“Seu Wenilton, seu Wenilton!...” ― Loves in the air... ― Caminho suave ― No pesqueiro ― Epostracismo ― Dragonflies in the air ― Dragonfly ou Demoiselle? ― Um Dragon Fly que não me atraiu... ― Como dar um caldinho num tiziu... ― Assim, assim... ― “Evil Ways” ― “Ninguém põe a mão nessa porcaria!” ― Hóspedes em tratamento ― Dente de Leite — Django usineiro... — Um mal-entendido ― A cura ― Café com leite ― “Os discos voadores prometeram voltar a São Paulo” ― Pelé no Cosmos... ― Anjo tutelar
“Muitas
vezes julguei ter sido
castigado
injustamente ou com
excessivo
rigor em relação à
falta
cometida. Dessa vez o castigo
foi
merecido, correspondente
à
gravidade do erro praticado.”
(Memórias
de outro tempo —
1904-1954.
Francisco de Britto, 1980)
“Pode-se dizer que em todos esses temas que envolvem
duas crianças, um irmãozinho e uma irmãzinha, que são
mortos ou salvos referem-se à totalidade interior do
homem que em sua infância tem que se tornar
um indivíduo autônomo para amadurecer.”
(Puer Aeternus ─ A luta do adulto contra o paraíso
da infância. Marie-Louize von Franz. 1981)
“Mamãe achou melhor que eu
“Pode-se dizer que em todos esses temas que envolvem
duas crianças, um irmãozinho e uma irmãzinha, que são
mortos ou salvos referem-se à totalidade interior do
homem que em sua infância tem que se tornar
um indivíduo autônomo para amadurecer.”
(Puer Aeternus ─ A luta do adulto contra o paraíso
da infância. Marie-Louize von Franz. 1981)
“Mamãe achou melhor que eu
passasse
uma boa temporada na roça.
O
médico deu esse conselho, dizendo:
‘Vale
mais uma semana de ar
saudável
do campo do que meia
dúzia
de fortificantes caros’.”
(Saudade.
Thales Castanho
...e daí que se encontraram no passeio da colônia minha irmã Luciana, a Valéria e a pequena Daniele:
─ Lu!... Ô, Lu! ─ chamou a Daniele.
─ Que é, Dani?
─ O que é quiocê tá fazeno agola?
─ Nada.
─ Ah, então vem bincá de nada co’ a gente!
Uma pausa: vocês conhecem a pequena Luciana? Não?! Pois bem: é uma menininha cercada de luz por todos os lados, melhor: parece que tem luz própria! Luciana ─ ou simplesmente “Lu” ─, querida sorella mia, é um menininha feliz como um peixinho à vontade dentro de uma calmo riacho. Mas trata-se daquela felicidade natural e típica das crianças, a do “ser feliz e não saber” da velha canção. Na verdade, nesta tenra idade, ela mal se conhece e não faz de si nenhuma ideia muito profunda. Com frequência, vive imersa em seu mundinho de sonhos que acalentam sua almazinha pueril. Fora uns senões, diria que a Lu parece a menina Vidinha do Monteiro Lobato: "(...) o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Deem-lhe um vaso de porcelana e cintilará.”
─ Você tem algum bichinho de estimação, Dani? ─ perguntou a Valéria.
Em seu tatibitate encantador, ela respondeu:
─ Tenho uns peixinho cololido.
─ E como eles estão agora?
─ Xiii, ele molelo, Valélia!
─ Morreram! Como, Dani?!
─ Eles pulalo fóla do aquário e se afogaro no ar!
A pequena Lu não entendeu o porquê de a Valéria rir à beça...
─ Vamu lá no lio vê peixinho e zogá pédinha n’água!
─ Vamos, Valéria!
─ Não pode: é perigoso! ─ alertou a Valéria.
A Lu se entristeceu:
─ Ah, eu queria tanto ir lá...
