quarta-feira, 2 de julho de 2014

Ô, Ô, SEU MOÇO, DO BEAVER VOADOR!...

Manhã de vigília - O porquê da conversa anterior... - Trilha sonora outonal - Um ronco familiar de motor  - Ô, ô, seu moço do Beaver voador!... - Hora de ir para a escola - Folhas mimeografadas, um cheiro marcante - Você não existe, menino! - Um selfie avant garde? - Animals...


"Sem dúvida, o avião é uma máquina ─ mas que 
instrumento de análise! Esse instrumento nos permitiu 
descobrir a verdadeira fisionomia da terra." 
(Terra dos Homens. Saint - Exupéry. 1939)

“As coisas grandes são melhor
apreciadas estando-se distante delas.”
(Serguei Esenin, 1895-1925)

"O que eu queria era subir acima da terra e 
deixar a vista vagar lá do alto sobre as fazendas 
e aldeias, sobre seus horizontes, para ver as 
esteiras serpenteantes dos rios e manipular os 
comandos do aparelho em que se encontrava...”
(A Águia Solitária. Charles Lindbergh. 1928)



Em plena era dos drones – aqueles aparelhinhos aéreos semelhantes à pequenos helicópteros do tamanho de um brinquedo –, recentemente tive um insight de uma inesquecível cena de minha meninice, e um filme passou em minha cabeça. É que um dia desses, após ver um destes aparelhos em ação, e notando as maravilhas que ele permite, ou seja, o se fazer fotos aéreas à baixas altitudes, resolvi relembrar um interessante caso que me aconteceu e que veio à baila por este súbito estalo da mente.

Dizer que através um tripé gigantesco com uma máquina sem zoom fiz uma foto selfie a partir de um ponto do céu, seria narrar um sonho maluco ou um delírio qualquer meu, mas algo muito semelhante me aconteceu num certo dia daquele distante ano da graça de 1975, creio que na época de final de outono, e quiçá o mês de abril, quando o milharal do meu tio Augusto Paura, que ficava atrás da "colônia de baixo", já havia sido colhido e cortado no mês anterior.



Manhãs de vigília


Era naquele tranquilo período da vida em que eu não tinha grandes preocupações, cujos longos momentos de folga e liberdade eram empregados em satisfazer a mais ninguém a não ser a mim mesmo: minhas vigílias, os entretenimentos que eu não dividia com ninguém, o encanto de minhas manhãs vadias antes de ir para a escola. 

Pois bem. Um certo dia, antes do horário de almoço, como sempre fazia, decidi pegar minha luneta e ir para os altos do Restilo, o lugar onde eu costumava fazer as tais vigílias, que era ficar observando ao longe os aviões que pousavam e decolavam no aeroclube da cidade, distante cerca de seis quilômetros à sudeste do lugar onde eu me posicionava.  

Deixei nossa salinha de som entediado, onde meu irmão Weber ouvia sem parar a balada “Happy man” da banda Chicago, que desde o início do ano explodia nas rádios brasileiras.

- Cara, você não cansa de ouvir isso?!


- Neeeem, meu!... 

Nestes dias, era sempre assim: ou ele rolava essa do Chicago ou “Only Yesterday” dos Carpenters, e tocava tanto que a gente acabava até odiando as músicas!

- Meu, põe um Bachman “II” aí, o Rush “Fly by night”! Pô, esta semana eu trouxe o “Rei Arthur” do Rick Wakeman! Puta discão! Quer música romântica linda, põe "Guinevere" prá rolar!
 
- Ah, meu, vá caçar sapo e não me enche o saco!

- Cara, você ainda vai furar esses discos de tanto ouvir!...

- Tá, bom, tá bom, eu vou colocar outra música!


E, para a minha surpresa, ele colocou “Guinevere”, e eu deixei a salinha e fui para o quintal ao som desta belíssima canção. Quando já ia saindo pela abertura que havia na parede do rancho, minha mãe, que neste momento pendurava roupa no varal, me interpelou:

- Aonde você pensa que vai com essa luneta?!

- Vou lá no Restilo ver os aviões do aeroclube.

- Mas já está quase na hora do almoço! Não vai demorar!


- O quem tem para comer hoje,mãe? 

