quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

DONA LAZINHA, A BENZEDEIRA DA FAZENDA PALMEIRAS


Não olhará para a posteridade,
para os descendentes, quem nunca
olhar para os antepassados.”
(Edmund Burke, político
 irlandês, 1729-1797)

"Toda vida que merece ser
vivida merece ser biografada."
(Samuel Johnson.
Escritor, 1709-1784)

 “Para cobreiro, é remédio infalível dar-se 
três machadadas no portal da cozinha (...).” 
(Memórias. Brito Broca. 1968)


A frente de nossa antiga casa na Usina (na época, 1971,
o novo escritório), notando-se atrás dos jovens, à direita, 
o pé de manacá de que trato nesta história. Os jovens:
Martha Ballotin, Vânia Domingues, Magda Ballotin e Coelho.
O agradável exercício de contar histórias de episódios passados e relembrar as pessoas de outrora que já não mais participam de nosso convívio — e muitas não sabemos o paradeiro, e até mesmo se estão vivas! O lamentar as que não mais existem, mas que nunca esquecemos, que vital importância tiveram para nós

Hoje, dentre as pessoas que já deixaram nosso plano, quero falar de uma que, por suas qualidades e importância, jamais esqueci — e não haveria como! —, uma vez que foi ela uma dessas muitas benzedeiras que ainda existem pelo interior do país, uma mulher humilde e despojada, mas que curava sem ônus algum, “medicando” apenas levada pelas práticas da filantropia, da caridade e da compaixão.

Tanto a Antropologia quanto a Sociologia provaram que o fenômeno de benzedeiras é explicado pelo estreito laço e crença que existe entre o paciente e o curador, fato que é desencadeado por atividades cerebrais que favorecem a auto defesa no organismo. Independente dessa comprovação, sempre acreditei nesses “médicos populares”: as rezadeiras e benzedeiras, uma vez que, sem a intercessão de um deles em meus primeiros anos (desenganado que estava), eu não estaria aqui hoje, história esta que narro com detalhes em outro capítulo.

Assim, houve na minha infância três benzedores aos quais foi confiada a cura de meus males: o primeiro, o senhor José Giacomini, que me benzeu daquilo à que se denominava “bucho-virado”, e, assim, felizmente, me salvou da morte em minha primeira infância; o segundo, a minha querida avó Ana Rocha, que benzia à todos da família em inúmeros males, e, por fim, uma benzedeira da fazenda Palmeiras, a mesma que citei anteriormente, uma típica curandeira tradicional da roça, e que comentarei a seguir. Porém, antes de falar sobre esta notável mulher, preciso dar continuidade à história com outros dados importantes que me levarão até à sua pessoa.


 A borboleta-do-manacá

A borboleta-do-manacá (Methona themisto) e sua lagarta
Em frente de cada da colônia onde morávamos havia um pequeno jardim. No nosso — muito modesto por sinal —, havia quatro espécies de plantas ornamentais que herdamos do antigo morador: um pé de guarã-guarã (Tecoma stans), uma roseira, um velho cipreste, e, por fim, um manacá, que é o que nos interessa na presente história.

Pupa da borboleta-do-manacá
Nessa bela planta ornamental podia ser encontrada uma espécie de lagarta de borboleta que não era menos bela. Desde a primeira vez em que pus meus olhos nela, logo que nos mudamos para a Usina, coisa de criança, senti-me imediatamente atraído. Chamava-me a atenção, porque era uma pequena lagarta, de cor preta listrada de laranja — combinação de cores contrastantes que, aliás, sempre me atraiu, e que remetia à placas de trânsito que havia pelos caminhos naquela época. É justamente esta lagarta que dá origem à popular “borboleta-do-manacá”, inseto que a ciência injuria que o enfadonho nome em latim: Methona themisto. Este arbusto, conhecido como “manacá-de-jardim”, por sua vez é conhecido por um nome científico que chega soar bonito: Brunfelsia uniflora, possuindo cerca de três metros de altura, planta que, aliás, outrora, fora muito comum nos jardins de todos os nossos avós.