* * *
O Walter, na época
|
...então, estava eu matutando umas coisas cá
dentro do último andar do edifício humano, cismando com o tal do tempo... sim,
o tempo, o tempo impiedoso que flui incessantemente ao seu bel-prazer
independentemente do que quer que façamos para tentar freá-lo. No entanto, há
um consenso hoje entre os cientistas que se ocupam de seu tema, ou seja, a
Cronologia, que, quando adultos, uma vida monótona, rotineira e repetitiva faz
com que ele se acelere, de modo que, p. ex., os 10 anos de uma infância
bem-vivida e cheia de acontecimentos parecem muito mais ricos, extensos e
duradouros que um período semelhante na vida adulta (indeed). Mas há quem diga que a nossa percepção do tempo é uma
ilusão criada por nossa mente (quizas,
quizas, quizas....). Ainda assim, há um antídoto para isso, que (dizem
também...) seria, então, diversificar as atividades, fazer coisas jamais
sonhadas, aprender algo novo, mudar o visual, fazer algum curso, ir para outros
lugares diferentes, viajar etc. Por meu lado, acredito que relembrar e
registrar histórias também ajude a tornar a vida menos monótona, e, pensando
bem, isto não deixa de ser uma forma especial de viajar, e viajar no tempo,
ressalte-se...
Isto posto, amigos,
permitam-me, então, narrar aqui duas curiosas e algo semelhantes histórias desses bons tempos pueris
em que o deus Cronos fazia a areia da ampulheta passar de modo muito mais lento
e sutil de um cone para o outro, isto, enquanto que o dia-a-dia era repleto de
instigantes descobertas e acontecimentos — falo daquela idade embriagadora da
infância em que as crianças descobrem o mundo à sua volta, e ele as recebe de
braços abertos e cheio de novidades.
Sem mais demora, às histórias, então!
Sem mais demora, às histórias, então!
“Seu Wenilton, seu Wenilton!...”
Um tal de Estrupício... |
E foi por este último modo, que meu
pai, um belo dia, se dirigiu à mim, isto, após eu ter envolvido minha irmã
Luciana — muito pequena ainda —, numa perigosa
aventura (há razões em minha personalidade que justificavam os meus gostos e
tendências naturalistas já nesta idade precoce, e que, por isso mesmo,
debutante que era, levava-me a cometer desatinos e, depois, sofrer as duras
consequências, como se verá...).
O fato
se deu no tanque do meio, o açude d’água que ficava ao lado da colônia de baixo, ótimo lugar para se pescar e tarrafear (para adultos, entenda-se
desde já).
Loves in the air...
Era uma ensolarada tarde outonal. Os céus e o espaço, desde o Sputnik e o
cosmonauta Yuri Gagarin, andavam por povoados engenhocas humanas voadoras, e, não nos esqueçamos, no memorável ano anterior — estamos em 1970 —, a célebre Apollo 11 levou o
primeiro ser humano a pousar na Lua. Mas, nos bons ares da Usina, havia algo
além dos aviões de carreira (que, diga-se, aliás, raramente passavam por ali) e das espaçonaves (jamais vistas à olho nu),
algo que não iria pousar na Lua, mas roçar de leve uma engenhoca humana
pertencente ao meu pai, deixando nela algo que não cheirava bem... Mas o que
havia de além nos ares da Usina (perguntar-me-ão os amigos)? Acalmem-se,
acalmem-se, que meu pai em breve esclarecerá (patience are highly recomended!).
* * *
Mais precisamente, o fato se deu na última semana de um mês abril — o mês em que se desesperam os automobilistas ciosos de seus carrões ─, pois certos insetos ultracoloridos andaram revoando longe dos cursos d’água, dando uns suspeitos bordejos pelos recantos da colônia de baixo.
A DKW do Walter, três anos antes. |
― Olha isto, Lucrédi, olha só essas
manchinhas no capô da DKW!
― Mas quem fez isto?
― Vi umas libélulas pousando aí ontem, e depois apareceram essas manchinhas. E elas não saem de jeito nenhum!