- Comida!...

- Não fez uma das receitas gostosas da coleção Forno & Fogão? 

- Tá pensando que somos ricos, menino?! 

- Ué, então o que que a senhora fez com o envelopinho que veio de brinde, o de tempero de tomilho? Não era para temperar o Carneiro à Francesa ou o Presunto à Califórnia? 

Weber e Wenilton Daltro, no rancho(em ruínas) dos fundos da nossa terceira 
 e última casa, que dava para um campo. Usina Palmeiras, 17-11-1998.
- Escuta aqui, menino: sabe quando você vai comer esses pratos? 

- Quando?! 

- Se depender de mim e do teu pai, nunca!... 

- Ué, então porque a senhora mandou eu comprar o fascículo?!... 

Ela não deixou barato:

- E, por acaso você tem uma maquinona daquelas da Como Funciona?!... 


Engoli seco, aí saindo pela abertura do rancho, tomei a direção do Restilo.




O porquê da conversa anterior...

Dias antes, no final de março, lembro-me que minha mãe me deu dinheiro para comprar para ela o primeiro fascículo da nova coleção de culinária internacional, a anteriormente citada Forno & Fogão, da Editora Abrilque havia sido anunciado na televisão, e como também havia sido lançado na mesma época a coleção Como Funciona, da mesma editora, pedi dinheiro à ela e comprei também o primeiro fascículo. Porém, nem eu nem ela demos continuidade à coleção, e limitamos a nos contentar com os primeiros números. Foi através da Forno & Fogão Nº 1 que conhecemos a erva aromática Tomilho, pois ela veio de brinde numa porção num saquinho plástico. 

Na verdade, desde setembro do ano anterior eu vinha investindo os trocados que meu pai me dava na coleção Os Bichos, de modo que não poderia pedir mais grana à ele, que já andava chiando com o dinheiro gasto, pois a coleção parecia não ter fim. Gostei muito da Como Funciona, pois o primeiro número era sobre fotografia, num exemplar em que eles dissecavam à fundo uma máquina fotográfica do tipo reflex, meu sonho de consumo já naquela época.

Desnecessário dizer que, por esta época, aviões os eram uma constante em minha vida, seja com os jatos da Força Aérea de Pirassununga que vinham treinar nos céus da Usina, seja pelos aeromodelos da Revell que eu comprava para montar. 

E o que havia sobre tema na Biblioteca Municipal, bem como alguns exemplares da revista Combate, eram devorados por mim. Assim, a surpresa com que fui brindado nesta manhã – que é o motivo principal da presente história –, vinha ao encontro de meus gostos e anseios deste período tão rico e instigante de minha vida.


Música ao longe...

Imagem hipotética de um avião Beaver se aproximando da Usina, onde se vê
os canaviais do lado sul da mesma, por onde o avião surgiu. Foto: março 1988
Durante o trajeto, estando logo acima do muro da casa do Isnaldo, ouvi um ronco forte zoando ao longe. Instintivamente me voltei para o lado Sul, e, me colocando à escuta, vi surgindo ao longe um objeto aéreo em meio às brumas do horizonte, que, junto com o som, foi crescendo à medida que avançava. Nenhum motor de automóvel ou caminhão soava como tal, e aquilo foi crescendo, aumentando demasiadamente de intensidade. 

Mal ele entrou em meu campo de visão, o fato começou a adquirir contornos inesperados para quem se contentava em ver aviões manobrando ao longe no aeroclube.

O avião cintilava de cores, e eu gritei eufórico. Ele parecia tomar o rumo da Usina; sim, ele vinha se aproximando, cada vez maior, belo, brilhante, e eu quis aplaudir o seu belo gesto de cortesia forasteira. Veio bem perto de modo a se deixar contemplar em seus detalhes; movia-se com imponência, lentamente, e com sua aproximação, vendo-o de frente, notei que o conjunto de seu motor propulsor era igual aos dos então aviões da Esquadrilha da Fumaça — os famigerados T-6: aquela mesma carcaça bojuda e arredondada envolvendo o motor, e realmente, o ronco era potente pois possuía o mesmo motor, o velho e barulhento Pratt & Whitney. Sua asa, porém, era do tipo alta, e o desenho geral lembrava os populares aviões teco-teco amarelinhos do tipo Paulistinha, mas sem o ronco “sereno” desses. 