Os três estágios de cores da flor do manacá.
Em sua vestimenta, essa borboleta é mais atrativa ainda que a lagarta e conhecida devido às suas cores e também ao voo frágil e lento, sendo encontrada na maioria dos jardins e matas, porém, apesar da aparente fragilidades, é um inseto relativamente tolerante aos distúrbios do habitat provocados pelos avanços da implacável urbanização.

Outro pormenor que também me chamava a atenção neste “consórcio” planta-inseto era o fato de o manacá possuir flores de três cores diferentes, que quando desabrocham, primeiramente são roxas; no segundo passo alteram para o lilás, para no estágio final tornarem-se brancas, destacando-se o curioso fato de que flores nos três estágios de cores são encontradas juntamente na mesma planta, o que lhe dá um atrativo bastante especial.



“Pegou cobreiro da largata!”

Lagartas da borboleta-do-manacá (Methona themisto)
Desnecessário dizer que, pelos atrativos ornamentais dessa lagarta, elas eram objetos constantes de nossas inocentes brincadeiras. Ocorre que, estranhamente, dias depois, surgiam manchas e coceiras na região do pulso, e o local ficava marcado por trilhas avermelhadas lembrando uma estreita pulseira, o que também, curiosamente, ocorria às vezes no entorno da canela, mas não estou muito certo disto. 

Mas será mesmo que essa lagarta era a responsável pelo tal de "cobreiro", como nos fizeram acreditar? Pois era o que diziam os adultos: “Pegou cobreiro da largata!”... Atentar para o “largata”, pois era assim que as pessoas ra roça falavam naqueles tempos, do mesmo modo como falam “largato” (lagarto), “carlota” (calota) etc., e outras não menos exdrúxulas como "cardaço" (cadarço), "casa germinada" (geminada) e a moderna “betorneira” (betoneira)...

Na verdade, acredita o povo que o mal cobreiro é provocado por diversos animais além da “largata”, como, p. ex.: cobra (de onde veio o nome), aranha, lagartixa e o sapo. Se diz, por exemplo, que, quando uma cobra passa em cima das roupas estendidas no quaradouro de um quintal, podem ser contaminadas com o cobreiro. Por isso, não se deve vestir as roupas lavadas sem passá-las a ferro quente, que, assim, pelo alto calor mataria o veneno... Em Minas Gerais, crê-se que uma pessoa segura uma lagartixa com a mão, pega cobreiro, mas o antigos em geral acreditavam que se contraía isso no contato com cobras, coisa que, na verdade, ninguém se atreve a fazer... Do mesmo modo, muito provavelmente influenciado pela crendice dos pais e pessoas mais velhas, nós crianças acreditávamos que as lagartas da borboleta é que nos passavam o cobreiro.

Nega 
  
Ângela Salmazzo, à esquerda
Por uma feliz coincidência, tínhamos uma empregada nessa época, a Ângela Salmazzo — aliás, nossa primeira empregada ali —, que sabia como tratar desse mal. Na verdade, ela conhecia uma pessoa “especialista” nisto: a popular dona lazinha. Então ao notar que nosso problema era o então comuníssimo cobreiro, não pensou duas vezes em recomendar à nossa mãe uma visita à citada benzedeira. Como na época era ela quem cuidava de nós, crianças pequenas que éramos, foi ela mesma quem nos levou à esta velha senhora, que residia numa das casas da colônia da fazenda Palmeiras.