Não há meio de removê-las! Acho que queimou a pintura mesmo! Bichinho
desgramado!
― Então elas fizeram cocô na lataria?
― Mas será que é cocô mesmo, Lucrédi?
― Vai saber...
― Lucrédi, meu amigo, encerei esta
lataria ontem mesmo! Tava um brinco! E agora vem esses bichinhos enxeridos
estragar tudo!
― E esse cocozinho com o carro exposto
ao sol quente deve queimar a pintura mesmo. Será que tem ácido no cocô?
* * *
Pobres e inocentes libélulas, iludidas em plena excitante época de revoada
e acasalamento! Atraídas pelo reflexo no Sol nos automóveis, creem elas, lá nos
meandros do seu cerebrozinho, ser a lataria lisa e reflexiva algo como a
superfície de um lago ou rio qualquer, onde, normalmente, costumam desovar...
Daí, as manchas nos carros...
― Tava reparando aqui, Walter, mas está
lataria aí está tinindo mesmo, hein! Tá parecendo um espelho d’água, home!
― Acho que esse é o motivo de elas
terem feito isso. Já reparou quando você vai pescar que elas costumam encostar
a bunda na superfície do rio? Como é que é o outro nome que se dá à elas:
lavandeira, né?
― Antes fosse lavanderia, né Walter...
O Lucrédi, 2015 |
― Esse bichinho é irritante até na hora de pescar,
Lucrédi: você arma a vara na beira do barranco e o fiadamãe vem e pousa bem na
ponta da vara!... Quando eu fui visitar o Rio Piracicaba uns três anos atrás
com minha família, um pescador de lá, o seu Lazinho, me disse que se uma
libélula sentar na ponta da vara pode ir embora porque não vai pegar mais nada.
― Olha só! Mas, Walter, a molecada não costuma chamar
elas por outro nome também? E falando meio que com o canto da boca,
murmurou: — lava-cu?...
― Lava o quê?
― Deixa para lá, mas, esse bichinho no sexo é imbatível, hein, Walter?
─ Como assim?
─ Veja bem, amigo: tem gente que é ruim de cama prá danar, enquanto as libélulas fazem sexo
até voando!...
─ Sério?!
─ Olha ali, perto do capô da DKW um casal!
─ Olha só! Humilhante, hein, Lucrédi! Quem me dera!...
─ Isso é mais difícil que dar nó em pingo d’água!
Mas, deixemos de “loves in the air”, amigos e voltemos à história em questão: não o disse ainda, mas era o final de um domingo, dia de ventos amenos, mas de um céu a princípio muito, muito azul, quiçá aquele mesmo azul da Terra que o citado Gagarin viu do espaço exatos 10 anos atrás.
─ Como assim?
─ Veja bem, amigo: tem gente que é ruim de cama prá danar, enquanto as libélulas fazem sexo
até voando!...
Loves in the air... |
─ Sério?!
─ Olha ali, perto do capô da DKW um casal!
─ Olha só! Humilhante, hein, Lucrédi! Quem me dera!...
─ Isso é mais difícil que dar nó em pingo d’água!
Mas, deixemos de “loves in the air”, amigos e voltemos à história em questão: não o disse ainda, mas era o final de um domingo, dia de ventos amenos, mas de um céu a princípio muito, muito azul, quiçá aquele mesmo azul da Terra que o citado Gagarin viu do espaço exatos 10 anos atrás.
Caminho
suave
― Canta demais esse curió da gaiola pequena, hein, Walter!
― Demais, o Meninão! Pudera: canto praia grande superclássico!...
― Uau! Mas esse aí da gaiola grande parece que não abre o bico!
― Impressão sua, mas melhor que o Meninão só o Ana Dias!...
― Ô, exagerado! Mas, quer me vender o Meninão, Walter?
― Só posso vender os dois juntos, Lucredi...
― Por quê?!
― O da gaiola pequena é o intérprete...
― Intérprete?! E o outro?