Ele foi se aproximando pelo lado leste, veio “de fianco”, glissando com um vento lateral, e deu a impressão que ia passar tão baixo que, ingênuo, cheguei a pensar que ele ia tirar uma fininha das chaminés da Usina!... Prendi minha respiração... Engano desfeito, fazendo um sobrevoo, ele passou e seguiu caminho adiante, mas ao chegar próximo da colônia de cima, começou a inclinar-se de leve e fazer uma curva graciosa à esquerda, indo para o lado Oeste, o que deu a entender que, estranhamente, estava retornando para o local de onde viera. 

Para ver com mais detalhes ainda esse aparelho, que mesmo voando baixo, meus dois olhos não bastaram – entrou em cena minha luneta. Um olho fechado e outro colado nela para poder segui-lo, foquei a imagem e, estacado com os pés fixos no chão, fui girando forçosamente o quadril, naquela situação gravitacional incômoda, quase perdendo o equilíbrio com o corpo torcido pelo incômodo giro.

Quando imaginei que ele fosse seguir caminho, ele fez uma nova curva para o lado Leste e voltou a sobrevoar a Usina! Mas, que aeronave intrusa era esta que ousava violar o espaço aéreo da Usina? E o quê o seu piloto queria ali, naquele fim-de-mundo àquela hora da manhã?! O que ele buscava nestes céus nunca dantes navegado, pelo menor para ele, acredito?!

 
Foi quando tive um estalo: "Mas, caramba, ele deve estar fotografando a Usina!"

E lá em cima, ele continuou a fazer evoluções sobre o lugar – talvez umas cinco voltas –, e eu simplesmente limitei-me a segui-lo com minha luneta. Fiquei muito feliz, pois nas curvas que fazia podia-se ouvir quase que os mesmo sons característicos que os barulhentos T-6 faziam em suas evoluções com a Esquadrilha.

Uma pergunta me veio à mente: "Teria o piloto me visto lá de cima?"


Provavelmente sim, mas, obviamente, não era eu o seu interesse, que eu não passava de um minúsculo vulto pouco destoando da cor vermelha da terra do campo onde estava. Na verdade, devia haver uma equipe de profissionais ali, mas como eu ia chamar a atenção se eu estava reduzido a uma nota insignificante na amplidão do atrativo cenário usineiro?

Vibrando com a visão, torcia mesmo para que tivessem fazendo fotos da Usina, e, obviamente, para que eu saísse em pelo menos numa delas! Sabia que, voando àquela altura, era possível a equipe me captar com uma máquina, mesmo porque do chão era possível ver o piloto na janela do avião. Afinal, acredito que a equipe não sabia que eu estava ali, que, muito provavelmente, olhavam o conjunto, o todo, e não os detalhes.

Tendo a equipe uma vista global do conjunto formado pela Usina e arredores, com certeza eles, lá de cima, tinham uma visão muito mais bela do que a que eu tinha estando limitado ao chão, mas era lindo ver aquele avião colorido com aquele seu ronco incrível fazendo evoluções em meio àquele azulíssimo céu de brigadeiro que só as manhãs de início de outono têm.


Mas, ah, quem me dera poder, com a força do pensamento mágico que toda criança tem, fazê-lo atender ao meu modesto pedido, o de que me fotografasse ali!...


Ô, ô, seu moço, do Beaver voador!...

O avião que me fotografou, o De Havilland DHC-2 Beaver, prefixo PP-ECF,
que era o avião utilizado pela antiga e extinta VASP AEROFOTOGRAMETRIA.
Com o aumento da luneta, foi possível ver com minúcias detalhes desse avião. Era um belo monomotor, um modelo que eu nunca havia visto igual nos céus da Usina, uma vez que, com minha luneta, eu “monitorava“ todos os que passavam por ali diariamente. Sua fuselagem e asas eram brancas, ricamente ornados com faixas largas e listras nas cores vermelha e preta, conjunto de cores incomuns num avião daquele tipo, parecendo mais um avião de competição ou exibições aéreas. Sim, realmente, era um avião belíssimo, que eu faria de tudo para dar uma volta nele. Como o céu estava luminoso com o Sol já bem alto no céu, sua figura brilhava vivamente nas curvas que fazia e os detalhes podiam ser melhor analisados.