A Ângela tinha um certo parentesco conosco, pois, se não me engano, uma tia-avó sua fora casada com um irmão de nosso avó paterno. Foi uma das primeiras famílias que visitamos tão logo mudamos para ali. Morava ela com família numa das casas da “colônia de cima”. Ainda me lembro desse dia quando fomos visitá-los, e vi um avião de lata pendurado no beiral da residência, e esse avião me encheu de cobiça, louco que eu era por estes brinquedos. Lembro-me também que sua casa parecia tão grande, o quintal imenso, cheios de árvores, uma horta, mas, hoje, quando passo por ali e revejo aquilo tudo, Cristo, como era pequeno! O fato faz-me rir hoje toda vez que, não sei porquê, ouço a singela canção “Álbum de família” do Renato Teixeira, onde ele canta:


“Nove vezes nove
Quase que me bota louco,
E hoje o resultado
Deus no céu, vale tão pouco!”


Engraçado era o apelido que à Ângela tinha à época — para o nosso estranhamento, chamavam-na de Nega, lembrando que era loira e de pele muito clara, meio germânica. De todo modo, não era um apelido pejorativo, mas sim um evidente tratamento carinhoso dado por sua família.

Vale lembrar que a Ângela, ao vir trabalhar com nossa família, substituiu a Neide, uma prima nossa que cuidava de nós quando ainda morávamos na cidade. Peço vênia aqui para lembrar que os pesquisadores do infância humana afirmam que no chamado Período da Latência — que vai dos 6 aos 10 anos — a criança não precisa de vida social, e as únicas pessoas em que se espelham são os professores — que geralmente passam a ser paixão da criança, assim como os heróis das ficções com os quais se identificam profundamente. Mas acontece que a Nega não era nem professora nem heroína, o que não a impediu de, mais que uma empregada, ser uma espécie de guardiã nossa, e, com certeza, muita coisa nos ensinou, nos prevenindo, como se vê, dos males cotidianos que havia naquele rústico lugar que se afigura tão cheio de perigoso à gente da cidade.

Lembro-me ainda, quando, certa vez, uma enorme cobra apareceu no jardim da casa da família Lima, e nós crianças, que brincávamos ali perto, amedrontados, entramos em desespero. Quando alguém gritou que havia visto uma “baita” cobra passando ao lado da moita de hortênsias que ali havia — e depois começou uma gritaria só! —, a Nega foi a primeira a nos acudir, antes mesmo que os adultos se armassem de paus e pedras para dar cabo da invasora. 

À esta altura, o leitor deve estar aí pensando com seus botões, que foi esta cobra que nos causou cobreiro. Pois bem: não foi, já que jamais cobra alguma tocara nossas vestes, e, para que isso ocorresse (fazendo jus à crendice), seria necessário que elas tivessem sido contaminadas por uma, já que todos nós contraímos esse mal. 


Dona Lazinha

Dona Lazinha
Enfim, a benzedeira em questão era a senhora Lazara do Rosário Sebastião (1917-1991), conhecida popularmente como “Dona Lazinha”, uma notável benzedeira de crianças, da qual se dizia que não havia o que ela não curasse. Em seus trabalhos, não abria mão de um terço enorme e um indefectível e velho machado que talvez ainda exista, guardado com carinho pelos filhos. Aliás, seu filho Lourival contou-me que ela era orientada por um guia espiritual e, ao contrário de outros benzedores, costumava não falar muito enquanto benzia. Ao final do benzimento, dizia à pessoa quais os procedimentos a serem tomados após o trabalho.

Retornando ao nosso caso, previamente, a Nega combinou com a benzedeira que “dia tal” iríamos visitá-la, e assim se deu. Lembro-me vagamente do dia desse benzimento — era uma data qualquer do ano de 1967, ou seja, o ano em que nos mudamos para ali. Para ir até a casa da Dona Lazinha, não cortamos caminho indo pelo caminho junto laranjal do Tramontelli, caminho este que levava ao “rio de cima”, e indo-se pela barragem, tinha-se acesso à colônia da fazenda pelo lado de baixo. Para as crianças que éramos, era perigoso ir por ali, pois teríamos de atravessar a comporta, pulando um pilar que havia no meio do ladrão, e, quiçá, nos depararmos com alguma cobra... Desse modo, fomos pelo caminho que levava à venda do então Amador (que antecedeu o Borella e João Vichietini), e da venda à colônia.

