A menina “invocada” ― Paixão por duas amigas
inseparáveis... ― Dislexia ou falta de atenção? ― O Bêbado e seus
“ensinamentos”... ― Ela quis amor, eu dei humor!... ― A vida imita a arte... ―
A ironia do destino... ― Um insight fulminante! ― Uma Gata
Borralheira às avessas...
construída pela qualidade do afeto."
(Marcelo Cunha Bueno, educador)
"O passado nem sempre passou.
O presente nem sempre ficou e o
hoje nem sempre é o agora.
Tudo o que vai volta."
(Reynaldo Gianecchinni, ator, 2012)
"O valor das coisas não está no tempo que elas
duram, mas na intensidade com que acontecem.
Por isso existem momentos inesquecíveis,
coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."
(Fernando Pessoa)
O grupo escola "Ignácio Zurita Jr." na década de 1970. |
Em meu ultimo ano de grupo escolar — tempo em que se desenrola esta ação — pairava ainda sobre o país o fantasma da temível Ditadura Militar, sistema que ia de vento em popa, em franco processo de recrudescimento, embora nós crianças, orçando pelos 10 anos, mal sabíamos o que ela significava e o que podia nos causar... “Porões da Ditadura”? Não, não, amigo! Mal conhecíamos os porões da escola, por sinal, lugares sombrios, fétidos e úmidos que evitávamos frequentar...
Mas, mudando de assunto, e já falando de velhos programas humorísticos de TV, dentre os que costumava assistir nestes “anos de chumbo” em minha infância na Usina, o “Faça humor, não faça a guerra” da Rede Globo foi o que mais gratas recordações me deixou. Exibido a partir de junho de 1970, às sextas-feiras às 20:30 hs, foi o primeiro humorístico desta emissora a contar a com a participação do comediante Jô Soares; por sinal, um dos três protagonistas da presente história. Costumo dizer que sou mais Walter Clark que Boni – é que o suprassumo do humor teve seu apogeu na era Clark, justamente quando o “Faça humor...” dava ibope igual ou maior que a própria Ditadura...
Abertura do "Faça humor, não faça a guerra".
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Renato Corte Real
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Em 1971 — o ano em que se passa a presente história –, o “Faça humor...” passou a ser exibido às segundas-feiras, no mesmo horário, e, cativo que era do programa, jamais deixava de assisti-lo. Sob nova direção, o programa começou a apresentar seus primeiros tipos fixos, e, dentre eles, destacava-se o célebre “Bêbado” interpretado pelo Jô Soares, personagem este que jamais me esqueci, pois, como disse, tenho uma curiosa história ligada à ele, que é o tema deste capítulo. Infelizmente — numa palavra, uma verdadeira desgraça! —, em nenhum dos cinco tapes que se salvaram da Rede Globo naquele desgraçado incêndio de 4 de junho de 1976, havia um quadro com o Bêbado! Grandiosíssima desgraça!
Este ano seria, então, o meu último ano "Grupo Zurita”, e foi ali, na 4ª série do 1º grau, que tudo se passou.
O pathos daqueles instigantes tempos ainda me permite contar com fidelidade esta tragicômica história e suas sensações. Portanto, sem mais demora, volvamos à ela!
Eu e a Dona Adilis Poletti, em 2006
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Mas o que haveria por detrás daqueles olhares, que intenções teria ela? Muito provavelmente, seus olhares não passavam de um tímido projeto de amor, projeto este que, em breve, seria abrupta e estupidamente abortado por um lamentável momento de besteira meu, como se verá. Não que ela fosse necessariamente uma desfavorecida da natureza, mas eu não a achava bonita – era mais a insistência de seus olhares o que me irritava. Dizer que eu não lhe permitia o direito de me desejar, seria faltar com a verdade que devo ao meu leitor, mas eu jamais aprovaria tê-la como minha namoradinha na escola, e os amigos logo verão o porquê. Reconheço que eu também não era um padrão de beleza, e eu era magro como a menina, porém, mais “magro de ruindade” que magro mesmo!...
O que me espantava nessa menina era a ausência de sorriso ─ não me recordo de vê-la feliz um dia sequer ─ era, como se diz, uma menina “séria”. Não ia além disso e assim permanecia, contendo bocejos ocasionais. Esguia, longilínea e desprovida dos mesmos encantos de outras meninas da escola que eu admirava, devia mortificar-se intimamente por algo, em segredo ─ se tinha amigas íntimas, isso se apagou de minha mente.
Ao alto, a professora Aidil Devite, com seus alunos do
3º ano, dois anos depois em que se passa esta história
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Ambas, a Martha e a Jocimara (eram estas as suas graças) eram amigas inseparáveis e estavam entre as meninas mais belas do “Zurita”, de modo que a Eunice (acho que era este era o nome da, perdoem-me, menina “invocada”) não era mesmo páreo para as duas.
Já o disse aqui, mais de uma vez, que a Martha foi o primeiro grande amor de minha vida; aliás, era a primeira vez que eu me apaixonava por uma menina, paixão esta que ficou marcada na lembrança associada à belíssima balada “Another Day” do Paul McCartney, grande sucesso neste ano.
