beleza do disco colorido em meio ao céu, não perdeu sua supremacia em meio às estrelas que estavam próximas dela.
Durando cerca de 2:25 horas na fase de penumbra, calculo que fiquei pouco menos de 2 horas fotografando o fenômeno, lembrando-se que a fase de eclipse total durou pouco menos que uma hora e meia. De qualquer modo, como era a madrugada de um domingo, pude ir dormir tarde sem me preocupar com qualquer ocupação no dia seguinte.
Eu ia dormir realizado, com a alma repleta, mas com o sono meio fora de foco, enquanto lá fora, no silêncio a luz prateada da lua banhava os arvoredos, os telhados, os rios e os campos. Em noites de Lua era sempre assim, o terrenão atrás da colônia ficava com um aspecto fantástico — as árvores e arbustos secos, dispersos ao clarão lunar, mostravam silhuetas que remetiam à cenários funéreos. A imagem impunha-se porque ali, só a luz da Lua predominava alterando de certo modo a forma original das coisas.
Os fotógrafos do grande eclipse
|
A
maioria das fotos que fiz esta noite eram com longas exposições, e também esse
foi um dos motivos que me levaram a fotografar por horas a fio o desenrolar
desse eclipse. Assim, estas fotos transformaram a passagem da Lua pelo céu num
longo traço luminoso, recurso que não tem “serventia” astronomicamente falando — tudo era pura inexperiência minha. Felizmente, duas delas foram feitas com
curta exposição e o fenômeno foi registrado fielmente, apesar de eu, por
descuido, ter fotografado em preto e branco. Curiosamente, das três únicas fotos postadas desse eclipse na Internet até o momento em que redijo este texto, uma é a minha e as outras duas são do John Westfall, da Associação de Observadores Lunares e Planetários (ALPO), e a última do Ira Serkes — o único a fotografar em cores numa bela exposição da Lua nas cores típicas no auge do eclipse, em meio às 3 estrelas da garra do Escorpião, foto feita a partir de Berkeley Hills (foto acima) Quanto à mim, a melhor foto que fiz foi na fase inicial do eclipse, por volta das 1:30hs, quando a Lua recebia a “mordida” da sombra da Terra. (foto abaixo)
Notar a curvatura da sombra da Terra projetada na Lua, a mesma observada por Pitágoras e Aristóteles, séculos antes de Cristo! |
As fotos, num total de oito, foram feitas através do recurso “T”, ou seja, com o obturador aberto num tempo pré-determinado, mas aleatório. Como não dispunha de um tripé para a máquina, através de um pequeno pedaço de madeira colocado sob ela, eu a inclinei e apontei para a lua. Após, por meio de um grampo de cabelo, eu o introduzi no orifício destinado a travar o botão disparador, tendo o cuidado de tapar a objetiva com um cartão escuro, que só era retirando após estar certificado de que tudo estava nos conformes.
"Rubycon" - Tangerine Dream |
Todo este processo era complicado em meio à escuridão, mas gratificante pelos resultados que obteria. O maior problema se dava com o visor, devido ao fato de ele ser pelo sistema de espelhos viewfinder, e por isso mesmo, à noite era praticamente impossível mirar imagens com pouca luz — as estrelas, não se podia vê-las, ao contrário da Lua que já na fase nova era visualizada, o que me permitia ser enquadrada no visor, mas não sem muitas dificuldades.
Lembro-me que foi em algum dia no início desse mês que comprei um disco de uma banda precursora da Space Music, e foi sua música que mentalmente embalou esta noite do eclipse , a música viajante e espacial do ótimo disco “Rubycon” do Tangerine Dream (foto), música que literalmente grudou na minha cabeça! Aqueles teclados marcantes da “Part II”, executados com looping e ecos bem colocados, reverberavam em minha cabeça nesta madrugada, casando-se com perfeição com o momento que eu vivia — uma perfeita trilha sonora compondo o fantástico fenômeno!
Tu pisavas nos astros distraído...
Recordo-me que nesta caixa d’água, por esta época, um certo dia o meu irmão Weber tentou dar um pulo de sua borda para atingir o murinho em frente, mas calculou mal, e errando o passo, caiu um dos tombos mais feios que eu já vi uma criança levar em minha vida.
— Tá
louco, Weber! Está querendo se matar?!
— Aiii,
pisei falso! Merda!
Ele deu com a parte de baixo da perna na quina do murinho, e virando numa pirueta, se esborrachou no chão do outro lado bem em baixo do pé de manga. Não bateu a cabeça mas ficou um afundamento roxo horrível em sua canela. Minha mãe, lá da cozinha, ouviu o baque do tombo e veio correndo desesperada ver o que havia acontecido.
— O que foi, meu Deus do céu?!
— Eu
errei o pé no murinho, mãe, e caí!