Pesquisas na internet buscando-se aviões de aerofotogrametria utilizados pelas empresas do gênero no Brasil na época, me levaram a concluir que era o De Havilland DHC-2 Beaver, prefixo PP-ECF, o avião utilizado pela VASP AEROFOTOGRAMETRIA, um modelo utilizado nas décadas de 60 e 70 em espionagens aéreas na Guerra do Vietnam, e amplamente no Canadá e Estados Unidos por empresas de táxi aéreo, até os dias atuais.
  

Isnaldo Coutinho Pereira e Carlos "Julião" Matias,
no Restilo, 19-1-1975. Ambos já são falecidos.
Infelizmente, eu não havia levado a minha máquina fotográfica Olympus Trip-35, que eu havia ganho de presente no Natal anterior, se não certamente teria feito uma foto desse avião. Coincidentemente, cerca de três meses antes, eu e dois amigos já falecidos, o Isnaldo e o Julião, havíamos feito várias fotos desse campo, da Usina e do Restilo. Se esse avião tivesse aparecido aquele dia, ele não haveria me escapado.

Enfim, após algumas voltas algo lentas e à baixa velocidade, onde os ruídos de seu potente motor reverberaram incrivelmente pelos contrafortes dos prédios e matas da Usina, o avião não fizera uma nova curva para o lado Leste, e, endireitando suas asas, voltou-se para o lado Sul de onde viera, retornando sabe-se lá para onde.
Na mureta do Restilo, rapidamente montei a luneta no tripé e me pus a observar o Beaver, vendo-o sumir ao longe no horizonte por sobre o céu de Araras, e fui seguindo-o até que sua imagem se desvaneceu em meio às brumas acumuladas pela distância. O Beaver parecia dar lastro aos meus desejos, e nas asas do pensamento algo de mim partia com ele.

Fiquei chateado com sua partida, e sem esperança de que ele retornasse um dia. Numa hora dessas, como não se lembrar do lamento do Raul, que chamava pelo disco voador e queria ir embora com ele? Permitam-me parodiá-lo:

"Ô, ô, seu moço
do Beaver voador
me leve com você
para onde você for!"


O Beaver, um avião que se tornou popular após um famoso acidente

O Beaver de Gauchie perdido no lago Samandre. 
Coincidentemente, este tipo de avião ficou famoso na mídia mundial em janeiro de 1968, quando a revista Reader’s Digest publicou um acidente aeronáutico ocorrido pouco antes de mudarmos para a Usina, em fevereiro de 1967, num vilarejo do Círculo Ártico. A vítima do acidente foi piloto canadense Robert Gauchie (1927-2013) ― “O homem que se recusou a morrer”, título da matéria da Reader’s, e expressão que o consagrara. Sua sobrevivência foi descrita como um milagre e sua história apareceu nas primeiras páginas dos jornais em todo o Canadá e depois em todo o mundo. Gauchie se perdeu na região após seu avião ser vítima de um fenômeno atmosférico conhecido como cerração leitosa e gelada, quando minúsculos cristais de gelo pairando no ar atrapalham a visão da terra e do horizonte. Perdido e fora da rota, foi obrigado a pousar num lago congelado em meio à região desolada e desconhecida, com temperaturas em torno de 50 graus abaixo de zero. Sem combustível e com o rádio não funcionando, os serviços de buscas tiveram dificuldades de encontrá-lo, mas felizmente, ele tinha alimentos suficientes para manter-se vivo por um bom período. Gauchie  disse que “Nunca havia estado num lugar tão infinitamente silencioso”, onde “Não há um som, um pássaro, lobos, raposas ― nada. Só eu e o vento.”

