quinta-feira, 22 de maio de 2014

FAÇA AMOR, NÃO FAÇA A GUERRA!...

A menina “invocada” ― Paixão por duas amigas inseparáveis... ― Dislexia ou falta de atenção? ― O Bêbado e seus “ensinamentos”... ― Ela quis amor, eu dei humor!... ― A vida imita a arte... ― A ironia do destino...  ― Um insight fulminante! ― Uma Gata Borralheira às avessas...

"A memória afetiva é
construída pela qualidade do afeto."
(Marcelo Cunha Bueno, educador)

"O passado nem sempre passou.
O presente nem sempre ficou e o
hoje nem sempre é o agora.
Tudo o que vai volta."
(Reynaldo Gianecchinni, ator, 2012)

"O valor das coisas não está no tempo que elas
duram, mas na intensidade com que acontecem.
Por isso existem momentos inesquecíveis,
coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."
(Fernando Pessoa)



O grupo escola "Ignácio Zurita Jr." na década de 1970.

Em meu ultimo ano de grupo escolar  tempo em que se desenrola esta ação  pairava ainda sobre o país o fantasma da temível Ditadura Militar, sistema que ia de vento em popa, em franco processo de recrudescimento, embora nós crianças, orçando pelos 10 anos, mal sabíamos o que ela significava e o que podia nos causar... “Porões da Ditadura”?  Não, não, amigo! Mal conhecíamos os porões da escola, por sinal, lugares sombrios, fétidos e úmidos que evitávamos frequentar...

Mas, mudando de assunto, e já falando de velhos programas humorísticos de TV, dentre os que costumava assistir nestes “anos de chumbo” em minha infância na Usina, o “Faça humor, não faça a guerra” da Rede Globo foi o que mais gratas recordações me deixou. Exibido a partir de junho de 1970, às sextas-feiras às 20:30 hs, foi o primeiro humorístico desta emissora a contar a com a participação do comediante Jô Soares; por sinal, um dos três protagonistas da presente história. Costumo dizer que sou mais Walter Clark que Boni – é que o suprassumo do humor teve seu apogeu na era Clark, justamente quando o “Faça humor...” dava ibope igual ou maior que a própria Ditadura...

Abertura do "Faça humor, não faça a guerra".
Dos humorísticos da década anterior, pouco ou quase nada recordo, e dos que ficaram, relembro o grande Bronco, da "Família Trapo”, comediante incrível que deixou muitas saudades. Houve também outros humorísticos ótimos na primeira metade desta década, como o “Balança, mas não cai”, “Chico City”, “Satyricon” e os “Insociáveis, mas o “Faça humor...”, assim como o “Chico...”, era ótimo, sendo considerado atualmente como o primeiro programa de humor moderno da televisão brasileira e um marco no gênero, inclusive, sendo escolhido melhor programa de humor em várias premiações, além de ser um dos programas favoritos do próprio Roberto Marinho.


Renato Corte Real
Um outro quadro que eu me divertia no “Faça humor...”, era o também saudoso Renato Corte Real, no papel do faxineiro “Humirde”, que tinha um bordão que foi grande sucesso na época: “Eu sou humirde!”, que a meninada, só na base do sarro, vivia dizendo uns aos outros na escola, principalmente quando surgia uma faxineira varrendo pelos corredores... Hoje, passados tantos anos, e revendo no You Tube velhos quadros com o Renato, acredito mesmo que ele foi um dos maiores e mais engraçados humoristas que teve este país, aliás, ele tinha estampado no rosto o semblante de humorista nato — sem dúvida, um verdadeiro gênio do humor!

Em 1971  o ano em que se passa a presente história –, o “Faça humor...” passou a ser exibido às segundas-feiras, no mesmo horário, e, cativo que era do programa, jamais deixava de assisti-lo. Sob nova direção, o programa começou a apresentar seus primeiros tipos fixos, e, dentre eles, destacava-se o célebre “Bêbado” interpretado pelo Jô Soares, personagem este que jamais me esqueci, pois, como disse, tenho uma curiosa história ligada à ele, que é o tema deste capítulo. Infelizmente — numa palavra, uma verdadeira desgraça!  —, em nenhum dos cinco tapes que se salvaram da Rede Globo naquele desgraçado incêndio de 4 de junho de 1976, havia um quadro com o Bêbado! Grandiosíssima desgraça!