Por anos a fio, toda vez ouvia esta canção – a mais bela do Paul, para mim –, eu conseguia saborear o mesmo sentimento que tinha na época: o sabor do primeiro amor, aquela sensação toda, aquela ternura aconchegante!... Mas, infelizmente, em alguma data maldita, na maldita década de 1990, este sentimento sumiu! Sim, eu sei que ele está aqui dentro hibernado, em algum cantinho do coração, latente e resguardado, e um dia, do mesmo modo que se foi, sem porquê, vai voltar para nunca mais partir... Lembro-me que com a voz de minha finada mãe se deu o mesmo: ela, numa determinada época, sumiu de minha mente, e, um belo dia, cerca de duas décadas depois, voltou, e, tenho a certeza, voltou "para nunca mais partir..."
Dislexia ou falta de atenção?
O autor, na época |
O quadro sempre se iniciava com o personagem recebendo um telefonema de sua amante argentina, e ele costumava conversar com ela sempre embriagado e fumando um cigarro que ficava pendente num dos cantos da boca.
Em todos os telefonemas que dava, a amante o irritava às raias da paciência dizendo que tinha feito isso, que tinha feito aquilo – sempre coisas erradas, besteiras, gastos exorbitantes em lojas, etc. –, e tanto falava que, em certo momento, não mais suportando os aborrecimentos, ele dizia à ela que não tinha problema, que não estava preocupado com o que ela fizera, mas, como se a irritação da amante não parasse por aí, não se contendo, pedia um instante a ela e, para extravasar a raiva, saía para quebrar todos os objetos que havia em sua volta, seja na mesa, seja na estante atrás de si.
Depois, mais calmo, voltava ao telefone e... novamente a esposa começava com os irritantes assuntos... Daí, ele começava por insultá-la, desfiando um rosário palavras esdrúxulas, que mais pareciam palavrões, como biltre, lorpa, torpe, bronca, parva, pulha, balorda, néscia, etc. O engraçado é que dizia tudo possesso, como que babando, com o cigarro quase caindo da boca!... E eu rachava o bico!
Não me recordo com precisão se era exatamente assim o quadro, mas o que eu sei dizer é que eu rolava de rir toda vez que o assistia. Vale dizer que, intencionalmente, o Jô escolheu palavras pouco usadas e conhecidas, de modo que a maioria das pessoas que ouvisse seus “xingamentos” ficava confusa com o que ele estava dizendo, embora cressem que fossem mesmo palavras de baixo calão...
Ao alto e à direita, o bedel Wilson Gambini, eu e abaixo de mim a dona Adilis
Poletti. No extremo oposto desta, a dona Aidil Devite. Jornal Tribuna do Povo, 2006.
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Por uma coincidência que não qualificarei de notável, atinei que a menina se colocava em minha vida mais ou menos como a esposa do Bêbado, ou seja, alguém que nos atazana a vida; e, de fato, eu me via irritado tal como o personagem do Jô, que “não deixava barato” e revidava. Sim, era assim que eu deveria agir com a menina! Resolvi, então, à hora do recreio, pôr mãos à obra e praticar a lição “ensinada” pelo mestre...
Não amigos, não enchi a cara nem quebrei os objetos que havia em minha volta na classe, mas, sem pensar duas vezes, arranquei uma folha do caderno e escrevi todos aqueles palavrões que o Bêbado dizia, e depois, sem medir consequências, mandei o Baixinho entregar para a menina e dizer que era eu que havia mandado entregar... (antes não entregasse!...)
Leitura silenciosa e cabisbaixa... olhos aparentemente arregalados... lábios mordidos... Depois, resmungos embargados, quase inaudíveis... dedos tamborilando na carteira... Estranhamente, nenhum olhar fuzilante dirigido à mim!...
Após lê-lo, seus ares de indignada eram indisfarçáveis, embora muito provavelmente não soubesse o real significado daquelas palavras – não entendeu, mas certamente deve ter intuído que coisa boa não era...
Eu e o bedel Wilson Gambini.
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— Ih, Wenilton, se antes ela cantava “Você” do Tim Maia, agora ela deve estar cantando “Lá se vão meus anéis” dos Originais do Samba!...
Ri, mas fiquei meio que boiando. Em seguida, ele emendou:
— Mas, olha, Wenilton, acho que daqui para a frente ela vai cantar: “Vocêêêê aaaabusou...”...
Aí foi o Baixinho que riu...
Desnecessário dizer que as três músicas eram grande sucesso nas rádios nesta época...
Mas, enorme imprudência foi o meu ato, porque, como eu, ela também não pensou duas vezes e indignada que estava foi correndo entregar o bilhetinho para a professora Adilis, mal ela adentrou a classe!
Vista do pátio a partir do refeitório da escola. Década de 1970.