Robert Gauchie após o resgate de 1º de abril de 1967.
Ironia do destino, dos quatro aviões que passaram por onde ele estava, o primeiro e o último ― o avião que o localizou ―, ambos eram da marca Beaver. O problema em localizá-lo era que seu avião ficou quase invisível em meio à neve. Os aviões que por ele passaram não só não o viram como também não notaram os tiros da pistola de sinalização que disparara. Aliás, foi por uma questão de sorte, que o último avião o avistara: sem saber porque, o piloto, que conservava o avião em seu rumo, de repente fez uma curva fechada e baixou, foi  quando viu um reflexo em meio ao gelo, que era nada mais nada menos que o sol baixo da região ártica  iluminando o pára-brisa do Beaver de Gauchie pousado no lago congelado. 

É muito provável que minha mãe ― que era leitora ocasional desta pequena revista ― a tenha lido e se interessado pela história, uma vez que era um assunto de sua estima: acidentes aeronáuticos, cujas histórias lia nas mais variadas revistas da época. Digo isso, pois, várias vezes, enquanto esteve convalescente de um tratamento contra câncer entre os anos 1979 e 1981, ela se comprazia em narrar todos os acidentes aeronáuticos que tomou ciência e gravara em sua memória às pessoas que a visitavam diariamente. Eu mesmo ouvi cheguei a ouvir algumas destas histórias, que, com boa memória, ele contava com emoção e precisão de detalhes, impressionando os adultos e crianças que a rodeavam. Deitada no sofá da sala de visitas, era comum ela entreter as pessoas por horas a fio com estas comoventes e tristes histórias, aliás, assunto de que trato em outro capítulo.

Não vou bancar aqui o insensato (e pretensioso) de querer traçar um paralelo entre a minha história e a do Gauchie, que, obviamente, nada há de comum entre elas a não ser o fato de que ambos estávamos sozinhos quando vimos Beavers passando por sobre nossas cabeças. A história lembra sim um famoso filme, o clássico “O Voo da Fênix”, lançado em 1965 ― filme que assisti no começo da década seguinte ―, em que um avião cargueiro atravessando o deserto do Saara levando trabalhadores de uma empresa petroleira sofre uma avaria em uma tempestade de areia e é obrigado a pousar. A tripulação sobrevivente sabe que está fora da rota e dificilmente alguém os localizará ali. Um dos integrantes tenta ir em direção ao oásis mais próximo, a 190 quilômetros, mas suas chances são mínimas. O piloto acaba sendo obrigado a ouvir um engenheiro alemão, que faz um projeto para construir um novo avião com as partes que sobraram do que caiu. Sem alternativas e com a reserva de água e comida terminando, a tripulação começa a trabalhar no projeto, e surge a Fênix, nome com que um deles batiza o novo avião. A diferença e a ironia em ambas as histórias, é que, no caso de Gauchie, sua sobrevivência 
 O avião Fênix e o cargueiro do qual ele se originou.
foi considerada impossível, e, mesmo assim, com todos seus incríveis ingredientes, jamais ganhou as telas, enquanto o caso da Fênix ― improvável história, pura ficção ― foi filmada e indicada até ao Oscar!... E mais, os acidentes se deram em ambientes extremamente opostos: um, numa região polar, e outro, numa região desértica. Mas isto vem me lembrar que tanto o meu caso quanto o do Gauchie tiveram sua gênese num mês abril: eu, no outono, ele, no inverno, porém, minha solidão perto da dele não era simplesmente nada, lembrando que o piloto ficou 58 dias perdido naquela imensa solidão gelada, num verdadeiro milagre de resistência, e enquanto ele penou meses em meio ao rigoroso inverno boreal, eu ― ah, eu!... ―, eu me aquecia num breve período de uma luminosa manhã outonal de céu de brigadeiro...



Trilha sonora outonal

Muito provavelmente, por estes dias, eu andava com uma bela música rodando em minha cabeça, uma obra-prima de um disco recém-adquirido (Fish Rising, foto), a peça “Sun Song”, integrante da “Solar Musick Suite”, do guitarrista inglês Steve Hillage. Acordar numa manhã de abril e botar um disco desses para rodar era quase vivenciar uma epifania!...

E a música tinha tudo a ver com o momento mágico que, em breve, eu iria viver nesta manhã:

“The sun sings that he wants you all to know
What dawns behind our lunarsea
For since our very words were commandeered
We've explored the infinite circuitry.
To try and find a scheme that gave us form.”

