quinta-feira, 11 de junho de 2015

UM VAMPIRO QUE APAVOROU AS NOITES USINEIRAS!

Um pavoroso vampiro! - Morcegos e... vampiros... - A casa assombrada e o Ribeirão do Pântano - O primeiro filme de terror, que sufoco! - O medo de voltar para casa ou “Give peace a chance” - O lobisomem da fazenda Santo Antonio - Lubigarrú?! Mas que diabos é isso?! - Lobisomens usineiros...

"Quando à meia-noite me encontrar, junto à você
Algo diferente vou sentir, vou precisar me esconder
Na sombra da lua cheia, neste medo de ser
Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê."
     (Canção da meia noite. Almondegas) 

“A morte e o sangue tem um papel primordial na
imaginação dos homens, portanto, não admira
o sucesso do fabuloso tema do vampiro, o morto-vivo
que vive eternamente a chupar o sangue de suas vítimas”.
(Grandes Enigmas da Humanidade. Luiz A. de
Araujo, Marly N. Peres. Vol. 2. Larousse. 2009)

“Alguns anos mais tarde comecei claramente
a perceber que o cinema integrava-se na
vida, fazia parte dela; soube então que a
realidade é inumerável. Desgraçados dos que
admitem só algumas parcelas de realidade”.
(A Idade do Serrote, Murilo Mendes, 1968)



O Clube Recreativo Usina Palmeiras. Foto; de Selma Caetano.
Minha mãe ao Weber, após ele acordar:

─ O que que está com a cabeça cheia de penas? Virou lobisomem e foi comer galinha de noite?

─ Não, mãe: foi meu travesseiro que furou...

*    *    *  

Ncinema do Clube Recreativo da Usina passava de tudo — filmes de todos os gêneros e para todos os gostos —, mas, curiosamente, a censura prévia, feita por não se sabe quem na Capital, não era tão rígida, de modo que filmes proibidos para menores não raro desembarcavam ali. Porém, como não era concedida previamente à Usina a escolha de títulos ou agendamento, as latas de filmes despachadas eram verdadeiras caixinhas-surpresa. Acredito que até mesmo o pessoal que manipulava o projetor do clube só ia saber do que tratava o filme durante a projeção. Ninguém ali assistia aos filmes antes, o que implicava em não fazer providenciais censuras em cenas proibidas à menores; além do que, às vezes, os próprios títulos não deixavam adivinhar seu real conteúdo. 

Jácomo Petruz, o 
"censor" dos filmes

Soube depois que, estranhamente, o mesmo não se dava com o cine da usina São João, que ali, o filme que passava no sábado no Cine Araruna era o que, no dia seguinte, ia para o Cine Engenho Grande. Neste cinema, raramente filmes eróticos chegavam até os olhos dos colonos, pois a seleção das películas e sua prévia censura já era determinada por quem enviava os filmes de São Paulo.

Compreensivelmente, os filmes que passavam na Usina raramente estavam em consonância com os que passavam na Capital na mesma época, ou seja, nós da Usina não estávamos incluídos nos circuitos de estreia das grandes cidades, de modo que não participávamos das novidades anunciadas nos jornais e na televisão. Assistir lançamentos só mesmo no Cine Araruna, que participava ativamente dos circuitos. Acredito que os filmes que passavam na Usina só chegavam ali depois que eles saíam de circulação em São Paulo — estocados nas distribuidoras, então eram despachados para o interior, para cidadelas e cineminhas das zonas rurais paulistas.


Um pavoroso vampiro!

O cartaz do filme "Drácula, o perfil do diabo".
O filme de que tratarei aqui agora — o clássico “Drácula, o Perfil do Diabo” —, que estreou na Inglaterra em 7 de novembro de 1968, não era um desses filmes censuráveis, uma vez que não se costumava vetar filmes desse gênero no Brasil, e mesmo as cenas de nudez não tinham ingredientes picantes à ponto de justificar cortes.

Este foi um dos poucos filmes de horror que assistimos na Usina. Cita-se que é um dos mais bacanas da série estreladas pelo impiedoso vampiro transilvano, filme pesado e sombrio, onde há todos os ingredientes comuns ao gênero: violência, humor, suspense, nudez, sangue e crueldade. 

Em São Paulo, a estreia de “Drácula, o Perfil do Diabo” se deu em quatro de agosto de 1969, e acredito que só no mês seguinte é que pudemos assisti-lo na Usina, quando ele deixou definitivamente de ser novidade no circuito das grandes cidades, justamente quando chegava às telonas o biográfico “Corisco – o Diabo Loiro”, interpretado por aquele que viria a se tornar no futuro o meu ator predileto, o destemido Maurício do Valle.

Na mesma época, na Capital, integrava o circuito de filmes novos o ótimo “2001: uma Odisseia no Espaço”, que ou não passou na Usina ou passou, mas eu estava com a família na cidade, filme que eu ia adorar tê-lo assistido naquela época, por ser um tema do meu maior agrado: a conquista do Espaço...


Morcegos e... vampiros...

Ah, os vampiros! Estes tipos que as artes imortalizaram no inconsciente coletivo, cujas histórias instigam há séculos a imaginação humana! Bichos estranhos estes, que sonham com uma existência infinita, que dormem dentro de caixões com terra proveniente de lugar onde nasceram; a sua arte demoníaca de se transformar em grandes morcegos com aparência semi-humana, de pálido semblante, e de surgirem dentro da noite, para com seus dentes pontiagudos e brancos, hipnotizar, atacar e sugar o sangue dos humanos que caírem em suas garras!

― Sabia, Wenilton, que se um vampiro se olhar no espelho a imagem dele não aparece?

― Noossa, e como ele consegue fazer aquele penteado bonito?

― Há, há, há!...

― E se você fotografar ele, ele não sai na foto...

― Então o RG dele nem tem foto 3 x 4?... Acrescentou o Wagner.

― Essa é boa!...

*    *    *  

E por falar em morcegos (e medo), lembro-me que, por essa época, costumávamos nos reunir — todos os parentes do lado dos Daltro — num sítio de um casal de tio nossos, o Aldo e a Sinha, lá no bairro São Vicente, onde passávamos os domingos em almoços e churrascos durante o dia todo. 

Nunca vou me esquecer da sensação de mistério que infundia a nós meninos uma casa que havia contígua à principal, nos fundos, que nos parecia ser um lugar assombrado mesmo durante o dia. Tínhamos receio de ir ali, e quando ali estávamos, aquilo não mais parecia ser o sítio, mas um outro lugar qualquer . Lembro-me que nesta casa, onde não morava ninguém, havia morcegos em seu interior e tínhamos medo de entrar ali. Os adultos, só para nos assustar, diziam que se ali entrássemos os morcegos iam nos atracar e chupar nosso sangue. As noites nesse lugar isolado eram bem sinistras, e até o rio que passava por ali tinha um nome “sugestivo”: Ribeirão do Pântano!..., urso d'água estreito, porém fundo e de águas geladas.


O primeiro filme de terror, que sufoco!

O ator Christopher Lee
O lendário ator Christopher Lee (1922-2015) foi quem interpretou este que é considerado o maior de todos os vampiros do cinema, o temível Drácula, entidade esta que surgia novamente em 1969 para assombrar o planeta neste polêmico filme. Lee foi tão feliz neste papel que viera a se tornar o principal arquétipo de vampiro do cinema mundial, e, dentre todos os que interpretaram esta temível entidade, foi Lee, com sua voz grave e assustadora sua marca registrada , quem mostrou o que o Drácula tinha mais de ameaçador. Assim, diria que Boris Karloff está para o Frankenstein, assim como Christopher Lee está para o Drácula.

Paul estacando Drácula.

Creio que desde o filme “Black Sabbath” (1963) interpretado pelo Karloff, não se via um filme tão apavorante. Foi justamente deste filme que em agosto deste ano saiu o batismo da banda de heavy metal Black Sabbath, e a canção homônima que usava o sombrio intervalo musical conhecido como “tritono”, acorde proibido que, segundo cristianismo medieval, invocava o demônio!... Falecido recentemente, aos 93 anos, Christopher, décadas depois, viria a se tornar mais famoso inda ao vivenciar o maligno personagem Saruman em "O senhor dos anéis" e em "O Hobbit", mas a fama já vinha desde os primeiros dráculas que interpretara já na década de 1950.

Curiosamente, em O perfil do diabo, o personagem tem apenas umas quatro ou cinco falas, mas naqueles tempos pueris, só de ver aquela cara apavorante de vampiro, com aqueles caninos pontiagudos embebidos em sangue e os olhos trincados de vermelho, dava vontade de sair correndo do cinema já na sua primeira aparição. É compreensível esse medo irracional: computando, em 1969, eu tinha lá meus meros oito anos de idade, período em que a maioria das crianças se assusta por qualquer besteira, como realmente se deu... Mesmo nas cenas em que ele cravava seus dentes nos pescoço das jovens, momentos em que sempre tinham um acento sexual, já que elas gritavam sensualmente, o medo era quase o mesmo.

O Drácula estacado.

O cineasta pegou pesado na morte desta figura pálida e anêmica: poderia tê-lo matado com um tiro de bala de prata ou com um punhal enfiado em seu coração, mas preferiu dar cabo dele com uma grossa estaca cravada em seu peito por um golpe de marreta! Assim, uma das cenas inesquecíveis e mais cruéis — uma das poucas que retive em minha memória — era esta em que o ator Barry Andrews, no papel do jovem Paul, enfiava tal estaca no peito do Drácula quando este repousava em seu caixão. Esta cena impressionante foi o ápice daquele sábado à noite. Todas as crianças, e até adultos, ficaram chocados com a cena, e ficaram mais ainda (algumas gritaram) quando o sangue grosso começou a jorrar!

Maria Mueller e Paul
Mas havia ainda uma grande surpresa: quando todos tinham pensado que era o final do filme, o vampiro conseguiu retirar a estaca de seu peito e sobreviver!... Depois, houve outra cena tão chocante quanto, cena da qual não me recordava mais, em que o Drácula, numa briga com Paul, cai num precipício e uma cruz de ferro transpassa suas costas”.

E, enfim, como esquecer também das duas belas jovens do filme — Veronica Carlson (Maria Mueller), Barbara Ewing (Zena) —, que aparecem em algumas cenas com seus seios fartos e insinuantes quase pondo-os à mostra? Infelizmente, nestas horas, a “mãozinha santa” do Jácomo Petruz, numa espécie de censura instantânea, entrava em cena tapando a lente frontal do projetor, já que havia muitas crianças e menores de 18 anos no clube. Eram os momentos em que as vaias, risos e indignações eram gerais. 