Este ano seria, então, o meu último ano "Grupo Zurita”, e foi ali, na 4ª série do 1º grau, que tudo se passou.

O pathos daqueles instigantes tempos ainda me permite contar com fidelidade esta tragicômica história e suas sensações. Portanto, sem mais demora, volvamos à ela!


A menina “invocada”


Eu e a Dona Adilis Poletti, em 2006
Lembro-me que, dentre os alunos de nossa classe, que neste ano era dirigida pela minha querida professora Adilis Poletti, havia uma menina, cuja história jamais esqueci  ─ mesmo situada nas lonjuras da distante infância, quase perdida e esquecida nos limbos de minha biografia, a história marcou deveras. Aliás, neste último ano de Grupo houve uma mudança sensível na distribuição dos alunos: pela primeira fez criaram turmas mistas de alunos juntando meninos e meninas numa mesma classe. A molecada adorou; as meninas idem; eu também, mas...

─ “Mas” o quê, Wenilton?!

Explico. Da tal menina “cuja história jamais esquecerei”, vem o desabafo “mas...”. Oras! Eis-me aqui dizendo sem dizer, incitando a curiosidade, deixando que os leitores imaginem coisas... Acalmem-se, amigos, que eu chego lá! Pois bem. Era a “tal menina” de estatura mediana, magra, de nariz alongado e que tinha um cabelo enorme, bem ao estilo da cantora Maria Bethânia, cabelo volumoso, espesso e deveras longo. Um cabelo que cairia muito bem numa menina rockeira, mas, naquela altura, nenhum de nós meninos ainda, ao que eu saiba, havia sido fisgado pelo tentador movimento da Contracultura. À propósito, a enorme cabeleira da menina estava mais para a juba da Yoko Ono que o da Bethânia, mas, ao contrário, eram cabelos castanhos, não tão escuros, mas, igualmente, quase escondia seus olhos aos modos da Yoko ─ o que lhe dava um ar misterioso, felino, principalmente quando, através da abertura formada pela cortina de cabelos ela olhava discretamente para mim...

O que me espantava nessa menina era a ausência de sorriso ─ não me recordo de vê-la feliz um dia sequer ─ era, como se diz, uma menina “séria”. Não ia além disso e assim permanecia, contendo bocejos ocasionais. Esguia, longilínea e desprovida dos mesmos encantos de outras meninas da escola que eu admirava, devia mortificar-se intimamente por algo, em segredo ─ se tinha amigas íntimas, isso se apagou de minha mente.


 ― Caramba, Baixinho, parece que essa menina invocou comigo!

 ― Aí tem, Wenilton!...

De repente, eu parava de escrever, e, instintivamente, me voltava para sua carteira, e, mal punha meus olhos nela, ela, por sua vez, deixava cair sobre mim um olhar rápido e furtivo...

― Caramba, Baixinho!

Mas o que haveria por detrás daqueles olhares, que intenções teria ela? Muito provavelmente, seus olhares não passavam de um tímido projeto de amor, projeto este que, em breve, seria abrupta e estupidamente abortado por um lamentável momento de besteira meu, como se verá. Não que ela fosse necessariamente uma desfavorecida da natureza, mas eu não a achava bonita – era mais a insistência de seus olhares o que me irritava. Dizer que eu não lhe permitia o direito de me desejar, seria faltar com a verdade que devo ao meu leitor, mas eu jamais aprovaria tê-la como minha namoradinha na escola, e os amigos logo verão o porquê. Reconheço que eu também não era um padrão de beleza, e eu era magro como a menina, porém, mais “magro de ruindade” que magro mesmo!...