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Hoje, vejo que poderia ter sido bem pior, pois ela poderia ter me entregado ao temível diretor Cássio Gonzaga, aquele que, de longe, mal surpreendia um aluno aprontado em meio ao pátio da escola, ia se aproximando rapidamente, e por meio de muxoxos, gestos bruscos e palavras rápidas, fazia-o ficar como que congelado e cabisbaixo por uns minutos no lugar onde estava!... Era quando os alunos das redondezas se esbaldavam com a cena!... E o “Seu” Cássio era uma figura e tanto, um personagem único, profissional inconcebível hoje, figura humaníssima que só aqueles bons tempos da escola “risonha e franca” podia proporcionar — a um tempo, educador rígido e pessoa cômica, talvez sem o saber...
Porém, felizmente, daí para diante a menina “sossegou seu facho” de vez e nunca mais se atreveu a lançar para mim aqueles olhares insistentes.
Caso fosse mesmo apaixonada por mim, deve ter sido algo doloroso para ela ver o seu amor morrer assim, de uma forma tão grosseira e estúpida.
O ano ia acabando com "Imagine" do John Lennon bombando nas rádios, e nossos sonhos iam se aproximando do fim em nosso querido grupo... Neste meio tempo, nos finais de tarde após as aulas, fui fazer o cursinho de Preparatório para prestar o exame de admissão na escola “Cesário Coimbra” no começo do ano seguinte, cursinho este que, como já o disse aqui, era ministrado pelo marido da professora Adilis, o saudoso João Poletti, mestre como poucos, educador que, como o citado Cássio Gonzaga, "já não se fazem mais".
Quanto à pobre Eunice, também nunca mais a revi; mas, depois, toda vez que eu recordava o episódio, a loucura que fiz para ela, sempre meneava a cabeça rindo comigo, lembrando que, as vezes, a vida parece que imita a arte...
O pátio da escolae, ao fundo, o refeitório . Década de 1950. |
Pois bem. Um certo dia do ano de 1991, eu estava jantando à mesa da cozinha, enquanto uma nova empregada lavava a louça, estando de costas para mim. Há pouco eu havia retornado à Araras, após trabalhar por quatro anos em São José dos Campos, quando passei a novamente morar com minha família.
Num certo momento, a empregada se virou o começou a puxar um papo comigo enquanto enxugava pratos. Disse-lhe que ela cozinhava muito bem, e que o jantar estava uma delícia, no que ela me agradeceu. Abri uma cerveja e fiquei papeando com ela. No decorrer da conversa, mostrou-se ela uma pessoa de agradável conversa — suas palavras eram ditas calmamente, como que a afagar os ouvidos. Além de tudo, era refinada e educadíssima, além de ser muito simpática, embora não fosse um “padrão de beleza” como mulher. Conversamos um pouco, falando de banalidades. Terminei minha refeição, despedi-me dela e fui para o meu quarto.
Mas, à esta altura, perguntará o curioso leitor aonde pretendo chegar. Calma, amigo, não precipitemos o desfecho desta história. Sigamos com paciência e método.
O "Grupo Zurita" hoje.
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Hoje, quando me recordo deste episódio, penso nela com carinho, e, meneando a cabeça, suspiro e sorrio de leve comigo mesmo... Vendo tudo à distância, com o olhar crítico da vivência, como num conto de fadas, concluo que ela se tornara uma mulher linda, uma moça agradabilíssima e refinada – e quantas meninas feiosas não vi em minha infância que se tornaram belas mulheres quando adultas! A ideia generalizada de que “a primeira impressão é a que fica”, se desfizera feito bruma — o passar dos anos fizera dela meio que uma espécie de Gata Borralheira às avessas: de aluna feia e ranheta — uma desfavorecida da natureza –, o tempo se mostrou generoso e a transformou numa linda e simpática, diria, secretária do lar!...
E hoje, esta moça, é uma mulher que, acredito piamente faria muito feliz qualquer homem que a tivesse por companheira, e já o deve ter feito há muito tempo, com certeza. Infelizmente, uma besteirinha de criança impediu que as pazes fossem feitas e dessem origem à uma bonita amizade. Para onde ela foi, não sei, e nunca mais a vi pela cidade, mas ela está por aí – e, como disse, o mundo é pequeno e quem sabe num possível próximo encontro, nós criemos coragem e recordemos deste velho episódio e, meneando a cabeça, daremos então boas risadas.
De quando em quando, Eunice, eu penso em você quando menina ─ naqueles nossos lindos e despreocupados dias de estudantes de gruo escolar ─, e, pelo conceito equivocado que tive de você e pelo que te fiz, saiba que eu me sinto hoje o pior dos seres ─ um remorso tremendo me mortifica ─, e só me perdoo porque fui completamente ingênuo nos meus atos, portanto, sem maldade alguma ─ coisas de criança, querida, entende, não é?
Enfim, cara Eunice, não estou certo se você lerá um dia estas sinceras palavras, onde pretendo me retratar contigo e pedir que me perdoe. Mas, de coração, onde quer que você esteja, querida, saiba que eu te considero muito e tenho o maior carinho por ti e pelo que hoje tu és! Em nome deste adulto, perdoe a lamentável insensatez daquele menino ingênuo que mal debutava no amor e não tinha muita noção do que fazia. Assim, querida, me permitirá então que eu retire estes velhos espinhos do meu, do teu, dos nossos corações...
But I'm not the only one