― O outro é o compositor...
* * *
A Luciana brincava sozinha no gramado entre nossa casa e a do vizinho.
Menino ainda, orçava eu pela casa dos oito anos, e
minha inocente irmã, emplacando nos três. Apesar do citado rio ser próximo à
nossa casa, acreditava que a mana nunca havia se aproximado dele, conhecendo-o,
por assim dizer, mais a fundo. Assim, inocentemente, resolvi apresentar-lhe o tanque do meio, e antes mesmo que eu a convidasse para ir ali, ela se
antecipou dizendo que queria vê-lo. Com a boca cheia de um pedaço de pão dado
por nossa mãe pouco antes, ela falou.
― Vinito, quero ver o rio de
perto!
Sem avisar ninguém, coloquei ela de cavalinho em minhas costas e partimos.
— Vamos, então!
Passando em frente à casa dos vizinhos, ouvimos uma música
lindíssima que vinha lá do rádio da sala da dona Cida.
― Olha que música linda, Lu!
― É, Vinito, a música é bonita.
A Sonia, que neste momento estava
na área da casa, me ouviu e concordou:
― Linda mesmo, Wenilton!
― Que música é?
― "Hey there lonely girl", com um tal de Eddie Holman.
(Sim, sim, amigos, desnecessário dizer que a música pop que imperava nesta época de minha formação era das melhores que se fazia em todo o planeta, que, nas décadas de 60 e 70, a música mundial em geral ainda não sofria o fenômeno da cultura de massa, com seu padrão “descartável”, “enlatado” ― ou pré-fabricado ― e de curta duração, enfim, “músicas” de gosto duvidoso, feitas para não permanecer.)
Minha irmã sorriu para a Sonia.
— Oiiii, Lu!
― Fala oi para a Sonia, menina!
― Oiiii!
― Vão dar um passeio pelo rio,
Wenilton?
― Como é que você sabe?
― Longe é que vocês não vão...
― Então tchau, Sonia!
|
Parei diante do cipreste que havia
pouco adiante, tirei um pouquinho daquela resina cor de âmbar que o tronco
dessas árvores normalmente exsudam, enrolei um
pouquinho entre os dedos e disse:
― Cheira, Lu.
Antes de cheirar, ela olhou a bolinha
cor de mel entre meus dedos e perguntou:
― Hummm, o quê que é isso, Vinito! É
caramelo?
― Não, sua bobinha: é um líquido que a
árvore solta, mas não é de comer não.
― Annnn...
― Ahh, Vinito, credo! Isso gruda no
dedo!
― Depois você lava a mão lá no
rio.
No pesqueiro
Descemos com dificuldade o barranco - eu, descalço; a Lu, com seu chinelinho de contas, que ia enroscando em ramas de capim. A pequena não é tão alta a ponto de alcançar a flor de um pequeno girassol que cresceu ali. Me presto a esse serviço e apanho para ela.
― Toma, Lu.
― Bigado.
Aranhas d'água |
― Senta aqui, Lu, que está limpinho.
Ela distraiu-se e rapidamente me sentei
no lugar...
― Ah!
― Quem foi à Limeira perdeu a cadeira,
Lu!
― Ah, seu bobo!
A Lu, com o olhar inundado de luz, colocou uma varinha comprida na água e se assustou:
─ Olha, Vinito: a varinha entortou!
Embora conhecesse o fato, obviamente não pude explicar que se tratava do fenômeno conhecido como “ângulo de refração” ─ que os índios conhecem muito bem quando pescam com flecha ─, mas mesmo assim, disse o que me era possível:
─ A água faz isso mesmo, Lu, e engana a gente. Não entortou a varinha não.
A outra margem estava a um tiro de espingarda de chumbinho distante de nós, e a brisa que passava rescendia à um cheiro que remetia à maresia que conhece poucos meses antes em nossa viagem de férias à Santos, em janeiro passado. Disse maresia, mas, no caso, era nateiro, ou seja, cheiro de barro podres e azedo de rio, mas era um cheiro bom.