Após adentrarmos a sala, nos sentamos em cadeiras de palhinha antes de se iniciar a sessão de benzimento. Na parede caiada da sala, via-se dois quadris de retratos da família coloridos na velha técnica de bromóleo. Me levantei e fiquei olhando atentamente um deles. Ao notar-me, a dona Lazinha explicou: 

─ Olha, minino: nesse aqui é vovó e vovô; naquele, mamãe e papai e nóis criança. Ói, que beleza! Agora preciso mandá fazê uma foto nova de eu e mia família, e a sala vai tá completa.

De pronto se notava o rigor com que criara seus filhos e se orgulhava disso ─ criou-os, porém, exemplando-os quando pequenos com uma providencial varinha de marmelo...

─ Os marmanjão me obedece até hoje!

O Lourival, encolhido num canto, mal esboçando um riso amarelo, fez um sinal de positivo acenando com a cabeça.

Em seguida, a bandosa mulher dirigiu-se ao quintal, e logo voltou com um enorme machado nas mãos. Nos entreolhamos assustados. O Wagner murmurou:

─ Nossa, o quê ela vai fazer com esse machado?!

Calmamente, ela nos explicou como seria o benzimento e como teríamos de proceder. Após colocar-me em pé abaixo da porta, a benzedeira bateu três vezes com o tal machado no batente superior ao mesmo tempo em que, num tom de voz quase inaudível, disse uma fórmula interrogativa mais ou menos assim: “O que eu benzo?”, no que eu tinha de fazer o “responso”, ou seja, dizer: “Cobreiro”. 

 *   *   *

Ao final do trabalho, ela orientou a Nega:

─ As força que cura as moléstia e protege é chegá em casa e orá o Padre Nosso, a Ave Maria e o Glória Padre, e sempre treis veiz cada.

─ Mas acho que as crianças não sabem rezar esta última, dona Lazinha.

─ Então reza só as duas premera, ou ensina elas se você soubé, Nega.

Não me recordo se, além das orações, ela nos deu alguma orientação pós-benzimento, e mesmo se teríamos de voltar outras vezes lá, já que o comum era ocorrer o “tratamento” em três sessões.  Porém, outro dia, décadas depois, conversando sobre esta passagem com a Nega, ela me revelou: 

─ Ela me disse que se o cobreiro voltasse, era para passar um pouco de sumo de tronco da banana-de-São-Tomé que era tiro e queda.

Esse curioso ritual, à princípio nos metia medo, pois ver aquele velho machadão sendo erguido acima das nossas cabeças, e depois ser socado no batente assustava. No entanto, após deixarmos sua casa, íamos pelo caminho rindo e imitando os dizeres de seu benzimento: enquanto um irmão perguntava: “– O que eu benzo?”, o outro respondia: “Cobreiro!” Às vezes a brincadeira descambava em pura gozação: “Te benzo, te curo, com bosta de burro!”, no que a Angela nos repreendia...


— Mais respeito com a dona Lazinha, meninos!


*   *   *

Recordo-me também que, nesta época, as pessoas costumavam “isolar” as feridas do cobreiro com tintura de azul de metileno. Na verdade, esta tintura é bactericida e se diz que alivia as coceiras. O azul de metileno podia ser obtido na farmácia da Usina com o Seu Paulo, o farmacêutico; aliás, a dona Lazinha foi cozinheira de sua família anos antes do período em que se passa esta história.
O Seu Paulo me disse um dia que a dona Lazinha avida toda cozinhou com gordura de porco, aliás, como todos sempre gostaram na família. Um dia ele lhe perguntou curioso:

─ A senhora não pensa em morar na cidade, dona Lazinha? 

─ Morá na cidade, aquele inferno?! Cê tá louco, Seu Paulo! Aqui tem paz, religião amor e fartura! E eu preciso mais do quê?!