O que me espantava nessa menina era a ausência de sorriso ─ não me recordo de vê-la feliz um dia sequer ─ era, como se diz, uma menina “séria”. Não ia além disso e assim permanecia, contendo bocejos ocasionais. Esguia, longilínea e desprovida dos mesmos encantos de outras meninas da escola que eu admirava, devia mortificar-se intimamente por algo, em segredo ─ se tinha amigas íntimas, isso se apagou de minha mente.




Paixão por duas amigas inseparáveis...


Ao alto, a professora Aidil Devite, com seus alunos do 
3º ano, dois anos depois em que se passa esta história

Explicando então a "dívida" do parágrafo anterior, convém esclarecer que, neste mesmo ano, recordo-me que eu tinha uma enorme queda por duas belas meninas da classe vizinha  uma outra classe de 4º ano, a da professora Aidil Devite , de modo que a menina “invocada” não tinha mesmo chance alguma de ter algo comigo.

Ambas, a Martha e a Jocimara (eram estas  as suas graças) eram amigas inseparáveis e estavam entre as meninas mais belas do “Zurita”, de modo que a Eunice (acho que era este era o nome da, perdoem-me, menina “invocada”) não era mesmo páreo para as duas.

Já o disse aqui, mais de uma vez, que a Martha foi o primeiro grande amor de minha vida; aliás, era a primeira vez que eu me apaixonava por uma menina, paixão esta que ficou marcada na lembrança associada à belíssima balada “Another Day” do Paul McCartney, grande sucesso neste ano. 

Por anos  a fio, toda vez ouvia esta canção – a mais bela do Paul, para mim –, eu conseguia saborear o mesmo sentimento que tinha na época: o sabor do primeiro amor, aquela sensação toda, aquela ternura aconchegante!... Mas, infelizmente, em alguma data maldita, na maldita década de 1990, este sentimento sumiu! Sim, eu sei que ele está aqui dentro hibernado, em algum cantinho do coração, latente e resguardado, e um dia, do mesmo modo que se foi, sem porquê, vai voltar para nunca mais partir... Lembro-me que com a voz de minha finada mãe se deu o mesmo: ela, numa determinada época, sumiu de minha mente, e, um belo dia, cerca de duas décadas depois, voltou, e, tenho a certeza, voltou "para nunca mais partir..."




Dislexia ou falta de atenção?

Permitam-me abrir um parágrafo aqui. O finado cientista Carl Sagan, em seu livro “Os Dragões do Éden”, disse em certo capítulo que, reconhecendo-se “um pouco afásico e inteiramente disléxico”, fazia “uma série de confusões verbais sem significado simbólico, como misturar Schumann e Schubert", os dois grandes compositores clássicos do passado.

Escrevi isto porque, um certo dia, atinei que eu também tinha nestes tempos um erro algo semelhante ao do Sagan, mas um erro, diria, anagramático, pois eu confundia o nome das duas professoras citadas nesta história, as donas Adilis e Aidil, e sempre trocava seus nomes quando me dirigia à elas... Vale lembrar que, neste mesmo ano, minhas aulas para a preparação da Primeira Comunhão na Usina foram ministradas pela professora vizinha dona Aidil, a mestra dos meus dois amores. Anos antes disso, ainda morando na cidade, em 1966, eu fazia uma confusão algo semelhante com o nome de um dos meus primeiros amigos de infância: ele se chamava Ariovaldo, e eu o chamava de Aerovaldo!... Muito provavelmente eu associava seu nome à 
O autor, na época
“aéreo”, lembrando que eu era maluco por aviões já nesta época, além de ser um pouco “aéreo” também... Lembro-me também que quando a Copersucar lançou o açúcar Cristalsucar, em 1969, o bordão da campanha de divulgação era "Açúcar nele!". Eu lia isto nas propagandas feitas em adesivos de papel, e ele me remetia ao nome de uma vizinha nossa, a dona Nelly Lucrédi, e isto muito certamente ocorria pela semelhança fonética entre "nele" e "Nelly", e, estranhamente, eu não conseguia ver "nele" como pronome!... Foram estas as três velhas confusões semânticas que nunca me saíram da cabeça desde estes tempos de menino.