O medo de voltar para casa ou "Give peace a chance" 

A varanda da entrada do cinema da Usina.
Após o final do filme, havia um pessoal que costumava ficar na varanda conversando e debatendo sobre o que acharam das cenas, porém, algumas passagens davam mais ibope...

— Gustão, você viu que loira foi pra cama com o cara que estacou o Drácula?!

— Loira, Miltinho?! Aquilo é uma loiraça, meu!

— E por falar em cama, você viu o John Lennon e Yoko Ono?

— O quê que foi?

— Eu vi hoje num documentário na TV: os dois, num hotel do Canadá!

— Mas o quê que tem?

— Você acha que pode: os dois fizeram um protesto contra a Guerra do Vietnã, dando entrevistas pra imprensa deitados numa cama!

— Que malucos!


Madres e crianças no recinto do cinema, em dezembro
de 1971: para esses, filmes do Drácula, nem pensar!...
— E foram mais de 60 entrevistas num espaço de 10 dias!

— Caramba, Miltinho!

— Cara, olha essa música agora naquele carro agora! Linda!

— Conheço! É “Goodbye”, com a cantora Mary Hopkin, outra loiraça!...

— Uau!

— E sabe quem é o autor da música?

— Nada mais, nada menos que o Paul MacCartney!

— Esse cara é foda: o melhor compositor dos Beatles!

— Podes crer, e acho que se ele seguir carreira solo, é o que mais vai fazer sucesso!

— Podes crer, meu: baladeiro como ele, não tem pra ninguém!

"Goodbye", com Mary Hopkins.

John Lennon e Yoko Ono, no polêmico "bed-in", o célebre protesto
a favor da paz, contra a Guerra do Vietnã, em agosto de 1969.
Nós, da colônia de baixo, voltávamos para casa tão logo terminava o filme, ainda mais sendo um filme com um teor desses, mas.... o pior estava por vir: tínhamos receio de voltar à pé para nossas casas, tamanho era o pavor de... encontrar o Drácula!... 

Ninguém bancava o besta de descer a estrada sozinho, e sempre descia num grupo ou, no mínimo, procurava a companhia de algum adulto. Nossa esperança era descer com o Gustão e do Miltinho, que eram mais velhos que nós, mas...

― Nós vamos ficar aqui fumando e conversando, molecada. Nem adianta esperar.

Obviamente, não iríamos e nem podíamos esperar. Ah, se a madrugada terminasse rapidamente e os galos cantassem anunciando a aurora, trazendo o Sol! Assim o vampiro fugiria da luz indo se recolher ao seu caixão. Invariavelmente, teríamos de enfrentar a escuridão ao lado da mata.

― ...mas e se o vampiro aparecer lá naquelas baixadas, Marcos?

― Trouxe uma réstia de alho para espantá-lo, Wenilton?

― Não.

― Uma rosa silvestre?

― Não.

― Um crucifixo, então?

― Muito menos!

― Então, meu filho, o melhor é você se juntar no bando e enfrentar a caminhada!...

O Volks-Wagen 1660, vulgo Zé-do-Caixão

E o medo era tanto, que as baixadas da comporta do tanque — que eram os lugares mais escuros e onde às vezes havia sapos cantando nesta época —, pareciam remeter à um recanto sombrio qualquer da sinistra Transilvânia. 


— Wartinho, e se o Drácula estiver escondido lá na casinha do Seu Ângelo?

— O Drácula escondido debaixo de umas ramas de xuxu — ocê tá louco, Wagner!...

— Sai da estrada, molóide, que vem vindo um carro!

Era uma das coqueluches do momento, o recém-lançado VolksWagen Sedã 1600, com 4 portas, que desceu “chutado” pela estrada em direção à cidade.

— Nossa, é um Zé-do-Caixão!

— Zé-do-Caixão?! Deus me livre! É hoje!!!...

E o carro passou largando poeira, rolando “Yester-Me, Yester-You, Yesterday” com o som no último.

— É um carro bonito, mas prefiro o Opalão 2500 de luxo!

— Podes crer!



A Usina à noite em 1976.
Quanto à escuridão, o mesmo se dava para quem ia para a colônia da fazenda Palmeiras, onde num certo trecho haviam arvoredos fechando os bordos da estrada e um velho casarão abandonado ali, lugar onde era comum pessoas se esconderem para assustar o que passavam por ali à noite. 

— Paulinho, quero ver se, numa hora dessas, você tem coragem de passar naquele trecho de estrada entre a venda e a colônia da fazenda!

— É, tem aquele casarão mal-assombrado lá, né, Wenilton!

 — Ah, ranquei meu! Nem matando! Mas, Paulinho, que filme doido, hein!

— Melhor seria ter ido ver "Hércules, o invencível" lá no Cine Araruna.

— Mas e a censura?

— Dez anos!

— Batata!

— Cara, preciso assistir esse filme! Todos eles são legais: o do Maciste, do Sansão, do Golias, Ursus...

— Podes crer, Paulinho!

Já para as estradas do lado norte — que levavam à fazenda Montevidéu e São Bento —, o que havia eram cafezais, de modo que o que mais se via era o céu estrelado. Já para o lado leste — indo para os sítios do Marião e do Narciso, bem como outros — o mesmo se dava, sendo que os cafezais eram substituídos por canaviais, de modo que a caminhada era tranquila.

Quanto à nós, ali na colônia de baixo, dormíamos sem problemas, resguardados pelas luzes, pelos prédios e maquinários rangentes da Usina, e, ao contrário de uma prima nossa da cidade que, muito jovem ainda, atreveu-se a assistir o maior filme de horror de todos os tempos, o então pavoroso “O Exorcista”, e, como castigo, precisou dormir junto de sua mãe por quase uma semana, tanto era o seu medo!... 


O lobisomem da fazenda Santo Antonio

Até então, mal se falava em vampiros naqueles tempos: vampiro era coisa ocasional de filmes de TV ou de histórias em quadrinhos — na verdade, mesmo nos gibis, os vampiros ainda demorariam um pouco para aparecer com frequência, o que se deu cinco primaveras depois, em setembro de 1976, com a primeira edição da revista Kripta.

Na Usina — quando se falava nesses assuntos — o que vinha à baila eram sacis, mulas-sem-cabeça, boitatás e um ou outro lobisomem. Eu mesmo, só fui ouvir falar de lobisomem uns quatro anos depois, na casa de minha avó Ana, que, num de seus serões matinais que fazia conosco antes de irmos para as aulas de Educação Física lá na cidade, nos contou de um que aapareceu algumas vezes para as crianças na "Colônia Grande" da fazenda Santo Antônio, quando morara lá na década de 1930.

A colônia da fazenda Santo Antônio em 1910, e a casa de meu avô à direita.
Eis a velha história. Certa noite, por volta das 9 horas, junto de outras crianças, estava o meu tio João Rocha — menino à época — no terreiro ao lado de sua casa brincando de cute, que era como se chamava o “esconde-esconde” à época. A uma certa altura, todos viram, à distância, um estranho e sinistro vulto parado e olhando fixamente para eles. As crianças se assustaram e fugiram amedrontadas. Meu tio entrou pela sala todo esbaforido e foi logo gritando para meu avô Francisco: "— Pai, tem um bichão grande, feio e peludo lá fora!"  Imediatamente, ele saiu para o terreiro e lá estava o vulto, de aparência humana, mas todo peludo, parado sobre quatro patas como um cachorro, quieto e olhando de modo ameaçador para ele. Sem medo e sem vacilar, ele gritou para a criatura: "— O que você está fazendo aqui?! Vá embora!"

vulto virou-se e desapareceu no meio da escuridão do mato. Porém, voltou em outras ocasiões, mas nunca ofereceu perigo atacando alguém, sequer aproximou dos moradores. Se limitava à olhar e partir depois de ser enxotado. Depois de um certo tempo asombrando nas noites da fazenda, a criatura sumiu para nunca mais aparecer.

Em entrevista com meu tio décadas depois, infelizmente, não perguntei sobre mais detalhes sobre a criatura, como, por exemplo, se ele emitira algum ruído ou voz, se tinha cauda, o desenho e tamanho das orelhas, mãos com garras, caninos salientes, bem como a cor dos olhos (há muitos casos de criaturas assim com olhos pequenos cor vermelho brilhante), mas disse-me ele que o animal tinha cerca de 1 metro de altura. 

João Rocha 1930-1991
Convém recordar que cerca de duas décadas antes, um exemplar do Tribuna do Povo, do ano de 1916, publicou uma reportagem transcrita de um outro jornal, o Cidade, de Bariri — município paulista situado a cerca de 170 quilômetros a oeste de Araras —, onde é relatado um caso em que os depoentes se depararam com uma criatura, talvez semelhante ao que meu avô e as crianças viram, a que denominaram "monstro". Muito provavelmente, pela descrição que deram meus parentes, aquela aparição poderia ser um lobisomem ou mesmo o folclórico Gritador, que, à época, andava assombrando todo o interior do Brasil, porém, como vimos, o animal quando apareceu às crianças não emitiu vozes ou ruído algum (para não assustar as crianças?), mas, como no caso de Bariri relatado abaixo, normamente o gritador faz seus berreiros quando longe das pessoas estando oculto nos matagais. Eis a reportagem transcrita na íntegra.
 

“Monstro

Lemos na ‘Cidade’, de Bariri o seguinte: 

Na fazenda ‘Capivari’ deste município, altas horas da noite, foram os moradores despertados por um acontecimento extraordinário que os pôs em verdadeira polvorosa.

De uma capoeira próxima à casa de Manoel Costa, partia uma espécie de gemidos, quase humanos, e por vezes se elevavam assumindo as proporções de verdadeiros urros.

O que seria? 

Armados, os moradores da vizinhança avançam medrosamente para o local e deram cerca a capoeira.

De súbito surgiu um indivíduo que de humano tinha o gesto e a figura.

Vasta cabeleira desordenada cobria-lhe o rosto pardavasco, onde dois olhos pequeninos e rubros como carbúnculos luziam ameaçadoramente.

Fitando a escolta, escancarou a boca numa gargalhada, mostrando as presas que passavam os beiços, num salto, atravessou o caminho internando-se nas matas.

Nessa ocasião, os da escolta estarrecidos de pavor, viram que o ‘monstro’ tinha o corpo coberto de abundantes pelos.

A policia tomou conhecimento do fato.”


Na década seguinte, meu avô se mudou com a família para a fazenda Montevidéu, local também assombrado e de muitas aparições fantásticas, como, por exemplo, a vista numa certa noite num serão, onde ele e minha avó presenciaram ao longe a chamada “Loira-de-sete-metros”, uma aparição que costumava ser vista pelo mundo todo, bem como ele se deparou, certa vez, com um boitatá no carreiro de um cafezal, curiosos assuntos de que tratarei em outro capítulo. 


Lubigarrú! Mas que diabos é isso?!