Quando ia para cidade, ia a contragosto, forçada, porque, segundo ela, a cidade lhe fazia mal, dava “enjoo no bucho”. Ela, decididamente, não gostava da cidade, embora orgulhasse de Araras: 

─ Quando eu vou pra lá fico doente. Vortano aqui pra fazenda eu saro num instante!

Morar na casinha da fazenda, naquela colônia como que parada no tempo, era a suprema felicidade dela, e era o que lhe bastava. Sim, uma casa onde o tempo parece ter parado mesmo ─ era aquele tipo de lugar onde não precisaríamos entrar numa máquina do tempo para voltar uns 50 ou 80 anos atrás...

Mas, retornando ao “isolamento” do cobreiro, havia até criança que chegava a contornar o cobreiro desenhando um arco feito com caneta esferográfica azul. O objetivo era “cercar o cobreiro” com a tinta, para impedir que os dois lados da erupção avançassem pela pele e se encontrassem, o que significava que “evitar que a boca da cobra se juntasse à cauda”, pois diziam que isto resultaria na morte da pessoa...

 Nega combinou com a benzedeira que 

A verdade sobre o cobreiro

A trilho do bicho geográfico nos pés.
Hoje sabe-se que podem ser dois os agentes causadores do cobreiro: um, a Larva migrans, o popular bicho geográfico (Ancylostoma braziliensis), que é um verme que vive no intestino dos cães. Quando os cães defecam, os ovos vem ao chão junto com as fezes, e dele saem as larvas que voltam a infectá-los entrando-lhes pela pele. As larvas, ao penetrar na pele humana, causam uma der­matose, e por estar em pele humana, ela não consegue se aprofundar para atingir o intestino (o que ocorre normalmente no cão e no gato); assim, caminha sob a pele formando um túnel tortuoso e avermelhado. Essa parasitose é mais comum em crianças, que ao sentar em locais contaminados como o chão, a areia da praia ou até na caixa de areia da escola. Por causa disso, os locais mais comumente atingidos são os pés e as nádegas. As lesões são geralmente acompanhadas de muita coceira.

O outro agente é o vírus do Herpes zoster, uma doença viral causada pelo Varicella-zoster virus, o mesmo vírus causador da varicela (catapora), daí o fato de ser conhecido também como “catapora dos adultos”. Sabe-se que, uma vez contagiados com esse vírus, ele nunca abandona nosso corpo. Ele permanece secretamente nas células nervosas anos depois de você tê-lo contraído na infância. Se ela foi leve, pode ser que você nem se lembre de ter tido esta doença. Um dia, ele pode reaparecer na vida adulta, sendo reativado por lesão na área afetada, ou por problemas físicos e até mesmo emocionais. A infecção cria uma erupção cheia de vesículas, gerando coceira e 
As pequenas bolhas da Herpes zoster
dor na região do nervo afetado. O termo zoster origina-se do latim e do francês e está relacionado à cinta ou cinturão devido à forma como as bolhas se espalham no corpo. Ao contrário do bicho geográfico, essa forma de cobreiro ataca as pessoas depois dos 50 anos, e desconfia-se que seja divido ao sistema imunológico estar fraco.

Citei anteriormente que os adultos nos disseram que contraímos o cobreiro no contato com a citada lagarta, mas, de acordo com as pesquisas que fiz para este texto, constatei que cometi dois enganos que duraram décadas — e enganos desfeitos com uma certa "decepção" —, ou seja, em nosso caso, o cobreiro foi devido não ao vírus da Herpes zoster (nem à lagarta), mas sim ao bicho geográfico, lembrando que como meu pai sempre criou cães, sempre estávamos em contatos com eles brincando pelo quintal, e provavelmente fomos contaminados por suas fezes. E mais, como vimos, herpes é coisa de gente adulta. E eu, que por anos à fio acreditei serem as lagartas as responsáveis, quando vi em fotos a diferença entre as trilhas contínuas do bicho geográfico e as bolhas dispersas da herpes, não tive mais dúvidas.