Enfim, amigos, eu não era nem um pouco afásico, sequer disléxico, mas, então, apenasmente um grande desatento!...



O Bêbado e seus “ensinamentos”...


Mas, finalmente, vou aludir ao terceiro protagonista desta história, o citado Jô Soares em seu personagem o Bêbado, no quadro do “Faça Humor...”

O quadro sempre se iniciava com o personagem recebendo um telefonema de sua amante argentina, e ele costumava conversar com ela sempre embriagado e fumando um cigarro que ficava pendente num dos cantos da boca. 

Em todos os telefonemas que dava, a amante o irritava às raias da paciência dizendo que tinha feito isso, que tinha feito aquilo – sempre coisas erradas, besteiras, gastos exorbitantes em lojas, etc. –, e tanto falava que, em certo momento, não mais suportando os aborrecimentos, ele dizia à ela que não tinha problema, que não estava preocupado com o que ela fizera, mas, como se a irritação da amante não parasse por aí, não se contendo, pedia um instante a ela e, para extravasar a raiva, saía para quebrar todos os objetos que havia em sua volta, seja na mesa, seja na estante atrás de si. 

Depois, mais calmo, voltava ao telefone e... novamente a esposa começava com os irritantes assuntos... Daí, ele começava por insultá-la, desfiando um rosário palavras esdrúxulas, que mais pareciam palavrões, como biltre, lorpa, torpe, bronca, parva, pulha, balorda, néscia, etc. O engraçado é que dizia tudo possesso, como que babando, com o cigarro quase caindo da boca!... E eu rachava o bico! 

Não me recordo com precisão se era exatamente assim o quadro, mas o que eu sei dizer é que eu rolava de rir toda vez que o assistia. Vale dizer que, intencionalmente, o Jô escolheu palavras pouco usadas e conhecidas, de modo que a maioria das pessoas que ouvisse seus “xingamentos” ficava confusa com o que ele estava dizendo, embora cressem que fossem mesmo palavras de baixo calão...



Ela quis amor, eu dei humor!...

Ao alto e à direita, o bedel Wilson Gambini,  eu e abaixo de  mim a dona Adilis
Poletti. No extremo oposto desta, a dona Aidil Devite. Jornal Tribuna do Povo, 2006.
Mas, retornemos à “menina dos olhos”... Os dias se passavam, e eu ia chegando à conclusão de que não era cisma minha e ela tinha mesmo alguma “pendência” comigo, e o Baixinho jurava que ela era apaixonada por mim. Um dia, não suportando mais seus teimosos olhares, resolvi tomar uma atitude, mas sem saber que atitude tomar à princípio.

Por uma coincidência que não qualificarei de notável, atinei que a menina se colocava em minha vida mais ou menos como a esposa do Bêbado, ou seja, alguém que nos atazana a vida; e, de fato, eu me via irritado tal como o personagem do Jô, que “não deixava barato” e revidava. Sim, era assim que eu deveria agir com a menina! Resolvi, então, à hora do recreio, pôr mãos à obra e praticar a lição “ensinada” pelo mestre...

Não amigos, não enchi a cara nem quebrei os objetos que havia em minha volta na classe, mas, sem pensar duas vezes, arranquei uma folha do caderno e escrevi todos aqueles palavrões que o Bêbado dizia, e depois, sem medir consequências, mandei o Baixinho entregar para a menina e dizer que era eu que havia mandado entregar... (antes não entregasse!...)

Leitura silenciosa e cabisbaixa... olhos aparentemente arregalados... lábios mordidos... Depois, resmungos embargados, quase inaudíveis... dedos tamborilando na carteira... Estranhamente, nenhum olhar fuzilante dirigido à mim!...

Após lê-lo, seus ares de indignada eram indisfarçáveis, embora muito provavelmente não soubesse o real significado daquelas palavras – não entendeu, mas certamente deve ter intuído que coisa boa não era...