—
Você quer matar a gente e susto, menino?! Eu ouvi lá da cozinha o tombo!
Felizmente não foi nada de mais grave, e com um punhado de salmoura colocado no ferimento, tudo se resolveu.
Gravura de John Tenniel,
o tombo de Tales de Mileto |
Este tombo, guardadas as devidas proporções, me lembrou o célebre acidente do astrólogo Tales de Mileto... Ah, o Tales de Mileto, aquele que acreditava que a Terra era como um disco boiando num oceano!... o mesmo que, certa vez, caminhando e olhando paras as estrelas completamente absorto, despencou num pequeno poço d’água à sua frente. A diferença é que meu irmão, ao contrário de mim e do Mileto, nunca ligou para estrelas e eclipses, que nada no céu o atraía... Curiosamente, o historiador grego Heródoto escreveu que, certa vez, o Mileto previu um eclipse que durante
uma guerra entre os medos e os lídios. E o incrível é que, após o eclipse,
os soldados de ambos os lados, assustados com o fenômeno no céu, abaixaram suas armas e declaram paz!... (na
gravura de John Tenniel, o Mileto, prestes a levar um tombo ...)
—
Presta mais atenção quando for ficar subindo por esses lugares aí!
— Tá
bão, mãe...
— Se fosse
o Wenilton que estivesse num lugar alto e distraído olhando pro céu, vá lá, mas
você tem os pés no chão, menino, e não gosta dessas coisas!
— Ô, mãe,
não precisa zoar comigo, pô!
— E não é verdade, Wenilton?!
O
Weber riu, quando devia estar chorando de dores...
É oportuno lembrar aqui uma situação
semelhante à do Mileto, porém, mais cômica, e envolvendo o nobre Pedro Banana,
digo, o D. Pedro II, que, um certo dia, quando
caminhava pela Quinta da Boa Vista a conversar sobre Astronomia com um
certo Dr. Camilo Arnold, se virara para observar uma divina mulata que passara
por eles, e deu uma tremenda cabeçada num daqueles grossos postes de ferro de
iluminação elétrica, instalados pela tabula rasa do Pereira Passos!...
— Não
lembra o que disse o Raul Seixas, Weber?
— O
quê ele disse?
—
Quem não tem visão bate a cara contra o muro!...
— A,
vai caçar sapo, Wenilton!
Carpindo horta...
Estes ferimentos eram muito comuns nesta época,
Julião Mathias e Wenilton Daltro, janeiro de 1975 |
E falando desse rastelinho, ele me remete à citada horta, pois o trabalho de mantê-la e capiná-la cabia à nós meninos, que, aliás, detestávamos fazer isso, pois além de impedir-nos de brincar era um trampo danado de ruim já que tínhamos de manejar pesadas enxadas, enxadões, foices e rastelos, o que nos deixava com as mãos cheias de bolhas e calos. Para variar, tudo o que se plantava ali não ia para frente, e me recordo das alfaces, das cenouras e salsas mirradas que mal vingavam.
Como se vê, lá em casa, só eu mesmo me interessava pela Lua, enquanto que meu pai sequer tinha a noção de que a Lua — a regente de todas as plantas —, na fase cheia era a melhor para a semeadura das hortas, e
Barka |
E
relembrando tudo hoje, chego a crer que um tombo como o do Weber, ou até mesmo
um chute no rastelinho era menos doloroso que ficar tratando
desta horta sob o Sol, suando às bicas, as mãos doloridas, e, acima de tudo, fulo da vida por saber que lá fora nossos amigos
brincavam livres e felizes pelos arrabaldes da Usina...
Enfim, 100 anos que eu permaneça neste mundo não serão suficientes para me fazer esquecer as emoções desta noite tão especial, noite esta que tive ao meu lado a minha sócia fiel desse período mágico, a minha querida pastora Barka, que com notável paciência, me fez companhia por toda a frígida noite do eclipse. Sim, amigos, sim, ela ficou ali, na dela, entretida consigo mesmo, serenando, se coçando e se lambendo de quando em quando, naquela invejável condição de, ao contrário de mim, não ter nenhuma dúvida metafísica...
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Enfim, 100 anos que eu permaneça neste mundo não serão suficientes para me fazer esquecer as emoções desta noite tão especial, noite esta que tive ao meu lado a minha sócia fiel desse período mágico, a minha querida pastora Barka, que com notável paciência, me fez companhia por toda a frígida noite do eclipse. Sim, amigos, sim, ela ficou ali, na dela, entretida consigo mesmo, serenando, se coçando e se lambendo de quando em quando, naquela invejável condição de, ao contrário de mim, não ter nenhuma dúvida metafísica...
* Este capítulo faz parte do Volume 8 - Childhood's end ― janeiro de 1975 a abril de 1977". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.
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