O Loup-garou, o temível lobisomem francês.

Ali por 1974, lembro-me de um dia quando meu irmão voltou da escola com uma nova e misteriosa palavra na boca — palavra esta que ele ouvira durante uma aula de francês — algo que entendi como “lubigarrú”: era o temível Loup-garou, o lobisomem dos franceses. Do modo como a palavra foi dita por ele, passou-me a impressão de algo misterioso e sinistro, até que ele a explicou, falando que era um lobisomem...


— ...foi a dona Irma Cressoni, a professora de francês que nos contou! Na verdade, eu ouvi falar dele pela primeira vez através dos mineiros ─ aqueles três irmãos lá da fazenda Palmeiras, e achei engraçado o nome. 

Dona Irma Cressoni





— Engraçado?! Esse nome é misterioso prá caramba!

— Daí que eu chamei de lubigarrú um menino da minha classe durante uma aula dela, ela ouviu e ficou surpresa que eu conhecesse ele, e me explicou o que era.

— Lu-bi-gar-rú?! Que nominho feio também, hein, Weber!

— É, é nome que eles dão para o lobisomem lá na França, a dona Irma disse! Um bichão peludo horroroso!

— Sai fora, meu! 


                              Lobisomens usineiros... 

O LP com a trilha sonora
E os vampiros continuaram dando ibope na Usina: quando no dia 3 de maio de 1976 estreou na Rede Globo a célebre novela “Saramandaia” — e a novela caiu no gosto popular —, os lobisomens ganharam mais terreno por ali e se tornaram o assunto preferido das rodas até entre mulheres. O fato se deu com o personagem interpretado pelo ator Ary Fontoura: um coletor de impostos — sujeito que não dormia há nove anos! Era o professor Aristóbulo Camargo, que virava lobisomem nas noites de Lua cheia.

— Olha, Dona Cidinha, a Usina Palmeiras não é como Bole-Bole, que tem a maior usina de açúcar da região, mas tem cada rapai aqui que num deve nada pr’esse lobisomem da Saramandaia!...

— Eu quero mesmo é ver se aparece uma Risoleta na vida deles!...

— Ih, ih, ih!...


*   *   *

O lobisomem de Saramandaia
Não se sabe de alguém que tenha se deparado com um lobisomem na Usina naqueles velhos tempos, mas, como se viu, havia mais de um homem ali que de tão barbudo e desleixado que era que se parecia mesmo com um, e eu não vou dizer quais eram...


— Olha esse aí saindo do cinema, Teschinha, num parece um lobisomem?...

— Fala baixo, Julião!

— De todo modo, co’essa Lua cheia aí fora, é melhor ele ir embora sozinho, pois vai que...

— Há, há, há!...

*    *    *  

Mas foi assim, que, naquela distante e inesquecível data primaveril de 1969, ficou gravada no imaginário daquela gente a pavorosa figura do conde Drácula , entidade que, pelo menos uma vez, viera assombrar as escuras e sossegadas madrugadas das paragens usineiras.

─ Não sei se você sabe, Tonholi, mas o Drácula não pode sair por aí em noite de Lua cheia.

─ O que eu sei é que ele não pode ver a luz do Sol, Wenilton, mas porquê em noite de Lua cheia também?!

─ Oras, a Lua reflete a luz do Sol.... 

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* Este capítulo faz parte do  Volume 2 - Sweet memories ― janeiro de 1969 a dezembro de 1970". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


AQUI, TODOS OS LIVROS DA SÉRIE:



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sábado, 6 de junho de 2015

CANTO DE MURO

O segundo apelido ― Coração de mãe  ―  Seu Paulo  ― O desenlace  ― A partida dos Domingues  ― O “Circo dos bobos”  ― As crianças diante da morte  ― A catalepsia, uma morte pavorosa  ― “Nunca houve um silêncio assim”  ― O tal de câncer  ― Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua  ― Watergate  ― Dona Maísa  ― Conversa de comadres  ― Não existe nada mais antigo...  ― Um período de intensa atividade musical  ― Um novo e polêmico cometa  ― A erradicação do Jardim do Éden  ― Os Mistérios do Firmamento


stranho dizer que sua morte
não dissipou a sua presença.
Continuou marcando nossos dias (...)”
(A família de guizos: história e
 memórias. Ivna Thaumaturgo.1997)

“O seu lugar aqui
nunca será preenchido.”
(Memórias de outro tempo.
Francisco de Britto. 1980)

"Os médicos nunca sabem curar os próprios males, 
embora os compreendam perfeitamente. Também 
os doentes não se curam por si mesmos, mas conhecem, 
quase sempre, a extensão das próprias enfermidades." 
(Psicanálise de gênios - Doentes 
célebres. Gastão P. da Silva. 1980) 


O Presidente dos EUA, Richard Nixon
Era naquele período turbulento da cinzenta trindade Nixon, Watergate e Vietnã, no polêmico ano de 1973, ano atípico que, pelo mundo todo, reuniu eventos e acontecimentos marcantes nas mais variadas áreas, como, p. ex., na histórica, geopolítica, econômica, musical e cultural etc. 

Cá no Brasil, em pleno governo Médici, era o Regime Militar ainda que era a segurança e amenidade à sua inocente e ordeira população, e o terror dos subversivos e comunistas de plantão (para estes, era a “ditadura”...). Chegávamos ao final do chamado Milagre Econômico, onde o PIB brasileiro crescia a uma taxa de quase 12%. Era o ano da inflação, do flagelo mundial, da crise do petróleo, que se aprofundaria daí por diante, onde o ministro Delfim Neto lançava por todo o Brasil os cartazes de sua campanha: "Diga não a inflação", como se isso fosse uma frase mágica que, uma vez dita, tudo começaria a mudar para melhor!...

Mas lá, amigo, lá na nossa saudosa e serena Usina Palmeiras, algo tristíssimo também estava por acontecer, e coisa tão ruim quanto, e envolvendo aquela entidade sinistra que apavorou, apavora e sempre vai apavorar a humanidade em todos os tempos: a implacável senhora morte e suas terríveis reinações! E a morte de que tratarei agora será contextualizada dentro desse interessante e caótico cenário que foi o ano de 1973.


O segundo apelido

Mas antes de comentarmos esse triste assunto, vamos falar de amenidades. 
O Seu Paulo Domingues, em 1969

Das pessoas adultas que conheci em meus tempos de menino na Usina, das que tive estreita amizade, o farmacêutico Seu Paulo Domingues é uma das mais gratas e caras lembranças que levo comigo pela vida afora. Pelo modo como me tratava, era quase com um segundo pai para mim, um verdadeiro conselheiro, e, acima de tudo, ótimo conversador.

Acredito que, dentre os meus irmãos, eu era o único a ter uma amizade mais sólida e constante com ele, e sempre que nos víamos, nunca deixávamos de bater um papo, uma conversa sobre um assunto qualquer — não me recordo do que normalmente conversávamos, mas isto não importa à narrativa.

O "Mosquito Elétrico"
Um apelido me foi dado por ele, “Lito” — o segundo de minha vida! —, apelido fruto dessa intimidade e camaradagem que havia entre nós. O primeiro — ainda dos tempos da cidade —, era muito semelhante: "Nito", acho que dado pela minha querida tia Naide. Não fui o único a ser “batizado” pelo seu Paulo, pois meu irmão mais novo, o Weber, também recebera um, e bem de acordo com o seu temperamento na época: “Mosquito Elétrico”, e lembro-me que esse apelido pegou, e era motivo de muitas chacotas entre a meninada.

­“— Lito, cadê aquele danado do Mosquito Elétrico que não apareceu aqui hoje!”

O "Lito", em 1972
“— Está lá na cidade, Seu Paulo, na casa da madrinha dele”

Feito velhos amigos, tínhamos uma relação bonita eu e o Seu Paulo, e penso que essa amizade era muito semelhante à do seu Portuga e o menino Zezé — me refiro aos personagens do livro “O meu pé de laranja lima” —, pois me tratava com o mesmo carinho que um pai tem para com um filho. Mas, assim como o Zezé, eu jamais chegaria ao ponto de dizer: “Você é malvado, menino Jesus!”, "Porque você faz isso comigo?!”, frase que o menino, inconsolável,  disse após a morte de seu grande amigo. Digo isto porque o assunto tristíssimo de que trato aqui é justamente a morte de Seu Paulo.




Coração de mãe

Luciana Daltro, Valéria Coutinho, Daniele Bovo e 
Isnaldo Coutinho, na escadaria da casa do Seu Paulo.
A casa dos Domingues era a primeira da colônia para quem chegava da cidade, e das maiores dentre as seis que ali havia. 

Na entrada havia uma escada central que levava para a área em que de lado esquerdo ficava o consultório do Seu Paulo, e à direita a sala do dentista Emerson Mercatelli. 

Este, atendia seus clientes a noite em alguns dias da semana — era quando a área da casa dos Domingues se enchia de clientes, que vinham não só da “colônia de baixo”, mas também da “de cima” — e creio que também da fazenda Palmeiras —, enchendo o ambiente de um falatório interminável. Não devia ser confortável para os Domingues assistir televisão na sala nestas noites de atendimento, já que aquele borborinho que reinava ali não cessava um minuto.

O quintal da casa da família Domingues, e na parede ao fundo, pichado em branco, o nome de sua filha caçula, a Ana Deise, provavelmente escrito no ano da morte de seu pai .

Sua casa era um lugar onde frequentemente nos reuníamos para brincar, de modo que todas as crianças ali viviam gravitando em torno do Seu Paulo e sua esposa, a dona Maisa. E essa casa era como um coração de mãe — cabiam todas as crianças ali, e todas eram bem recebidas, de modo que brincadeiras no quintal de sua residência eram constantes.

­“— Entra lá, Lito, que os minino estão brincando no quintal!”

Como já o disse aqui em outro capítulo, dentre os meninos da “colônia de baixo”, a exceção era o Toninho Lima, que tinha birras com o Seu Paulo — que o considerava um menino rebelde —, e quem sabe se ele — que havia me confidenciado isso —, não o considerasse uma má influência para mim. Porém, pouco tempo depois, o Toninho veio a se tornar um grande amigo meu, e como ele era um menino meio independente e individualista, era restrito o seu círculo de amizades ali, e, sendo assim, nem sei como consegui invadir essa espécie de fortaleza que era o “invunerável” Toninho. 

E gora, uma música adequada para sonorizar os capítulos seguintes: "Ultima Thule", com o grande Ashera!