Ouça aqui esta belíssima peça do rock progressivo inglês:


Ainda sucesso também por esses dias, uma belíssima música outonal tomava de assalto as rádios, a tocante “As Flores de Abril”, com o Vinícius de Morais em parceria com o Toquinho, uma marcha-rancho –, um estilo que ninguém mais compõe hoje em dia –, uma canção que fala das coisas belas do mês de Abril:

“Olha quanta beleza,
Tudo é pura visão
E a natureza transforma a vida em canção.”

E a fértil e inspirada dupla não parou por aí, e pela voz terna da atriz e cantora Marília Barbosa, colocou outra belíssima canção outonal nas paradas, que fazia parte da trilha sonora de uma novela do momento, “Fogo Sobre Terra”. A canção era “Uma Rosa Em Minha Mão”, a mesma que, estranhamente, oito anos depois, o próprio Toquinho canibalizou – ou se autoplagiou – para compor o megassucesso “Aquarela”, aquela pequena maravilha que levou crianças e adultos do Brasil e da Itália ao delírio:

“Quem me dera encontrar,
Ter meu céu, ter meu mar, ter meu chão
Ver meu campo florir
E uma rosa se abrir na minha mão”
 

Hora de ir para a escola


Eu e minha luneta no campo atrás da "colônia de baixo", no lugar
conhecido como "canto de muro", a observar o céu. Ano: 1974.
Considero esta foto a mais importante e emblemática de minha vida!
Depois, após longos momentos observando o Aeroclube, e sem ver um avião qualquer que superasse a beleza do Beaver, voltei para casa para tomar banho e almoçar, pois em breve teria de ir para a escola na cidade.

– Que fome! Espero que no cardápio do almoço minha mãe tenha feito uma daquelas guloseimas da Forno & Fogão!...


Adentrando pela abertura dos fundos do rancho, à minha espera estava o último filhote (abaixo) parido pela nossa pastora alemã, a Barka, que foi um filhote único, nascido em março, e o mais lindo de quantos ela pariu. Ele correu para mim todo feliz como se há tempos não me visse. Tomei-o ao colo e brinquei um pouco com ele, antes de entrar em casa.

Durante o banho, voltei a matutar sobre o quê aquele estranho avião fazia nos céus da Usina, e só uma sessão de fotografia aérea me parecia plausível. Afinal, que outros motivos haveria? Além do mais, a Usina já possuía expostas no escritório outras fotos aéreas feitas em anos anteriores, como a que foi publicada no fascículo Nº 1 da revista Geoturismo, lançada em 1970.

Na escola, contei sobre o fato para os amigos com os quais tinha afinidade sobre estes assuntos, e eles foram unânimes em afirmar que o avião devia
O último filhote de nossa pastora alemã, a Barka, em 28-4-1975
mesmo estar fotografando a Usina. Contei-lhes também da possibilidade de, caso tenham fotografado, de eu sair em alguma foto, mas aí a maioria duvidou... 

Nas semanas seguintes, muitos outros aviões passaram por sobre a Usina, mas nenhum era igual à esse, nem fizeram as mesmas manobras que fez. E esse belo avião, para frustrar minhas expectativas, nunca mais voltou ali.

Mesmo assim, nunca mais revendo-o, o Beaver viria a se tornar mais um dos “aviões da minha vida”,  tanto por sua beleza quanto pela história em que me vi envolvido, e “documentado”... Sua imagem ficou como que impressa em minha mente, integrando assim a galeria dos inúmeros objetos aéreos que encantaram toda a minha meninice.


Folhas mimeografadas, um cheiro marcante

Por esta época, trabalhando no setor de exportações, meu pai costumava fazer horas extras à noite no escritório da Usina, e eu sempre pedia para que ele me levasse consigo – era quando eu aproveitava para datilografar as fichas dos discos de rock que ia comprando, como, p. ex., as dos discos do Alice Cooper, fichas que guardo até hoje.