Sacerdócio e caridade

Walter Daltro com os quatro filhos "contaminados": Wenilton,
Wagner, Weber e Waltinho, no ano anterior, ou seja, 1966.

Desnecessário dizer que a Dona Lazinha não cobrava nada pela cura do cobreiro: isto, para ela, era puro exercício de sacerdócio e caridade — sua satisfação consistia em praticar o bem com desinteresse, não visando a nenhum benefício próprio. Sobre o dom de curar, os benzedores são unânimes: "O que se recebe de graça, deve ser dado de graça". Enfatizam que o benzedor não pode receber remuneração pelo trabalho, uma vez que o mal pode retornar parar o corpo de quem foi benzido.

Mas, o que havia por trás da magia encantatória desta benzedeira? Quais eram suas fórmulas secretas, faladas ou escritas, os números e cantigas mágicas? Infelizmente, nada se registrou, e tudo ela levou consigo. Quanto a mim, sequer me lembro com detalhes do que realmente ela dizia durante o benzimento e o que tínhamos que responder ─ o que escrevi acima são vagas lembranças. Dizem que para curar, é a força da elevada substância anímica da benzedeira que atua, e a reza e os ensalmos são somente um meio de chegar até ela. Quando ela se concentra, isto faz vibrar sua substância anímica impregnando-o da força curadora. De todo modo, manda a conveniência que eu me detenha por aqui, porque dentro uma lógica racional não me seria “lícito” tentar decifrar os segredos destas coisas místicas e sobrenaturais, porque é justamente nesta área que as rezadeiras atuam, e, a nós, meros mortais, cabe-nos apenas participar com nossa fé.

Infelizmente, pessoas especiais como a nossa querida dona Lazinha, hoje, são raras de se encontrar nas cidades do interior paulista, e o benzimento é uma prática que cada vez menos tem adeptos, pois as novas gerações não tem tempo nem interesse em aprender, seja por falta de convivência com o sagrado, seja pela descrença generalizada; além do que, o poder de "benzeção" só pode ser recebido de um benzedor. Felizmente, ina que poucas, remanescentes desse ofício mágico ainda estão por aí — raras nas cidades e algumas pelas zonas rurais do interior do país —, sendo, porém, praticado geralmente por pessoas mais velhas, que aprenderam-no com suas mães e avós. Mas o que espanta mesmo é que quando varremos o tempo, vindo do passado até os tempos modernos, constatamos a perenidade do fenômeno das benzedeiras, a sua presença constante, e até vital, como alternativa à medicina tradicional na história da raça humana.

A então residência da Dona Lazinha, a entrada da direita.
Quanto à nossa humilde benzedora, se conformava ela em ser apenas mais uma destas discretas praticantes desse indispensável ofício religioso, que teve início quando Jesus Cristo disse aos 12 apóstolos que eles deveriam ir pelo mundo e curar todas as doenças e enfermidades das pessoas.

Enfim, à nossa querida dona Lazinha, meus eternos agradecimentos, uma vez que nunca mais tomamos remédios para este achaque de meninos descuidados, e esse mal foi curado pura e simplesmente pela intervenção mágica e espiritual desta saudosa benzedeira.

A benção, Dona Lazinha!


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* Este capítulo faz parte do  Volume 1- Journey through to the past ― março de 1967 a dezembro de 1968". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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domingo, 1 de fevereiro de 2015

UMA APOSTA SOLAR


"O esforço de um homem deve exceder o
seu alcance. Ou, então, para que o céu?"
(Robert Browning, escritor britânico, 1812-1889)

“A criança sustenta muitas vezes entre os seus
fracos dedos uma verdade que a idade madura com
toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a
velhice terá novamente o privilégio de carregar.”
(John Ruskin, escritor britânico, 1819-1900)