Seu Paulo

Seu Paulo
Mesmo passados tantos anos, tenho ainda a voz do Seu Paulo viva em minha mente, e posso mentalizá-lo falando-me, com aquele timbre peculiar que era só seu, e que me lembrava um pouco o Tio Barnabé do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” na interpretação do grande Samuel Santos. Seu Paulo lembrava um pouco o célebre locutor Majestade, que diziam ter a voz mais bonita que o rádio brasileiro conheceu, porém, semelhante no rosto, não na voz. Majestade era um dos apresentadores do programa de música clássica "Primeira Classe", que a Rádio Jornal do Brasil levava ao ar diariamente, às 13 e às 20 horas na década de 1960.

Homem educadíssimo e de gestos econômicos — até então, era a pessoa mais polida e recatada daqueles idos. Apesar do falar manso e tranquilo, só erguia a voz quando tinha de passar um corretivo qualquer em um filho seu.

­“— Paulinho, ocê desce já daí, minino, ou a cinta vai cantar!”

Depois do Seu Angelo — o horticultor que cuidava dos milharais no declive da “colônia de cima” —, creio que o Seu Paulo era a pessoa mais gentil e serena que conheci naqueles tempos. Foi essa a impressão que me ficou, no meu julgamento de menino perante um terno amigo.

Sua figura era indissociável do ambiente da Usina, em especial o da colônia onde vivíamos. Era comum, enquanto brincávamos, vê-lo atravessando o passeio em frente às casas, com aquele seu jeito peculiar de caminhar, andando à passos curtos, sempre tão tranquilo e sem pressa, como que a medir o chão. Trajado com seu inseparável jaleco branco, a calça cinza e os sapatos pretos impecavelmente lustrosos, era inconfundível à distância.

À direita, a casa que foi residência do Seu Paulo Domingues até o primeiro trimestre de 1973. Depois, com a mudança da família para a cidade, veio o novo farmacêutico, o Bovo.
Finalmente, foi do Barranquinho, em 1976. A árvore à esquerda, de tronco escuro e na curva do jardim, é o citado flamboyant, e, ao fundo, o velho barracão de açúcar.

A maior parte do tempo não havia clientes na farmácia — era quando ele saia ao passeio e parava num quanto qualquer. Ali, como um brâmane em concentração, ficava pensativo por longos instantes, olhando os entornos, ensimesmado, com as mãos cruzadas atrás das costas e a barriga para a frente, como se estivesse certificar de que tudo corria de acordo com os conformes e seus ditames. Sob essa espécie de discreta vigilância, as crianças brincavam livres e despreocupadas no gramado às sombras dos coqueiros, figueiras e flamboyants.

­“— Gusto, vai buscar o dominó que essa meninada está louca para jogar!”

Parecia-me uma pessoa tão enraizada na vida, cultivando-a sempre, decidido, em tudo o que fazia. Como farmacêutico, era um profissional dedicado e atencioso, no que parecia seguir o ideal de Hipócrates, para o qual, a medicina era uma religião. Éramos atendidos com frequência por ele, já que por brincarmos constantemente pelos matos e quintais, sempre tínhamos um machucadinho qualquer para tratar. Lembro-me de uma passagem em que, certa vez, meu irmão Weber — lá com seus mirrados 10 anos —, foi atendido pelo seu Paulo, pois machucara um dedo seu e tivera que tomar uma injenção para evitar tétano. Nunca me esqueço do que ele disse à mim e ao Isnaldo:

­“— Nossa, quando ele aplicou a injeção em meu dedo, parecia que estava enfiando uma agulha num cano!”

Eu e o Isnaldo arrepiamos...


*   *   *

Um dia, eu, triste e preocupado, procurei o consolo de suas palavras:

─ O senhor gosta do quê faz, seu Anjo?

─ Muito, Lito!

─ Meu pai, às vezes, bota eu e meus irmãos para carpir a hortinha lá de casa, arrancar as tiriricas e pedras, e, pior ainda, faz a gente ir buscar lá embaixo num galpão da usina uns canos pesados que ele usa nas antenas que ele vende e instala nas horas vagas. Isto judia muito da gente. A gente quer brincar e não pode.

─ Meu filho, muita atenção no que eu vou te dizer: embora muita gente reclama, estamos ainda numa época em que é normal as crianças trabalharem, e ninguém tem o direito de divertir-se enquanto a trabalho não está pronto. Só que tem uma coisa: não há problema algum em transformar o trabalho em divertimento, e as crianças mais espertas sabem tirar partido disto. E que problema tem os meninos executarem trabalhos de homens, pois isto é uma aprendizagem para os meninos serem homem um dia. Eu, com 10 anos, já fazia uns trabalhinhos ajudando meu pai, e, apesar de ser um pouco sofrido, era meio que um divertimento.

Seus ensinamentos eram verdadeiras dicas de como ser um homem entre os homens, sem benevolência e atitudes protetoras. Ensinava que se uma pessoa fosse educada como realmente deveria ser, era quase impossível alguém, ou ela própria, matar o menino que existe dentro de si, isto, por mais rudes que sejam os golpes desferidos pelo destino e pelo acaso na marcha em busca da maturidade.


O desenlace

Chegamos, enfim, ao “dia tristíssimo” a que antes me referi. Era na quinta-feira de 29 de março de 1973, o dia da morte do Seu Paulo! Moço ainda, aos 42 anos ─ na plenitude da vida. No dia anterior ─ como esquecer ─ nossa caçula, minha irmã Luciana, havia completado 6 anos, e as crianças da colônia haviam participado da festa, inclusive os filhos de Seu Paulo, mas tristes por saber do pai internado.

Cruz e palma de anúncio funerário da época.
Sua morte pegou a todos nós crianças de surpresa, e muitos, em sua ingenuidade, deviam pensar coisas como: “Quem cuidará de nossas feridas e machucados daqui para a frente?”, ou “E agora: os doentes e feridos terão de ir para a cidade para serem tratados?”

Após sua morte, as crianças da colônia começaram a perguntar sobre o que é morrer e o que é desaparecer para sempre. Soava muito estranho, ver alguém deixar-nos subitamente, ser lacrado num caixão e ir para baixo da terra; aliás, isto era algo horrível, uma coisa, diria, bem “sufocante”. Digo isto porque, por esta época, estava dando o maior ibope a tal morte por catalepsia ― de que falo no próximo subcapítulo ―, ou seja, aquela em que a pessoa parece estar morta, mas na verdade não está. Daí, ela é enterrada viva e depois desperta trancada dentro do seu caixão! Não havia nada mais horrível e pavoroso ouvir histórias como essa na televisão! As reportagens diziam que havia quem estivesse fabricando caixões especiais, com recursos de rádio e alarme para uso no caso de a pessoa despertar depois de enterrada!... O pavor era tanto, que não havia quem, seja criança, seja adulto, não sonhasse em ser enterrado num caixão com estes recursos... Certa vez o Weber disse:

­“— Já pensou no que é acordar dentro de um caixão escuro, estar preso ali, gritar, se debater e ninguém te ouvir e não ter como sair dali!”

“— Ah, ranquei, meu!”

“— Sartei de banda!”


A partida dos Domingues

O gramado em frente à residência do Seu Paulo.
Na bicicleta, o Zico indo para a cidade; 1974.
A morte do Seu Paulo virou uma página na história da Usina. E ela mexeu deveras com nós crianças, e em vários sentidos. Com a partida de sua família para a cidade após sua morte, o triste também é que perdemos vários amigos de uma só vez. Esse agradável convívio durou por volta de seis anos, mas foram seis anos onde, todos juntos, vivemos intensamente feito irmãos. 

O baque seria grande, e, com isso, a “colônia de baixo” se tornaria menos povoada de alegria sem essa e outras famílias que também se mudaram para a cidade pouco depois. Numa colônia de apenas seis casas, a perda de cerca de uma dúzia de amigos pesava muito. Vale dizer, e lamentar, que a partida para a cidade destas famílias, diminuiu muito, por assim dizer, a nossa qualidade de vida e o nível de nossos entretenimentos na “colônia de baixo” — o fato resumia-se num dado muito claro: “menos amigos para brincar”.

O gramado em frente à colônia. Ao fundo, a casa dos Coutinho Pereira, ao 
lado da casa dos Domingues, à esquerda. Criança não identificada; 1973.
Já com a partida da família dos Lucredi — o que se deu creio que no final de 1970 —, eu, particularmente falando, perdia pelo menos dois amigos “intelectuais”, companheiros com os quais gostava de conversar, pois tínhamos muitas afinidades. Me refiro ao Aroldo e ao Hedewandro, com os quais tinha relações mais frequentes, em especial este último, que era um menino muito culto.

Na partida os Domingues, perdíamos mais cinco amigos — amigos de tantas e instigantes brincadeiras rústicas típicas da zona rural.

Tão triste quanto, um ano depois dos Domingues foi a vez dos Balotin partirem, o que nos desfalcou de outros grandes amigos, digo, amigas, as irmãs Mara, a Magda, a Márcia e a Marta. 

Não pude ver a partida dos Domingues, aliás, de nenhuma destas ­famílias — tudo o que sei que é que, um dia, voltei da escola depois do almoço ou no final de tarde, e, para minha tristeza, eles não já estavam mais lá — a casa vazia, silenciosa e fechada: não mais havia vozes de crianças e jovens alegrando o passeio em frente à casa deles, nem de nossos pais conversando banalidades.


O “Circo dos bobos”

O Celso Domingues
Assim, com a partida da família, não mais brincaríamos juntos nos depósitos de açúcar; não mais faríamos cavernas nos barrancos de terra vermelha; não mais escalaríamos as paredes do depósito “buracão”, não mais nos enveredaríamos pelos recessos do cerradinho e do eucaliptal que existia à sudoeste da Usina. Fumar escondido, à noite, no páteo da Usina, nunca mais.

A Rita e o Marcos C. Pereira, de Raul Seixas, no muro da casa dos Domingues

As partidas dominó, tômbola e baralho no banco sobre a sombra do velho flamboyant se encerrariam para sempre, e não mais encenaríamos o nosso cirquinho no quintal da casa dos Domingues.

Lembro-me de um desses dias, em que o Celso, que era pouco mais velho que nós, pegou uma cadeira e, estranhamente, se intrometeu na brincadeira, que foi a última brincadeira que tivemos juntos ali, e, incrível, uma cena que trago tão viva em minha mente, que “parece que foi ontem”! Em cima da cadeira, com um giz branco, escreveu na madeira da tesoura do telhado do ranchinho: “Circo dos Bobos”, querendo dizer que nossa brincadeira era uma tolice... 

Não ligamos: continuamos nossa brincadeira, entretidos conosco mesmo, brincadeira esta cuja inspiração, com certeza, viera das tardes de brincadeiras e aprendizados com o vovô Bombonati, o pai de dona Maisa, de que falo em um capítulo do ano anterior.