Eu e o bedel Wilson Gambini.
Meu amigo, o Baixinho, ao notar a reação da pobre menina, também mordendo os lábios, mas para não rir, veio até mim e me levou pelos braços até o corredor, onde encontramos o bedel, o “Seu” Wilson Gambini, meu grande amigo. O Baixinho, rindo às bandeiras despregadas agora, o deixou ciente do caso, e ele, rindo também, me disse: 

 Ih, Wenilton, se antes ela cantava “Você” do Tim Maia, agora ela deve estar cantando “Lá se vão meus anéis” dos Originais do Samba!... 

Ri, mas fiquei meio que boiando. Em seguida, ele emendou: 

 Mas, olha, Wenilton, acho que daqui para a frente ela vai cantar: “Vocêêêê aaaabusou...”... 

Aí foi o Baixinho que riu...

Desnecessário dizer que as três músicas eram grande sucesso nas rádios nesta época...

Mas, enorme imprudência foi o meu ato, porque, como eu, ela também não pensou duas vezes e indignada que estava foi correndo entregar o bilhetinho para a professora Adilis, mal ela adentrou a classe!


Vista do pátio a partir do refeitório da escola. Década de 1970.
E, como era de se esperar, a coisa não morreu por aí: embora eu fosse um aluno “exemplar”, a mestra me passou um bom corretivo – que eu também não me lembro qual –, e não fui de castigo atrás da porta por pouco! Mas que eu merecia um belo pontapé bem aplicado no meio dos fundilhos, ah, isso eu merecia!... 

Hoje, vejo que poderia ter sido bem pior, pois ela poderia ter me entregado ao temível diretor Cássio Gonzaga, aquele que, de longe, mal surpreendia um aluno aprontado em meio ao pátio da escola, ia se aproximando rapidamente, e por meio de muxoxos, gestos bruscos e palavras rápidas, fazia-o ficar como que congelado e cabisbaixo por uns minutos no lugar onde estava!... Era quando os alunos das redondezas se esbaldavam com a cena!... E o “Seu” Cássio era uma figura e tanto, um personagem único, profissional inconcebível hoje, figura humaníssima que só aqueles bons tempos da escola “risonha e franca” podia proporcionar  a um tempo, educador rígido e pessoa cômica, talvez sem o saber...

Porém, felizmente, daí para diante a menina “sossegou seu facho” de vez e nunca mais se atreveu a lançar para mim aqueles olhares insistentes.

Caso fosse mesmo apaixonada por mim, deve ter sido algo doloroso para ela ver o seu amor morrer assim, de uma forma tão grosseira e estúpida.



A vida imita a arte...

Hoje, vendo tudo à distância, penso que se não foi um procedimento excêntrico meu, foi uma atitude bem corajosa. Na verdade, naqueles tempos era preciso muita irritação para me tirar do sério e fazer com que eu cometesse tamanha insensatez. Mas enfim, eu era um menino de apenas 10 anos e não tinha ainda a noção exata do que estava fazendo e suas consequências. Por outro lado, é certo que a menina também ficara “boiando” com o teor daquele bilhete – se um adulto não sabia muito bem o que o Jô dizia ao telefone, quanto mais uma menina de 10 anos. Quiçá a professora explicou para ela o que significava aquilo tudo, mas duvido que ela teria entendido. No entanto, em se falando de amor, nunca mais fiz coisa semelhante. Hoje, sei que o episódio foi mais insensibilidade momentânea minha que grosseria propriamente dita.

O ano ia acabando com "Imagine" do John Lennon bombando nas rádios, e nossos sonhos iam se aproximando do fim em nosso querido grupo... Neste meio tempo, nos finais de tarde após as aulas, fui fazer o cursinho de Preparatório para prestar o exame de admissão na escola “Cesário Coimbra” no começo do ano seguinte, cursinho este que, como já o disse aqui, era ministrado pelo marido da professora Adilis, o saudoso João Poletti, mestre como poucos, educador que, como o citado Cássio Gonzaga, "já não se fazem mais".