Sentada e, com ar de satisfeita, a Lu batia de leve as mãozinhas espalmadas no dorso das pernas.
Em vista aérea, o palco da história, dois anos depois do acontecido. |
Beri-silvestre |
— Olha que planta bonita, Vinito!
— A dona Cida disse pra mãe que
isso se chama beri-silvestre, planta de beira de rio. Serve para fazer colar.
Peguei uma de suas belas bagas
cor de vinho, abri e coloquei na palma da mão da Lu as brilhantes sementes
pretas que há dentro.
— Que bunitinho, Vinito! E essa outra aqui, o que é?
— Essa é conta-de-rosário. Sabe
aquela cortina de sementinhas lá da cozinha de casa?
— Sei.
— É feita das sementes desta
planta.
Enrolando uma mecha anelada de cabelo na ponta do dedinho indicador, num mutismo de pedra, olhava descontraída a superfície d’água, mas olhava de uma maneira fixa, olhos colocados num ponto indefinido e parecia falar entretida consigo mesmo num monólogo baixinho e malemolente. Depois, como querendo despertar, apoiou os cotovelos no dorso das pernas segurando o rostinho na concha das mãos, e, com um sorrisinho de satisfação, ali ficou pensativa até que eu a subtraísse desses devaneios.
— Lu!
— Ã?
— No que você está pensando?
Ela se levantou e limpando as mãozinhas nos fundilhos da calça, e após esfregar os olhinhos com os nós dos dedos, disse:
— Pensando em nada!
Dito isto, ela deitou-se à margem do rio e ficou ali, despreocupada, lavando as mãozinhas feito um guaxinim.
─ Sai daí, que é perigoso, Lu!
─ Já vou!
* * *
Antes de enveredarmos pela história adentro, se faz necessário uma música adequada para o cenário, e recorro ao inspirado Ashera (Anthony Wright), tecladista australiano de Ambient Music, que, sem o saber, em suas cinco magníficas obras, fez a trilha sonora perfeita para as histórias e cenários descritos nestes trabalhos memoriais! Ilustremos, pois, a presente história com a belíssima e tocante "Cobalt Friends"!
* * *
― Lu!
― Quê? Vamos supor que você estivesse num barco, junto do pai e da mãe, e só você soubesse nadar.
― Sim.
― Daí que o barco vira com vocês três.
― Nossa, Nito!
― E então, Lu, quem você salvaria: o pai ou a mãe?
― Não daria para salvar os dois?
― Não.
― Então eu chamaria o Flipper para me ajudar!
* * *
Era linda a vegetação aquática deste recanto: aqui e ali os comuníssimos aguapés, alfaces e pinheirinhos d'água; ninfeias aflorando à superfície; próximos às margens as submersas elódeas e samambaias aquáticas dançando languidamente ao sabor da suave correnteza que corria ao fundo; as delicadas salvínias e lentilhas; as arredondadas açariçobas cujos caules finíssimos desapareciam nas profundezas do rio.
1- Elódea; 2- Salvínia; 3- Ninféia; 4- Samambaia aquática; 5- Lentilha d'água; 6- Pinheirinho d'água; 7- Agua-pé; 8- Alface d'água; 9-Açariçoba.
|
Em certo momento, ensinei a mana arremessar pedrinhas na água para ver os círculos concêntricos se formarem.
― Joga fora esse resto de pão, Lu, e
pega esta pedrinha para jogar na água.
Quando ela se preparava para jogá-lo,
adverti:
― Nããão, Lu: tem que dar três beijinhos
no pão antes de jogar fora!
― Porquê, Nito?
― O pão é sagrado, Lu, é o corpo de
Jesus, e é pecado jogar fora sem dar três beijinhos nele antes!
― Éééééé?!
― Sim, três beijinhos.
Mal ela jogou, um bando de
lambarizinhos enxameou na superfície.
― Olha os peixinhos, Lu!