As crianças diante da morte 

Ninguém podia acreditar na morte do Seu Paulo e, como é comum entre as crianças, nós realmente não acreditamos no que aconteceu: tudo parecia uma mentira de muito mau-gosto. Era tudo tal como dissera Marcos Pivetta: “o primeiro contato de muitas crianças com a questão de finitude da vida.” Mas, cargas d’água, porquê as crianças são sempre as últimas a saber de a morte de alguém?! E, também, por que são as que menos se fazem crentes depois de saber do acontecido?!

Criançada em frente à casa do Seu Paulo, em 19-1-1975.
Eu, com meu raciocínio infantil, também não fugia à regra e não conseguia admitir tal circunstância; e, na verdade, eu nem tinha uma ideia muito precisa do que fosse a morte — à minha mentalidade, à incompreensão de meu jovem espírito, realmente ela era algo muito difícil de entender e assimilar. Naquela idade, era um “mistério” que pouco compreendia — ainda não tinha capacidade de conceber muito bem o que era origem e o final de uma vida, e, “desconhecendo” a morte, não podia temê-la como os adultos a temem — o que restava era tão somente a estranha sensação de não crer no que realmente tinha acontecido. Se é difícil para um adulto processar este assunto, imagine-se para uma criança!

Mesmo quando passam a “entender” a morte, as crianças, em sua inocência, sempre acham que um adulto muito querido é como um herói que nunca vai morrer e o anjo da morte jamais o vencerá. Porém, todos compreendíamos que dali para diante, simplesmente não mais veríamos o Seu Paulo, e isso era tudo.

No curso de minha passagem pela Usina, sua morte se tornou um dos fatos mais impressionantes de minha vida; no entanto, pouco tempo depois, se apagara para sempre de mim este sentimento de não entendimento e da perplexidade ante algo que até então me era bastante incompreensível. Por outro lado, esta sensação, talvez, não deixava de certa forma, ser uma maneira inconsciente de a imagem do Seu Paulo nunca morrer dentro de mim.



A catalepsia, uma morte pavorosa

Seu Anselmo e sua esposa, dona Pina.
Seu Paulo era e a primeira pessoa adulta da “colônia de baixo” que falecia desde nossa chegada ali, exatos seis anos antes. 

Porém, foi em nossa viagem de férias à Santos, na primeira semana de 1970, que vi o primeiro homem morto em minha vida, mas, não sei porque, aquela visão não me impressionou. Lembro-me que, em certo trecho da estrada, tivemos de diminuir a velocidade que algo havia acontecido adiante de nós. Ao passar, acho que por um Corcel vermelho, vi sua porta semiaberta e sobressaindo-se à ela a careca de um homem morto num acidente. 

Meses depois desta viagem, em 28 de julho de 1970, havia falecido o senhor Anselmo Martinelli, amigo já bem idoso de nossa família e vizinho de nossos avós maternos na cidade. Foi com sua partida que, pela primeira vez, experimentei esse estranho sentimento de incredulidade diante da morte de um conhecido, sentimento que durou pouco não se fazendo sentir nas mortes seguintes. 

Outra morte de que me recordo e que mexeu comigo, aconteceu dois anos depois, meses antes da morte do Seu Paulo: a morte do ator Sergio Cardoso, em 18 de agosto de 1972. Morreu, aos 47 anos, no banheiro de sua casa. Gravava na época a novela ”O Primeiro Amor”, e faltavam apenas 28 capítulos para o desfecho. Em seus últimos dias, andava muito preocupado com a morte, e ouviram-no confessar: “Gostaria de morrer como Cacilda Becker: no palco, com a cara maquilada.” Me lembro perfeitamente da repercussão que deu sua morte, e os jornais disseram que 15 mil pessoas compareceram ao enterro no cemitério São João Batista. E a coisa não pararia por aí, pois, logo depois, surgira uma polêmica lenda em torno de sua morte, e que deu o que falar: a de que teria sido enterrado vivo! Tudo começou com um boato, não se sabe criado por quem, e que repercutiu em toda a mídia brasileira, dizendo que o ator sofria de catalepsia, uma doença rara que deixa os membros rígidos por horas a fio, como se a pessoa estivesse morta. Assim, por causa da doença, Sérgio Cardoso teria sido enterrado vivo!... A história dizia até que a família pediu a exumação do corpo, e ao se abrir o caixão Sérgio estava virado de bruços, com arranhões no rosto. O boato é negado pelos familiares até hoje. Por anos à fio esta lenda andou no imaginário popular e foi recontada em diferentes versões, causando medo principalmente em familiares de pessoas vítimas de ataques cardíacos. 

A última morte impactante destes tempos foi a de meu avô materno, Francisco Rocha, em 10 de julho de 1974, e a primeira de que me recordo que vi um caixão de defunto, mas não tive coragem de me aproximar e vê-lo exposto ali, na sala de sua casa. Esse medo “irracional” de ver um morto em seu caixão durou até 1981, quando, certa vez, me dirigindo ao segundo andar da Igreja Matriz, lá de cima vi um defronte o altar numa missa de corpo presente. Não sei quem era o falecido.

À propósito, os antigos diziam que se uma criança não vê um ente morto dentro do caixão, durante muito tempo ela irá achar que ele não morrera. Hoje, a morte já não causa tal impacto, principalmente quando a gente está ciente de que ela, em casos irremediáveis assim, é um mal menor — a típica situação em que, como se diz, “deixou de sofrer”. Como diria um futuro mestre meu sobre a morte, o etólogo austríaco Konrad Lorenz, “ela produz um sentimento real no homem sensível, embora ele saiba que o sofrimento e a morte são inevitáveis na grande harmonia da criação.” À propósito, Lorenz ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina justamente neste ano, 1973, por seus estudos sobre o comportamento animal, no ramo da ciência denominado Etologia.

Desde esta época, eu não tinha a mínima coragem para ver um morto num caixão. Na morte de meu avô Francisco Rocha, no ano seguinte, em 1974, ainda mantive esse receio e sequer me aproximei de seu caixão no meio da sala. A primeira que vi um morto — na verdade, vi de relance, sem querer —, foi oito anos depois, já marmanjo!... — estando no segundo andar da “Igreja Matriz”, quando me deparei com um caixão lá embaixo em frente ao altar, e deixei a igreja imediatamente...


“Nunca houve um silêncio assim”

Marcos e Isnaldo Coutinho Pereira; ao fundo, o velho flamboyant,
sob cuja sombra brincávamos. Foto do final da década de 1970.
Foi uma consternação geral o que havia ocorrido com os Domingues, uma verdadeira comoção. Diria, como disse a atriz Elizabeth Taylor dez anos antes na morte de Richard Burton: “Nunca houve um silêncio assim”, que um silêncio pareceu tomar conta de tudo, o fatal silêncio respeitoso das pessoas quando morre um ente querido. Por várias semanas o pouco que se ouvia entre o pessoal da colônia era algo como: “Meu Deus, porque ele morreu?”, “Como pode acontecer isto com um homem bom como ele?!”, “Foi tudo tão rápido!”... — ficamos todos abestalhados e inconformados, e sem repostas convincentes para nossas próprias perguntas!

Estranhamente, não me lembro de choros entre as pessoas de sua família, mas ocorreram, com certeza. Quanto ao Nelsinho — o “caçula” da família —, ele ainda não tinha a dimensão exata do que havia acontecido e, por isso mesmo, era incapaz de avaliar a enorme perda que a família acabava de sofrer. Por outro lado, de certo modo, todos estivam como que “preparados” — pelo menos os adultos —, já que há tempos ele vinha sofrendo desse mal, e todos sabiam da luta que vinha travando em seus últimos dias. 

Também não me recordo do seu velório ou enterro, e, hoje, acho que é melhor assim, que, desse modo, sua imagem continua viva e intocada em mim. E, puxando pela imaginação, vejo-o na minha frente agora, ouço a sua voz, e ele me diz: “Oi, Lito! Bom dia, menino!”.


O tal de câncer

Como profissional de sua área, sozinho, o doutor Paulo podia fazer tudo para tratar de um ferimento nosso qualquer em questão de minutos, mas nós todos juntos, reunidos e “solidários no câncer”, e com todas as nossas forças, o que poderíamos fazer contra um mal renitente e sem cura que ameaçava roubá-lo de nosso convívio?

Aliás, com sua morte, era a primeira vez que eu ouvia falar na terrível doença que era o câncer, e creio que foi a primeira vez que se falou ali entre as crianças o nome desta que é uma das mais terríveis doenças humanas. Os comentários que ouvi de meus pais após sua morte eram a de que ele, farmacêutico e guerreiro que era, para se livrar da doença havia também tentado se automedicar com remédios de sua própria farmácia. Creio que, naquele tempo, era muito difícil uma pessoa fazer isso — se hoje, mesmo para um médico, ainda é algo muito complexo lidar com alopáticos, já que envolve muitos e minuciosos procedimentos, imagine-se há mais de trinta anos atrás!

O Paulinho e eu, em nossa Primeira Comunhão, em 1971.
No final dessa tarde, lembro-me do Paulinho quando, triste, foi em casa a convite de minha mãe tomar uma sopa minestrone — aquela de feijão —, aliás, uma sopa que eu vim a conhecer nesse dia, mas — birras de criança — não tive coragem de prová-la. Ele se sentou silencioso à mesa, jantou, agradeceu e foi embora sem nada dizer. Partiu com sua tristeza e foi a última vez que ele entrou em nossa casa.

Por meses ainda, ficou a sensação de que o Seu Paulo estava por ali, mas invisível, e o que eu não daria para que, a qualquer momento, ele se materializasse ali diante de meus olhos, naquela rua em que sempre nos encontramos  o que eu não faria para que ele novamente me chamasse pelo apelido carinhoso que me dera e, assim, reatar nossas amenas conversas, nossos papos naqueles dias calmos em que o seu mal ainda não o afligia.

Quando ia bater pernas atrás de sua casa, sempre passava pelo canto de muro e olhava para o lado sudoeste me lembrava dele e do Caminho de São Tiago que, juntos, vimos no horizonte sudoeste um certo dia. Pensava lá com meus botões, que ele poderia ter tomado uma outra nuvem branca imensa como aquela, e, através dela, partiu para o além... O que eu sei dizer é que, depois de sua morte, jamais vi outra nuvem igual aquela  com sua partida e a posterior mudança da família para a cidade, era findo um ciclo muito feliz de nossa infância.


Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua

Depois de um carnaval feliz passado nos salões da Associação Atlética Ararense, o que se deu entre os dias 2 e 6 de março, a morte do Seu Paulo acabou com o ânimo de todos. Nossas fantasias, as máscaras do Batman, do Zorro e de palhaços, as pistolas d’água, martelos de sanfona e apitos, as serpentinas e confetes, tudo, tudo ficara esquecido para sempre num canto qualquer de nosso quartinho, com o breve destino do lixo.