“Olho este fim de tarde e esta sombra que desce
E em tudo alonga e tece
A trama tênue do seu véu de luto…
A alma sentindo evocativa e boa,
Emocionado, escuto
O saudoso rumor do dia que se extingue…
E o dia azul que foi, apenas se distingue
Por um resto de luz que nas alturas sobra,
Por um sino que dobra
Ou uma asa que voa...”
(Crepúsculo. Mário Pederneiras. 1914)




Ver o pôr do sol na Usina não era coisa muito simples: poucos eram os lugares com vista descortinada e os mirantes onde se podia vê-lo se pondo no horizonte. Mesmo a partir do campo  de futebol — um dos lugares altos da Usina —, haviam arvores à oeste e sudoeste impedindo a livre visão. No entanto, para quem assistia aos jogos de futebol de domingo estando-se na elevação atrás da trave de cima do campo, ele  podia ser visto caso fosse época de inverno.

À esquerda ao alto, o abacateiro do laranjal do Tramontelli (posto abaixo). Em branco, o Restilo. Abaixo e em primeiro plano, as chaminés da Usina.

Fundos do campo de futebol da Usina Palmeiras ao pôr do sol em
23-3-1975. Notar no canto superior esquerdo o cume da Morro Alto.
Só lá nos altos do sítio do Narciso — lugar onde não íamos com tanta frequência —, é que se podia vê-lo abertamente. Daí também era possível distante na linha do horizonte o citado morro da fazenda Morro Alto, onde, anos depois seriam instaladas as antenas de retransmissão de sinais de TV. A partir do abacateiro que existia no extremo leste do laranjal do Tramontelli, só se podia ver o cume desse morro, que mesmo estando-se em pé nos altos das tubulações do Restilo também não era visto.

No Restilo, apesar de ser um lugar relativamente alto, a visão do pôr do sol também era difícil, já que havia o citado laranjal adiante. Lugar excelente mesmo para o horário do crepúsculo — o melhor, aliás —, era sob as paineiras da entrada da fazenda Santa Clementina, mas um lugar que também pouco frequentávamos, porém com a grande vantagem de se ter uma visão de 360 graus do horizonte. 



A aposta solar


Em cima da tubulação, o Julião, junto dele o Isnaldo, ambos já falecidos.
Uma certa tarde — era em janeiro de 1975 —, fomos dar uns bordejos lá nos altos do Restilo, o Isnaldo, eu e o negro Julião. Sentados em sua borda estávamos eu este último em longas conversas, enquanto o primeiro, encostado numa das tubulações, ficava fazendo intermináveis bolas com seu chiclete. Tínhamos ido ali fazer umas fotos com a nova máquina fotográfica que eu havia ganho de Natal, uma Olympus Trip-35. Poucas, fotos, pois, infelizmente, a coisa não era como hoje, quando se pode fazer centenas de fotos digitais sem preocupação com filme e revelação. 

Na hora do crepúsculo, o Sol já ia sem pondo enquanto as sombras do laranjal iam se esticando lentamente morro abaixo em direção à colônia. Foi quando resolvi fazer uma brincadeira com os amigos:

— Vamos ver quem consegue ver a luz do Sol sumir primeiro?

— Vamos! — disse eufórico o Julião. O Isnaldo não quis brincar e limitou-se a entreter-se com as bolas de seu Ploc.

Enquanto eu me equilibrava na ponta dos pés para ver o Sol já sumindo atrás das copas do laranjal do Tramontelli, o Julião, que era mais baixo que eu, num lance de esperteza, gritou para o Isnaldo:

— Saí prá lá, Bedão, que eu vou subir!

O Julião e eu nos registros do Restilo, em foto feita pelo Isnaldo..
— Bedão, seu rabo, seu chaminé no avesso!— retrucou o Isnaldo, fulo com o apelido que o irritava.

Dito isto, rápido como um esquilo, o Julião escalou a tubulação e, equilibrando-se em pé sobre ela, disse que, ali, ia ver a luz do Sol morrer primeiro... 

Não demorou muito e o danado gritou:

— Alá: o Sol está sumindo atrás do horizonte! Já perdeu, Dalua!