Em março seguinte, na nova escola, respirei aliviado, pois a "menina dos olhos" não foi estudar lá. Infelizmente, as outras duas meninas por quem eu era apaixonado também não!... Isto parecia um castigo para mim! E toda vez que saía mais cedo da escola, passava pela casa de meu grande amor, a Martha, mas nunca tive a felicidade de ver ela por ali, nem na rua nem na área de sua casa. E assim, para a minha enorme tristeza, sem revê-la se passaram os quatro anos do ginásio, e quando fui estudar no então “Industrial”, menores ainda foram as probabilidades de revê-la!

Quanto à pobre Eunice, também nunca mais a revi; mas, depois, toda vez que eu recordava o episódio, a loucura que fiz para ela, sempre meneava a cabeça rindo comigo, lembrando que, as vezes, a vida parece que imita a arte... 


A ironia do destino... 

O pátio da escolae, ao fundo, o refeitório . Década de 1950.
Antes de finalizar esta história, gostaria de contar uma outra história pertinente. Ocorre que, exatos 20 anos depois do ocorrido, algo surpreendente se passou comigo, uma destas situações cujo nome titula este subcapítulo, algo que eu nunca imaginei que pudesse me acontecer um dia.

Pois bem. Um certo dia do ano de 1991, eu estava jantando à mesa da cozinha, enquanto uma nova empregada lavava a louça, estando de costas para mim. Há pouco eu havia retornado à Araras, após trabalhar por quatro anos em São José dos Campos, quando passei a novamente morar com minha família.

Num certo momento, a empregada se virou o começou a puxar um papo comigo enquanto enxugava pratos. Disse-lhe que ela cozinhava muito bem, e que o jantar estava uma delícia, no que ela me agradeceu. Abri uma cerveja e fiquei papeando com ela. No decorrer da conversa, mostrou-se ela uma pessoa de agradável conversa  suas palavras eram ditas calmamente, como que a afagar os ouvidos. Além de tudo, era refinada e educadíssima, além de ser muito simpática, embora não fosse um “padrão de beleza” como mulher. Conversamos um pouco, falando de banalidades. Terminei minha refeição, despedi-me dela e fui para o meu quarto.

Mas, à esta altura, perguntará o curioso leitor aonde pretendo chegar. Calma, amigo, não precipitemos o desfecho desta história. Sigamos com paciência e método. 




Um insight fulminante!

Estranhamente, e para minha surpresa, no dia seguinte a empregada não apareceu para trabalhar. Segundo a esposa de meu pai, ela tivera um problema inesperado e precisou abrir mão do emprego. Fiquei cismado com a atitude, e depois me pus a pensar sobre o que havia acontecido para que ela pedisse a conta daquela maneira tão abrupta, com apenas um dia de trabalho. Será que eu havia dito à ela algo que não lhe agradara? Não, eu não disse!... foi quando, lembrando de seu rosto, num insight fulminante me caiu a ficha, e atinei quem era a tal moça! Eu pensei, o editor pensou, o revisor e o leitor idem – e todos acertamos em cheio: Deus, como pode?! Caramba, era nada mais nada menos que a "menina invocada", sim, a Eunice, a menina do grupo escolar!...  

— Wenilton, seu bêbado insensível e desmiolado!!!...

Por mais inverossímil que pareça, leitor, te afianço que está história é tão verdadeira quanto a ressurreição de Lázaro! Sim, sim, leitor, era a minha pobre vítima que a danada ironia do destino viera materializar diante de mim!

Às vezes, chego a pensar se realmente ela pediu a conta devido aos problemas que alegara à esposa de meu pai, ou se a ficha dela caiu também, digo, se ela realmente me reconheceu durante o nosso agradável bate-papo naquele final de tarde. Digo isto, porque eu já me encontrava calvo na ocasião, e a diferença entre um menino com belas madeixas e um adulto calvo é enorme, de modo que algo é difícil reconhecê-lo. Mas, é provável que, em algum momento, “estudando” melhor minha fisionomia, ela deu por si e viu que quem estava ali em sua frente era o tal menininho magro de ruindade do grupo escolar... E, sendo sensata, para não se mostrar chocada ou mesmo causar uma situação desagradável entre nós, suportou tudo até o fim como se nada houvesse notado, e deixou para fazer no dia seguinte o que lhe convinha fazer, ou seja, sumir!...