Coincidentemente, nenhuma música nova e essencialmente carnavalesca fez grande sucesso neste ano. Caetano veio com “Um frevo novo”, que não fez o mesmo sucesso do outro frevo seu lançado em fevereiro do ano anterior, o belíssimo “Chuva, suor e cerveja”. Já a cantora Gal Costa veio com “Estamos aí” e não aconteceu, mas o que grudou mesmo na cabeça da galera foram outras duas canções: o cômico samba “Ninguém tasca”, de um incógnito Marinho da Muda, e a marcha-rancho do grande Sérgio Sampaio, a belíssima (e melancólica) “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua” (ouça abaixo)


Após o estrondoso sucesso de “Preta Pretinha” dos Novos Baianos, a partir de dezembro de 1972, o fevereiro seguinte foi dominado por esta canção do Sampaio, e ela, de certo modo, eclipsaria todas as outras velhas canções carnavalescas que ainda faziam sucesso, e vale dizer que ela não era mais uma música de carnaval. Porém, música de refrão pegajoso que era, inda que tristonha, todo o Brasil a cantava como se fosse, e o reinado do Momo a abraçou sem cerimônias. Tanto o é que ela foi incluída num disco carnavalesco produzido pelo Nelson Motta (o último que ele fez) em que só medalhões da MPB participavam, dentre eles o novato Raul Seixas, disco este que, segundo Motta, foi “ignorado na imprensa, nas rádios, nas ruas e nos bailes e resultou em completo fracasso”. Curiosamente, o jornalista Aramis Millarch, num artigo seu publicado em 4 de março de 1973, perguntava:

Vânia Domingues (à esquerda), amigos não identificados, Nilza
Coutinho Pereira e Deise Domingues. Provavelmente em 1972.

“Mesmo não querendo, uma pergunta é inevitável: e as músicas do Carnaval deste ano? Desafio alguém a cantar, ao menos uma estrofe, de três composições feitas especialmente para este Carnaval? O que se ouve são os maiores sucessos do passado e dois ou três sambas que apareceram no meio-do-ano e, graças a uma maior divulgação, obtiveram relacionamento com o público mais jovem, sendo lembradas agora. É o caso de ‘Partido Alto’ que Chico Buarque de Hollanda criou para a trilha sonora do filme’..., ‘Quando o Carnaval Chegar’ e da qual o MPB-4 vendeu quase 100 mil cópias; ‘Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua’, com a qual Sérgio Sampaio disputou a parte nacional do Festival Internacional da Canção ou ‘Ninguém Tasca’ (O Gavião).”

Neste mesmo mês, explodia nas rádios o alegre samba “Do lado direito da rua direita”, o grande sucesso dos Originais do Samba (35 mil discos vendidos), que, ao contrário de “Ninguém tasca”, estranhamente não foi aproveitada como música carnavalesca. Tampouco se aproveitou outro também grande sucesso da época, “Fio Maravilha”, que havia feito sucesso com a cantora Maria Alcina ao vencer o citado VII Festival Internacional da Canção, em setembro do ano anterior.

Como se vê, como não se bastasse a morte do Seu Paulo, 1973 foi de um carnaval bem triste e enfadonho, musicalmente falando. Se o carnaval foi ruim, as músicas românticas estrangeiras foram um arraso. Na virada março-abril, uma belíssima canção se fazia ouvir nas rádios:

— Olha que música nova linda no rádio agora, Lito! Ouve que voz linda esse cantor tem!

— Linda mesmo, Seu Paulo! Linda!...

Ao final da canção, o locutor disse:

— Você acabou de ouvir “Me and Mrs. Jones” com o cantor Biiiiiilly Paul!



Geração Pop

Revista Geração Pop Nº 5, março de 1973.
A cultura hippie ia a todo vapor no Brasil neste ano, o que podia ser conferido na principal revista jovem do momento, a então Geração Pop, que, desde seu lançamento, em novembro de 1972, vinha recheada de música, moda, esporte e psicodelia. 

Em sua quinta edição, lançada neste mês de março, nesta época em que muitos de nossos brinquedos eram artesanais e feitos de materiais reciclados, havia uma matéria sobre decoração realizada a partir da reciclagem de móveis usados e fora de uso — uma das reportagens dizia o seguinte: “o móvel da televisão da vovó vira armário para guardar livros ou qualquer outra transa: só que tem de ser muito colorido”... 

Vale lembrar que foi justamente neste trimestre que chegaram ao Brasil as primeiras camisas estampadas e com anúncios publicitários, e a moda pop seria a que mais se beneficiaria da novidade com as estampas feitas em silk screem.


“— Cara, eu pirei numa camiseta com a estampa do “Dark side of the moon” do Pink Floyd que eu vi lá na cidade!”

“— Eu pulei carnaval com uma dos Secos & Molhados que é um barato!”






Nixon, Watergate, Guerra do Vietnã...

Foram dias tumultuosos os do mês de março de 1973, aliás, talvez o mês mais crítico deste ano. Sete dias antes de o Seu Paulo falecer, um estudante de Geologia considerado terrorista, o jovem Alexandre Vannuchi Leme, integrante da Aliança Libertadora Nacional, foi morto num atropelamento em pleno centro de São Paulo quando fugia de agentes de segurança, o que possibilitou a detenção de quatro outros alunos subversivos, todos estudantes da USP.

No plano internacional, justamente na mesma tarde do fatídico dia 29, o último fuzileiro naval dos EUA abandonava o Vietnã do Sul, isto depois de 11 anos de uma guerra terrível que custou a vida de 46 mil soldados norte-americanos. O ibope negativo desta guerra foi tanto, que os grandes artistas da música pop colocaram suas músicas como instrumento de crítica clamando por seu fim. 

Três dias antes, no dia 26, era lançado nos EUA um compacto simples do cantor Elton John que trazia duas canções marcantes e de grande sucesso: “Skyline pigeon” e “Daniel”, que pareciam ser canções românticas (e o Brasil as encarou assim), mas a primeira dizia da liberdade de um pombo, enquanto a segunda falava justamente da Guerra do Vietnã, sobre um jovem que voltara cego de lá. Esse intenso período, entre o final de 1972 e o início do ano seguinte, fui justamente o período onde Elton estava se tornando um superastro. E os grandes astros da música pop nesta época, começaram a fazer shows em grandes estádios, tocando para 60 mil pessoas regularmente. Esses shows tinham se tornado eventos concorridos e grandes espetáculos, e assim, sendo um novo tipo de entretenimento, os fãs não os perdiam por nada neste mundo. No caso de Elton, seus shows eram animadíssimos e ele tinha se tornado um grande show-man. E é aí justamente que entravam seus shows, que eram um verdadeiro espairecimento e alívio contra a negatividade que estava no ar, o período sombrio da trindade Nixon, Watergate e Guerra do Vietnã, assunto de que ninguém mais suportava ouvir falar. 


Três dias antes do lançamento do citado compacto, as TVs do mundo todo anunciavam com grande repercussão o escândalo do caso Watergate envolvendo o presidente Richard Nixon. Considerado “personalidade” típica das telas de televisão dos anos 70, após esta data, o veríamos com frequência nos telejornais — era um saco, todo dia aquela ladainha! Sua saída do governo foi festejada nos EUA, e o resto do mundo acompanhou todo o escândalo “de perto”, através dos jornais televisivos.

"— Que jóça: a gente vai assistir jornal na TV e é só Nixon para lá, Watergate para cá, Guerra do Vietnã pra acolá!"

"— E é ruim isso, Seu Paulo?"

"— Haja saco, Lito: só falam nisso!"


O cantor Tony Orlando, em pleno sucesso em meados de 1973 com “Tie a Yellow Ribbon Round the Ole Oak Tree” (vídeo abaixo), foi citado no “The San Francisco Chronicle”, que disse que ele “explodiu nas redes de TV durante o governo de Gerald Ford”, sendo “um ensolarado antídoto contra o cinismo sombrio pós-Watergate”. Essa música ouvia-se à exaustão nas rádios brasileiras da época, e marcou muito, mas, crianças que éramos, desse antídoto contra Watergate nada provamos, e nem os adultos que este assunto “não apitava nada” para a maioria das pessoas ali num “esquecido” recanto rural do interior paulista... Que as tropas deixassem o Vietnã e o Nixon saísse do governo, excelente, mas o Seu Paulo nos deixar, era inadmissível! Eu próprio tive um antídoto — não, obviamente, contra o tédio da citada trindade —, mas contra as dores do luto por meu amigo, que era a minha querida luneta — presente de Natal que foi o meu maior entretenimento neste período. Quiçá, na ingenuidade destes dias, eu, como cantor Fábio e sua “Stella”, perguntasse à mim mesmo olhando o céu:

"— Seu Paulo, em que estrela você se escondeu?!"




Dona Maísa

O desaparecimento do Seu Paulo parecia trazer, em que pese a alusão, o mesmo sentimento de desencanto da era pós-Watergate, pois a colônia não seria mais a mesma sem a sua pessoa, aquela sensação de vazio imenso que as mortes mais sentidas trazem. 

Coincidentemente, quatro dias antes de seu desenlace, o programa humorístico “Faça humor, não faça guerra” — que vinha sendo exibido desde 30 de junho de 1970 —, sairia do ar. Foi neste programa que o Jô Soares estreou na Globo, e o quadro que eu mais gostava de assistir era o do “Bêbado”, personagem já citado aqui num dos capítulos. A curiosidade deste programa é que, em meio à Guerra Fria e ao conflito do Vietnã, seu nome parodiava o slogan pacifista hippie “Make love, don't make war” (Faça amor, não faça a guerra) , e, como vimos, saiu do ar quatro dias antes que o último soldado deixasse o Vietnã.

Dona Maisa Domingues.
No final da década anterior, as mulheres norte-americanas se manifestavam contra essa maldita guerra e bradavam pela libertação delas próprias, fato que muito influiu na criação do Dia da Mulher, e, coincidentemente, 29 de março era o Dia da Mulher! Dona Maísa, com certeza, estava inconsolável com a morte de seu marido, e, justo nesse dia dedicado às mulheres, talvez não esperasse que isso fosse acontecer isso com ela e sua família. Se a vida não deu ao Seu Paulo a longevidade da esposa, deu-lhe em contrapartida a disposição férrea para o trabalho e a criação da numerosa família, a vontade de vencer e o talento para a profissão que escolhera.

Quanto à ela, bem me recordo, era uma moça muito simpática e elegante, e se esmerava no vestir, não deixando de esconder uma certa ponta de vaidade, e realmente, ela era uma mulher bonita — minha mãe sempre nos dizia isso. 