E lá em cima da tubulação, ficava rindo e me zoando; e eu, perdedor, com a maior cara-de-sem-graça... O Isnaldo gargalhava enquanto o esperto repetia:

— Perdeu, Dalua, perdeu, Dalua!...

— Dalua seu naso!


Apelidos irritantes...

O Mineiro, em 1975
Pensei comigo: neguinho disgramado, esse apelido não; logo você! Na verdade, não fiquei bravo com o apelido que me irritava tanto quanto o que o Isnaldo "trouxe" da cidade de onde viera, Severínia, ou seja, o apelido Bedão da Cachoeira, talvez um tipo popular desta cidade de onde ele viera. Esse apelido televisivo, digo, o Dalua, me levou, certa vez, a dar uma pedrada na cabeça do Mineiro após este ter me chamado com este maldito nome.... 

Mas eu achava graça no Julião fazendo micagens lá em cima enquanto repetia:

— Perdeu, Dalua, perdeu!...

Crendo que tinha mesmo perdido a aposta, me virei com a Olympus para os lados dos prédios da Usina, e no que eu olhei para as chaminés, tive um estalo:

— Acho que quem perdeu a aposta foi você, Julião! — e soltei um sorrisinho esperto.

O Julião não acreditou:

— Como perdi, se eu estou aqui em cima e você aí em baixo?!

— Vire de costas, então.

Ele se virou, e eu emendei:

— Agora dá uma olhada lá em cima nas chaminés!

A duas chaminés da Usina iluminadas pelo Sol poente.
E lá estavam os últimos raios de sol iluminando a extremidade das chaminés da Usina!... Aí foi minha vez de zoar, enquanto, agora, ele exibia um indisfarçável sorriso amarelo:

— Perdeu, chaminé no avesso, perdeu!... — zoou o Isnaldo, e suas gargalhadas foram tantas que ele acabou por se engasgar com o chiclete!...

— Bem-feito, Bedão, bem-feito! — emendou o Julião batendo com o punho na palma da mão, no que perdeu o equilíbrio no alto do cano e por pouco não despencou lá de cima!...

— O loco, meu! Por pouco!

Foi quando todos rimos à beça.




Los três amigos


O autor, na mureta do Restilo,
local onde se passou a
história cinco anos antes.
O sino da fazenda Palmeiras soou ao longe nos dizendo que a seis horas da tarde havia chegado. Por esta época, o assovio de meu pai — que tinha função quase semelhante —, já havia caído em desuso, uma vez que já não éramos mais aqueles mesmos menininhos indefesos dos primeiros anos de Usina que sempre  precisavam ser alertados com seu assovio que era hora de voltar para casa, pois a noite em breve chegaria. 

Assim terminava uma das muitas tardes de diversão naquele incrível recanto que era os altos do Restilo. Foi aí também o lugar que fizemos as únicas fotos em que nós, “Los Três Amigos”, estamos reunidos, lembrando que esses dois grandes amigos já partiram para outro plano, onde juntos devem estar agora, e
O pôr do sol atrás do Morro Alto, em  ‎23‎-10-2009.
juntos estaremos quando eu me for daqui, mas isto, vai isto demorar muito ainda. Assim espero!... 

Enfim, amigos, pena que o Chaminé no Ave..., digo, pena que o Julião, não era tão esperto quanto eu imaginava, pois se tivesse prestado mais atenção, teria visto uma nuvenzinha solitária iluminada pelo Sol acima do horizonte leste lá para bandas do sítio do Marião. Assim, iria resgatar o título do primeiro a ver a luz do Sol sumir naquele inesquecível final de tarde... 

Mas, caro Julião, meu amigo, saiba, onde quer que você esteja, que o título é teu sim, pois, pensando bem, você viu a própria luz do Sol sumir enquanto eu a vi indiretamente, quando iluminava o alto das as chaminés...
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* Este capítulo faz parte do  Volume 8 - Childhood's end ― janeiro de 1975 a abril de 1977". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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