Mimeógrafo FACIT. Década de 1970.
Foi aí que, inúmeras vezes, vi ele trabalhando com aquele curioso aparelho de impressão que era o mimeógrafo. Se eu não estava datilografando, gostava de ficar observando ele fazendo impressões que com essa curiosa máquina. Lembro-me de ele preparando previamente os textos na máquina de escrever, datilografando diretamente naquele conjunto de folhas conhecido como estêncil, que era uma espécie de sanduíche de papel contendo uma folha em branco e outra abaixo de papel do tipo carbono, que continha a tinta concentrada numa das faces. A máquina fazia as perfurações no estêncil que permitiriam depois a passagem da tinta e a consequente impressão no papel. Antes da impressão, uma pequena porção de álcool era colocada numa esponja fina junto ao rolo impressor. Em seguida, prendia-se a matriz datilografada no pequeno cilindro poroso. Depois, colocava-se uma folha de papel sulfite em branco a ser impressa, e acionava-se a manivela que fazia cilindro girar e impelir a tinta no sulfite através da matriz.


Finalmente, os papéis impressos eram colocados para secar, dispostos um do lado do outro, uma vez que as folhas saíam meio úmidas da máquina.

O álcool interagindo com a tinta do papel estêncil tinha um cheiro muito peculiar e agradável, apesar de dizerem que era tóxico para alguns – sabíamos de professores e alunos que tinham dor de cabeça ao sentir esse cheiro durante as impressões. Mas que aluno neste mundo se esqueceu desse seu cheiro nostálgico e “gelado” quando os mestres distribuíam as folhas impressas na hora das provas ou trabalhos? Tinha alguns que achavam esse cheiro o melhor do mundo – e, com certeza, eu estava entre eles! Havia também quem, mal as provas eram entregues, já ia metendo o nariz na folha só para lhe sentir o aroma!... Era quando o professor advertia em alto e bom som:

– É para fazer a prova com a caneta, e não com o nariz!...



Você não existe, menino!

Wenilton Daltro, Valmir Caetano e Toninho Prata, no guichê do escritório
da Usina, 19-1-1975. 
Abaixo desse guichê ficava a foto feita pelo avião.

Ocorre que, passado pouco tempo depois da visão daquela manhã, um certo dia,  meu pai, antes que eu lhe pedisse, me convidou para ir com ele ao escritório, e eu fiquei imaginando se a Usina havia comprado alguma máquina de escrever mais moderna ou um novo tipo de mimeógrafo. Lá chegando, ele falou:

- Dá uma olhada ali na parede abaixo do guichê.

Ali estava um grande e novo quadro colorido, uma foto gigante protegida por um vidro grosso e moldura de madeira. Me aproximei para vê-lo mais de perto e tive um baque! Nele, se via uma tomada panorâmica aérea da Usina tendo a colônia onde morávamos ao fundo. Comecei a analisá-lo e, logo atrás das casas, notei um pequeno detalhe que me intrigou – detalhe este que para muitos passaria despercebido, mas que imediatamente chamou minha atenção. Ali, em meio ao campo, via-se uma manchinha clara com forma humana. Era uma criança! Imediatamente, me recordei do avião forasteiro de semanas atrás!... Não me contive e gritei de emoção:

– Caramba, mas este menino sou eu!  O piloto "atendeu" ao meu pedido!

E era eu mesmo, em meu próprio elemento, olhando para o avião que passava e fotografava as dependências da Usina...  


Sim, leitor, eu não voei em carne e osso naquele avião a não ser em pensamento, mas te afianço que raras vezes naqueles dias meus pés subiram tantos palmos acima do chão como nesta noite após ver-me retratado nesta foto: eu saltava de alegria! 

– O que foi, Wenilton?

– Corre aqui ver, pai, corre!


Ele se aproximou, e eu, apontando para o campo atrás da colônia, lhe disse:


– Olha, pai, olha, este aqui sou eu!

Ele olhou, olhou, franziu a testa e emendou: 

– Que você daonde, menino! Onde já se viu!

– Sim, pai, sou eu mesmo!


E ele, não acreditando no que eu dizia, tive de deixá-lo à par da verdadeira história.

Após ouvi-la, ele desabafou:

– Você não existe, Wenilton!

Soube que, na manhã seguinte, conforme os amigos do escritório iam chegando para o trabalho, ele não se fazia de rogado em mostrar à todos a foto aérea da Usina em que o seu filho estrelava, aquele curioso menino parado em meio ao amplo campo a olhar um belíssimo avião que sobrevoava a Usina fotografando-a!...