Nunca me esqueço: dona Maísa — que, pelo jeito, cozinhava muito bem — fazia um bolo de milho tentador — feito naquelas formas redondas cônicas —, que, toda vez, estando por ali, se  eu via um deles em cima da mesa ou sentia-lhe o cheiro, no ato me vinha água à boca, mas, infelizmente, nunca tive o prazer de prová-lo... Bastava um amigo de seus filhos vir visitá-los, e, prontamente, lá estava mais um bolos desses à sua espera... 

À propósito, amigos, este assunto me lembrou algo: não é porque o Paulinho não me ofereceu um pedaço desse bolo tentador naquela tarde calorenta de verão  sim, aquela segunda-feira de 3 de janeiro de 1972 , às 13:35hs, que eu guardei mágoa dele!...


Conversa de comadres

Nossa casa, e a janela de onde minha mãe conversava com a
Dona Maísa Domingues, naqueles velhos tempos.
Quantas vezes, antes de dona Maísa ir para a cidade, eu não a vi em longos bate-papos com minha mãe, cujos assuntos às vezes descambavam no “trabalho” que nós crianças dávamos para sermos criados, e o quanto éramos irrequietos... Nestas horas, pouco antes do almoço, “dona Lourdes” costumava ficar à janela do quarto que dava para o passeio — era na segunda casa onde morávamos.

Walter, Lourdes e Luciana, em 1967,
ano de nossa mudança para a Usina
.
Em frente a essa janela havia um antigo pé de manga manteiga que foi cortado logo depois. 

Era ali, Sol a prumo, que as duas colocavam seus assuntos em dia — dona Maísa, em pé no passeio, sombrinha aberta apoiada nos ombros; dona Lourdes, debruçada no alto da janela, à sombra da copa da velha mangueira. 

E a conversa rolava solta enquanto o ônibus não aparecia. Eu, por minha vez, despreocupado e marinhando pelos galhos da mangueira, ficava a ouvir as duas “comadres” na entabulada conversa:

— Olha esse aí, dona Maísa: vive em cima das árvores e não para um minuto! Parece um sagui!

— Deixa ele, dona Lourdes, criança é assim mesmo!


Não existe nada mais antigo...

Todos nós meninos estávamos tristes, e nem mesmo assistir a novela “Carinhoso”, que passava às 17h na Rede Globo, conseguiu amenizar o reinante clima de tristeza desta noite da partida de seu Paulo. 

No mês seguinte, porém, nossos finais de tarde se tornariam mais animados, pois a mesma rede de TV nos brindaria com um rico repertório de desenhos animados com o programa “Globo Cor Especial”, o que se deu no dia 2 de abril, seis dias antes da morte do pintor Pablo Picasso. O programa tinha esse nome em alusão à chegada da TV à cores, o que havia ocorrido em 24 de janeiro com a estreia da famosa novela “Bem-amado”, que passava às dez da noite. Porém, levaríamos ainda alguns anos para ter nossa. Assistir ao “Globo Cor Especial” numa TV à cores era demais, e como esquecer sua música-tema, a animada “Cinto de Inutilidades”, composta pelo Nelson Motta e Marcos Valle, que dizia:

“Não existe nada mais antigo
Do que cowboy que dá cem tiros de uma vez
A avó da gente deve ter saudades
Do zing-pow, do cinto de inutilidades...”




E esta música da dupla é inesquecível — tinha bem o clima da época —, tanto que sei sua letra na íntegra até hoje. Assim, passamos a assistir “Os Flintstones”, “Os Jetsons”, “Jornada nas Estrelas — Série Animada”, “A Fábrica Adoidada do Mickey Mouse”, “Zé Colmeia”, “Manda-Chuva”, “Jackson 5” e “Tutubarão”. Além dos desenhos, éramos brindados também com as ótimas séries nesse mesmo programa, como “Abbott e Costello”, “Dick Van Dyke”, “Mary Tyler Moore” e “Família Do-Ré-Mi”. Em março de 1974, o programa foi transferido para o horário das 12h às 13h. Lembro-me que mal meu pai acabava de assistir seu programa de esportes, corríamos para assistir os desenhos antes de ir para a escola.

Desde janeiro o neologismo “apenasmente” estava na moda, na boca de quase todo mundo, sendo utilizado por artistas, músicos e literatos em geral; mas que termo é este, perguntará o curioso leitor? Pois bem: ele foi cunhado pelo prefeito de Sucupira, o Odorico Paraguassú, sim o cômico personagem da novela Bem Amado, o mesmo que pretendia inaugurar o cemitério da cidade, mas não tinha um defunto para tal!...


Um período de intensa atividade musical

Coincidentemente, na mesma noite da morte do Seu Paulo, o maior astro do Funk — ou, “O Rei do Soul” — o negro norte-americano James Brown, faria seu segundo em último show no Brasil, naqueles que foram os primeiros shows de musica pop do ano. Não só não me recordo de as TVs anunciando estes shows, e talvez o motivo e que ainda não tínhamos sido fisgados pela música pop, o que se daria em breve. Não mesmo curioso, o cantor Cat Stevens esteve no Rio de Janeiro no mês anterior, mas preferiu manter-se incógnito...

Quanto aos outros famosos representantes do gênero, digo, os Jackson 5, em breve explodiria nas rádios a bela canção “Music and Me” na voz do finado Michael, creio que o primeiro grande sucesso do cantor no Brasil, canção que, por sinal, era um das que compunham a ótima trilha sonora da citada novela, que nesta época era exibida às 7 horas da noite.

Período intenso da música, este: nas rádios, era o “rancoroso” Gonzaguinha que cantava as agruras brasileiras da ditadura em sua polêmica “Comportamento Geral”, e que, por isso mesmo, acabou sendo censurada. Aliás, essa época foi o período mais negro do regime militar, então sob as rédeas do temível Emílio Garrastazu Médici — que parecia gostar mais de futebol do que do próprio povo brasileiro — o mesmo militar impertinente que convidava o povo brasileiro a deixar o País caso não estivesse contente com o regime. 

Por outro lado, eram os bons tempos do jornal O Pasquim, em que o ratinho Sig combatia o “monstro SIST” de que falava o Raul Seixas. Este, prestes a lançar seu primeiro sucesso em compacto, em abril, o disquinho com a célebre “Ouro de Tolo” e conquistar definitivamente, os jovens de todo o Brasil — e em questão de meses nasceria aquele que viria a ser o maior rocker do País de todos os tempos! E eram bons tempos estes, apesar dos “maus tempos”...


O célebre compacto do Stevie Wonder, com os sucessos
"You are sunshine of my live" e "Superstition, de 1973.
Voltamos à aulas em fevereiro, e nas rádios explodiam duas belíssimas canções do grande Stevie Wonder, que foram lançadas num compacto pela gravadora Tapecar: uma, a balada romântica "You are the sunshine of my life", que arrasou corações, e a outra, uma canção suingada que foi um verdadeiro desbunde: “Superstition”, aliás, uma das canções que nos levou a começar a curtir rock, uma vez que meses depois ganharíamos este e outros compactos de uma amiga da família, a Deise Dadona, que foram os nosso primeiros discos. 

Neste mesmo mês, num depoimento ao polêmico radialista Walter “Pica-pau” Silva, o diretor de uma certa gravadora disse que não tinha preferência em gravar musicas nacionais ou estrangeiras, e o interesse era gravar músicas que vendiam, o que contradizia o lema que vinha impresso nos discos da época, o de que “Música é Cultura”... O Pica-pau ironizou que o correto seria “Música é Comércio”... Mas nada disso abalou a revolução insuspeita que estava em processo, uma revolução que mantém suas influências e assombra até hoje! Nem mesmo o fato de o País perder um dos seus maiores vultos de sua história, o compositor e multiinstrumentista Alfredo da Rocha Viana Jr., o Pixinguinha, influenciou no que estava para acontecer.




No mês seguinte, estava em processo a elaboração daquilo que, junto do Raul Seixas, viria a ser o maior fenômeno da música pop-rock brasileira: os Secos & Molhados ensaiavam suas primeiras músicas para compor seu primeiro disco, que seria lançado com estrondoso sucesso em agosto seguinte, vendendo 300 mil cópias em três meses e 800 mil até o final do ano. O disco foi uma verdadeira loucura entre a meninada. Era muito para nós: Raul Seixas e depois Secos & Molhados! Se 1973, musicalmente falando, foi ruim para o carnaval, para os outros estilos foi um desbunde, e o seguinte seria melhor ainda para o rock nacional. Mas por que nós, crianças de todo o Brasil (eu, com 12 anos), enlouquecemos com os Secos & Molhados? O João Ricardo, na época, arriscou uma opinião:

“‘A música, as cores, o mundo mágico dos sacis e das fadas atraem as crianças’, diz João Ricardo. ‘Mas é difícil determinar porque nós atraímos as crianças como é difícil determinar as razões do próprio sucesso. A gente não faz espetáculos para crianças porque elas não podem ver os shows que são impróprios até 14 anos. Mas elas nós curtem pela TV e pelo disco.’”

Considerado um ano de grandes e consagradas estreias, 1973 nos brindou com artistas inovadores que se eternizaram: Raul Seixas, com “Krig-ha, bandolo!”; Secos & Molhados Luiz Melodia, com “Pérola Negra”; Fagner, com “Manera, Frufu, manera”; Tom Zé, com o polêmico “Todos os olhos”; Simone; Clara Nunes; Paulinho da Viola, com “Nervos de Aço”; o já citado Sérgio Sampaio, com “Eu quero botar meu bloco na rua”; Luiz Gonzaga Jr.; Hermeto Paschoal, com "A música livre de Hermeto Paschoal"; João Bosco, Francis Hime, e Walter Franco, com “Ou não”, dentre outros.

Célio Albuquerque, em seu livro sobre este assunto, “1973 — O Ano que Reinventou a MPB”, escreveu com propriedade:

“O cenário era uma riqueza só, mas foi em 1973 que a música brasileira, sob um recorte temporal, se solta do passado, sem desgrudar-se dele, passeia pelo presente e salta para o futuro”.

Como se vê, amigos, um fenômeno inexplicável aconteceu neste ano, e 1973 realmente foi um desbunde, isto para não falar nos lançamentos estrangeiros!...


Um novo e polêmico cometa

Ainda continuando essa “viagem” paralela à morte do meu grande amigo, gostaria de falar rapidamente de outros fatos marcantes neste mês de março, que foi a descoberta do polêmico cometa Kohoutek, que foi observado pela primeira vez na noite do segundo dia de carnaval no Brasil, ou seja, o sábado de 7 de março, pelo astrônomo tcheco Lubos Kohoutek. Ele tornou-se visível a olho nu na véspera do Natal deste ano, durante um eclipse anular do Sol, mas sua aparição noturna foi um fiasco, já que não cumpriu o grande show previsto pelos astrônomos. Eu e minha mãe tentamos, sem sucesso, ver esse cometa, fato o que comento em outro capítulo.