Não tenho dúvidas de que a situação deva ter sido humilhante para ela: como não se bastasse o que lhe aprontei anos atrás na escola, agora essa! Me coloco no seu lugar e posso avaliar o que ela sentira: constrangedora situação! Preferia mil vezes que o contrário tivesse ocorrido — situação tipo vingança (ou justiça) —, em que eu, por exemplo, tivesse ido carpir um quintal na sua casa e reconhecesse nela a menina inocente que magoei outrora... Estaríamos quites.

E eu não a condeno pela atitude que tomara — no lugar dela teria feito o mesmo. No entanto, creio que, apesar de tudo, também lhe passei uma boa impressão naquele jantar, e quem ela viu lanchando ali já não era mais aquele menino estúpido que, num dia infeliz, resolveu lhe enviar um bilhetinho maldoso, apunhalando seu sensível coração, ruindo seus prováveis sonhos de amor.



Uma Gata Borralheira às avessas... 

O "Grupo Zurita" hoje.
As incríveis e surpreendentes certas surpresas que a vida nos reserva, e, “como o mundo é pequeno”! ...

Hoje, quando me recordo deste episódio, penso nela com carinho, e, meneando a cabeça, suspiro e sorrio de leve comigo mesmo... Vendo tudo à distância, com o olhar crítico da vivência, como num conto de fadas, concluo que ela se tornara uma mulher linda, uma moça agradabilíssima e refinada – e quantas meninas feiosas não vi em minha infância que se tornaram belas mulheres quando adultas! A ideia generalizada de que “a primeira impressão é a que fica”, se desfizera feito bruma  o passar dos anos fizera dela meio que uma espécie de Gata Borralheira às avessas: de aluna feia e ranheta  uma desfavorecida da natureza –, o tempo se mostrou generoso e a transformou numa linda e simpática, diria, secretária do lar!... 

E hoje, esta moça, é uma mulher que, acredito piamente faria muito feliz qualquer homem que a tivesse por companheira, e já o deve ter feito há muito tempo, com certeza. Infelizmente, uma besteirinha de criança impediu que as pazes fossem feitas e dessem origem à uma bonita amizade. Para onde ela foi, não sei, e nunca mais a vi pela cidade, mas ela está por aí – e, como disse, o mundo é pequeno e quem sabe num possível próximo encontro, nós criemos coragem e recordemos deste velho episódio e, meneando a cabeça, daremos então boas risadas.

De quando em quando, Eunice, eu penso em você quando menina ─ naqueles nossos lindos e despreocupados dias de estudantes de gruo escolar ─, e, pelo conceito equivocado que tive de você e pelo que te fiz, saiba que eu me sinto hoje o pior dos seres ─ um remorso tremendo me mortifica ─, e só me perdoo porque fui completamente ingênuo nos meus atos, portanto, sem maldade alguma ─ coisas de criança, querida, entende, não é?

Enfim, cara Eunice, não estou certo se você lerá um dia estas sinceras palavras, onde pretendo me retratar contigo e pedir que me perdoe. Mas, de coração, onde quer que você esteja, querida, saiba que eu te considero muito e tenho o maior carinho por ti e pelo que hoje tu és! Em nome deste adulto, perdoe a lamentável insensatez daquele menino ingênuo que mal debutava no amor e não tinha muita noção do que fazia. Assim, querida, me permitirá então que eu retire estes velhos espinhos do meu, do teu, dos nossos corações... 
                                             
 “You may say, I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one” 
          (Imagine. John Lennon)

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* Este capítulo faz parte do  Volume 9 - School days ― abril de 1967 a abril de 1977". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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