Na escola, à tarde, contei aos amigos sobre minha “façanha”, mas aí, mesmo os que não acreditavam da possibilidade de eu ter saído numa foto ficaram boquiabertos. Infelizmente, não havia como eu mostrar a foto à eles, a não ser que eles próprios fossem lá na Usina ver...


Um selfie avant garde?

Desse modo, amigos, creio que fui o único morador da Usina a ser fotografado por um avião em voo, e saber que foi fotografado e posteriormente identificado. O acontecimento e a descoberta foram motivo de em certo orgulho para mim, pois, hoje, do modo como aconteceu, acredito ser ele um tipo de fato muito raro na vida de um menino, e até mesmo na de um adulto. Não vou dizer que fui o único ser humano aparecer naquela foto, mas desconfio que fui um dos poucos a ver aquele belo avião passando por lá e saber o que ele estava fazendo, e nunca mais me esquecer dele. Afinal, se meu pai soubesse a que dia e horas o avião iria fazer o serviço fotográfico ali, com certeza ele teria me dito, pois ele sabia que eu gostava demais destas coisas. E mais: se eu fosse um dos acionistas da Usina, sabendo que o avião estaria ali fotografando à tal dia e à tal hora, não pensaria duas vezes e me colocar num lugar bem visível e ser eternizado numa foto aérea em meu próprio empreendimento. Excentricidade, amigos? Não acredito.

Em 1970, havia cinco empresas de Aerofotogrametria no Brasil e elas não davam conta de tudo, tanto serviços havia pelo imenso País, mas, neste santo dia, teve uma “ponta de filme”, e ela foi gasta em closes de minha terra!... Assim, alguém teve um tempinho para passar por ali ─ pelos céus da Usina ─ e fazer uma foto aérea ─ menos da Usina que minha ─, e, certamente, a primeira e única do gênero sobre mim, porém, uma foto proibida, feita fora do controle governamental!...

Mencionei lá no início deste texto a foto conhecida atualmente como dronie, e digo que, hoje, uma foto panorâmica da Usina estando eu ali no mesmo lugar só seria possível e acessível usando-se um dos aparelhos responsáveis por elas, ou seja, o também citado drone, porque com um avião de fotogrametria ela seria quase impossível. Tudo bem: minha foto não foi um selfie propriamente dito, e, além do mais, foi uma foto panorâmica em que “acidentalmente” apareci e fui registrado como um mero detalhe nela; mas, convenhamos, não é todo dia que alguém passando lá nos altos do céu faz uma foto do lugar onde você se encontra, e tempos depois esta foto aparece diante de si e você está lá retratado nela. Como se vê, uma situação raríssima e inusitada. 

Santos Dumont — acho que no livro “Os Meus Balões”, obra que li poucos anos antes —, disse as coisas terrenas são mais belas quando vistas de cima, e penso que a equipe de fotografia do Beaver pode observar lá de cima a bela obra arquitetônica de meus avós — os construtores dos prédios da Usina. Carlos Drummond de Andrade, certa vez sobrevoou sua Itabira num taxi-aéreo, e viu sua terra sob “um novo ângulo”, admirando “a obra dos homens na terra”. Já eu, isto sem tirar meus pés do chão, só pude ver obra de meus avós à partir do céu na foto feita por aquele avião, no que, ao contrário deles, pude ver à mim mesmo como se me observasse do céu!...


Animals...

Matutando hoje, me pergunto o que poderia haver de mais belo sobrevoando os céus da Usina que este inusitado avião? Lembro-me que alguém, certa vez, vendo a foto abaixo inserida, disse-me que ela lembrava a capa do disco Animals do Pink Floyd, onde se via a famosa estação de força de inglesa, a "Battersea Power Station" e um porco inflável flutuando entre suas chaminés. Achei pertinente e resolvi fazer uma brincadeira inserindo nela o mesmo porco inflável, fazendo-o pairar entre as chaminés!... Esta cena seria sim mais bela que o Beaver que passou sobre elas!...

Imagem hipotética do porco inflável do disco Animals da banda Pink Floyd sobrevoando a Usina Palmeiras.
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* Este capítulo faz parte do  Volume 8 - Childhood's end ― janeiro de 1975 a abril de 1977". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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