O cometa Kohoutek, oito meses após a morte do seu Paulo, novembro de 1973.

Um dia, quando observávamos com a luneta as meninas da colônia de cima, o Celso, já sabendo do cometa, me perguntou:

— Pelo jeito, quando ele aparecer, Wenilton, você vai ser o primeiro a ver o cometa com sua luneta!

— Ih, Celso, li num livro esses dias, que observar um cometa pelo telescópio é o mesmo que admirar uma linda mulher com uma lupa!...

— Ué, mas porquê, Wenilton?

— Geralmente, por ter cauda, os cometas são muito grandes para ser ver com telescópios e lunetas. A gente vê só parte deles, entendeu?

— Ãnnn... faz sentido... 

Recordo-me que, em alguma dia entra 10 de fevereiro e 8 de março — e eu já na posse de minha luneta, e também já lendo os primeiros livros de Astronomia —, consegui avistar pela primeira vez o planeta Mercúrio, que no crepúsculo era visto logo acima do horizonte noroeste. No entanto, infelizmente, ela não estava comigo neste momento, e, estranhamente, nem me senti atentado a ir buscá-la em casa para vê-lo melhor.

Foi numa de suas três elongações máximas vespertinas, que normalmente ocorrem por ano, mas é um planeta muito pequeno, de órbita interna e próxima do Sol, de modo que e difícil de se ver por estar sempre mergulhado nas luzes do crepúsculo matutino ou vespertino. Estava eu justamente no “canto de muro”, próximo ao pé de goiaba que ali existia, nos fundos da casa do seu Paulo, que era a primeira casa da colônia, e o lugar mais desimpedido do lugar para se ver o céu desde o lado sul até o noroeste. Logo após o Sol se pôr, lá estava ele em meio à barra avermelhada do ocaso, logo acima do horizonte. Nestas condições, vim a saber que sua irradiação é dez vezes menor do que se fosse visto alto no céu. 

Era uma luz brilhante amarelo alaranjada, mas sem as cintilações típicas das estrelas. Naquela época, com as poucas informações que ainda tinha, era difícil para eu tentar localizá-lo no céu, já que ele é um “planeta interior” e tem sua órbita dentro da órbita da Terra, o que o faz se afastar muito pouco do Sol; aliás, é o planeta mais próximo dele. Encontrei-o por acaso, e, repito, vi-o por pouco tempo — acho que já era noitinha —, quando foi descendo e se afundando na vermelhidão da barra poeirenta do poente até sumir. 

De acordo com dados pesquisados no mapa estelar Stellarium, penso que o vi no dia 16 de fevereiro de 1973, entre às 20:40 e 20:50hs, estando ele imerso na barra alaranjada no crepúsculo à uns 7 graus acima do horizonte, brilhando na magnitude de -0,96. À sua esquerda, começando a despontar no céu, estava a estrela Fomalhaut, que eu ainda não conhecia, mas que meses depois, na noite de 2 de junho eu iria reencontrar numa história muito especial, de que trato em outro capítulo.


O planeta Mercúrio e a estrela Fomalhaut, no crepúsculo de 16 de fevereiro de 1973.

O "canto de muro", onde se vê o pé de goiabeira que havia ali.
Nestes tempos, as luzes residuais da cidade ainda não atrapalhavam a visão desarmada das estrelas menores, e podia-se até mesmo ver a discreta nebulosa Saco de Carvão em meio ao Cruzeiro. O Monteiro Lobato, no saboroso Viagem ao Céu, me dizia que no “dia 15 de maio de cada ano essa constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças”. Não é bem assim: aqui no Estado de São Paulo a constelação fica alta sim, mas não no Zenite; no máximo, um pouco acima da metade do céu do lado sul. Em janeiro, estando tudo muito escuro, podia-se se ver logo acima do barracão de açúcar, duas manchas enevoadas, como que duas nuvens desgarradas da Via Láctea que pairavam abaixo dos pés do Cruzeiro, a duas discretas Nuvens de Magalhães.

Wenilton e sua luneta, no "canto de muro", em 1974.
Era exatamente no “canto de muro“, o ponto onde se podia ver o Cruzeiro do Sul mais abertamente. Lembro-me que nas noites de final de agosto, observando-o ele se pôr, por volta das 9 horas, estranha era a sensação que ele me passava quando se inclinava sobre o distante horizonte sudoeste para mergulhar nas imensidões daquela região tão desabitada da cidade, lá para os lados do antigo bairro Furnas. Até hoje tenho esta indefinível sensação, que sempre sinto toda vez que olho à noite para estes lados do céu. Escrevendo tudo isto, cheio de nostalgia, como queria voltar ali nestes tempos despreocupados, nestas condições tão favoráveis para a observação do céu e os sentimentos incríveis que elas proporcionavam!...

Feliz e coincidentemente, foi exatamente neste lugar que foi feita a foto mais importante de minha vida, pelas mãos do amigo Marcos Coutinho Pereira, que, no final do dezembro de 1974, me fotografou ali, agachado num momento de descontração com minha luneta — eu havia acabado de ganhar de presente de Natal um tripé para ela. Tenho esta foto como um tesouro da minha juventude.


A erradicação do Jardim do Éden

Nunca mais vou me esquecer desse dia, não só pela visão do planeta Mercúrio, mas também porque, nesta época, para nossa tristeza, o cerrado que havia atrás da colônia — lugar onde frequentemente brincávamos —, havia sido desmatado há pouco. Esse desmatamento, à princípio, só teve um ponto positivo para mim: durante o dia, naquele mundão de terra vermelha que surgiu com a retirada das árvores, tratores e caminhões trabalhavam num ir e vir constante, e hoje sei que só foi possível ver Mercúrio de onde estava porque houve esse desmate, já que com as árvores ainda em pé não ia ser possível vê-lo acima do horizonte. Nunca me esqueci do cheiro peculiar da terra fresca revolvida pelos tratores que ali erguiam as primeiras leiras de contenção de vinhoto. Como as árvores derrubadas eram espécimes do cerrado — portanto, de pequeno e médio porte —, creio que não tiveram outra serventia a não ser queimar como lenha nos fogões das casas da colônia.

Nestes dias, aprendi um pouco sobre a transitoriedade das coisas, da impermanência das pessoas que estimamos e a constante mutação de tudo o que se move e vive: perdia um grande amigo adulto ao mesmo tempo em que também perdia a primeira mata em que brinquei em minha vida. Terrível, a consciência aguda da finitude de tudo o que nos é mais caro e sagrado.

Seu Paulo, seu Paulo, seu Paulo... nada pudemos fazer! Sua família tirada do prumo, as perspectivas de continuidade de vida ali comprometidas — não restou aos Domingues outra alternativa a não se tentar a vida na cidade. Para a nossa tristeza, assim se deu, e em questão de semanas eles partiram.

Um ano depois, no aniversário da morte do seu Paulo, a sonda norte-americana Mariner 10 faria a primeira visita a este planeta, fotografando-o num bem sucedido “voo rasante”.


Os Mistérios do Firmamento

E, antes que eu me esqueça, e novamente falando de Astronomia, gostaria de frisar que acho surpreendente o fato de logo no dia seguinte à morte do Seu Paulo eu ter retirado na Biblioteca Municipal pela primeira vez o livro “Os Mistérios do Firmamento” (1952), do escritor Domingos Marchetti, que veio a se tornar um dos livros mais importantes de minha vida, um dos livros que me abriram as portas para o céu noturno estrelado. Assim, de certo modo, a tristeza da perda do meu grande amigo foi minimizada pela leitura deste grande livro naquele distante final de semana de início de Outono. Este, foi um dos livros que me prenderam por horas à fio em meu quarto enquanto o resto dos meninos se divertiam lá fora...
Celso, no pescoço do Gustão, Binão e Paulo Caetano
em tarde de natação na comporta do "tanque do meio".

Datam destes dias, mal terminado o curso primário, as minhas constantes idas à biblioteca para retirar livros com esses assuntos que me tanto me atraíam. Também nestes dias tiveram início as minhas vigílias astronômicas, quando mal anoitecia e eu, em minha solitude, ia lá para o telhado do galinheiro e passava o início da noite observando estrelas com minha luneta.

Estranhamente, com o desaparecimento do seu Paulo, desde aquele primeiro encontro nunca mais voltei a ver Mercúrio nos horizontes da Usina — não sei dizer o porquê, mas jamais tive interesse em procurá-lo novamente em todas as outras vigílias astronômicas que fiz nos anos seguintes. Era algo inconsciente, mas, pensando bem, se eu não podia mais ver o meu grande amigo Seu Paulo e desfrutar de nossa agradável amizade, por que rever aquele planeta esquivo que eu encontrara sem querer no distante 1972 nos fundos da casa do meu próprio amigo, e que, de certo modo, me remetia à sua pessoa?

Gostaria muito de saber qual foi a última conversa que tivemos, do que falamos, do que rimos, do que lamentamos, mas, obviamente, é coisa impossível, que tudo se esvaneceu nas brumas do tempo. Só ficou uma certeza: de dores e lamentos, ele nunca me falou de seu grave problema de saúde; e se não falara, com certeza, o fez sabiamente, que era para não encher de tristeza o seu pequeno amigo.

Seu Paulo, Seu Paulo... um dos muitos mortos que perduram há tanto dentro em mim, fixo como um quadro pintado dentro do peito!... Seu Paulo, Seu Paulo... em que lugar, longe da Terra azul, se encontra você, meu velho amigo?!...

No abril seguinte a família Domingues se despedia da Usina. Findava o mês mais lindo e calmo do ano, mas findava deixando as rádios repletas de músicas lindas e eternas.

Enfim, empresto aqui uma frase de lamento dita por Cuthbert Collingwood, suboficial da caravela Euryalus, participante da histórica batalha de Trafalgar, em 1805, sobre o lendário capitão britânico Horatio Nelson: "Ele partiu, e eu irei lamentar isso até o fim de meus dias." 
— Linda esta música nova tocando aí no rádio, hein, Nilza! Quem é o cantor?

— A música é “Alone again”, e o cantor é um tal de Gilbert O'Sullivan.

— Séria candidata à uma das melhores do ano, hein, Nilza!

— Prefiro "Killing me sofltly", com a Roberta Flack, Wenilton.

— Esta eu não me lembro, mas a primeira é linda demais... e triste... apenasmente triste, mas não tão triste quando a “Without you” do Harri Nilson, né, Nilza?...

— Sim, sim...

“Well I can´t forget this evening
Or your face as you were leaving
But I guess that’s just the way
The story goes.”


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* Este capítulo faz parte do  Volume 5 - "Watcher of the skies ― dezembro de 1972 a março de 1973". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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