― Nooossa!
― Quando a gente morava lá na cidade, antes de você nascer, o pai levava a gente para ir pegar peixinhos com peneira num rio que tinha num pasto lá para baixo de casa!
― Nooossa!
― Quando a gente morava lá na cidade, antes de você nascer, o pai levava a gente para ir pegar peixinhos com peneira num rio que tinha num pasto lá para baixo de casa!
― Vamos buscar uma peneira em casa, então?!
― Deixa para outro dia; agora está muito
tarde! E a gente tem que vir com o pai aqui, pois o rio deve ser fundo nessa
margem.
― Ahhhh! Eu queria pegar um peixinho, Nito!
― Se tirar o peixinho fora d'água, ele morre, Lu!
― Então o peixinho se afoga fora d'água, Nito?!
― Sim, se afoga, Lu...
― Nooossa!
― Se tirar o peixinho fora d'água, ele morre, Lu!
― Então o peixinho se afoga fora d'água, Nito?!
― Sim, se afoga, Lu...
― Nooossa!
― Eu me lembro também, Lu, naquele dia
caçando peixes com a peneira, de ter visto pela primeira vez boiando na água
uma mancha colorida bonita que tinha as cores do arco-íris. Era lindo ver aquilo, Lu!
― Arco-íris? Que é isso, Vinito?
― Da próxima vez que tiver uma chuva
com sol eu te mostro, Lu.
― Chuva com sol?!
― Você vai ver!
(Anos depois, vim a reparar que uma
porção de óleo ou graxa desfeita na água provoca a decomposição das cores
igualzinho ao que ocorre no arco-íris, criando uma mancha onde se pode
notar essa bela irisação.)
― Então, Lu, joga essa pedrinha na água
agora.
Ela jogou.
― Olha os círculos redondinhos que ela
faz, Lu, um atrás do outro!
― É mesmo, Vinito! Que bonito!
― Olha, Lu, uma andorinha!
― Vou tacá uma pedrinha nela, Vinito!
― Não, não pode! Não presta
matar andorinha! Elas são aves sagradas! Matar
andorinha é pecado!
― Mas o pão também é sagrado, Vinito, e
eu joguei ele no lio!
Ri-me da inocente confusão de minha
irmã.
Epostracismo
Empolgado com a alegria de minha irmã, mostrei à ela uma outra brincadeira algo semelhante. Vocês amigos, hão de se lembrar ― entretenimento tão comum na infância das crianças criadas na zona rural ― e quem de nós não brincou disto quando criança? De tão antiga e universal, a brincadeira tem até um nome, e nome esdrúxulo, feio mesmo, o nome que batiza este subcapítulo!...
Para quem não conhece o tal de Epostracismo, ele é o nome com o qual injuriaram esta inocente brincadeira infantil de atirar pedras redondas e achatadas na água, de maneira tal que, em frações de segundos, ela deve ricochetear várias vezes na tona d'água. Desse modo, a brincadeira é uma competição entre crianças, e ganha aquela que consegue fazer a pedra ricochetear o maior número de vezes. Em algumas regiões do Brasil as crianças dizem que o total de batidas da pedra na água corresponde ao número de filhos que se terá, mas nós, na Usina, apenas soletrávamos as divisões da família.
Para quem não conhece o tal de Epostracismo, ele é o nome com o qual injuriaram esta inocente brincadeira infantil de atirar pedras redondas e achatadas na água, de maneira tal que, em frações de segundos, ela deve ricochetear várias vezes na tona d'água. Desse modo, a brincadeira é uma competição entre crianças, e ganha aquela que consegue fazer a pedra ricochetear o maior número de vezes. Em algumas regiões do Brasil as crianças dizem que o total de batidas da pedra na água corresponde ao número de filhos que se terá, mas nós, na Usina, apenas soletrávamos as divisões da família.
― Lá vai, Lu! Fica olhando!
Me abaixei um pouco, me inclinei
lateralmente e atirei a pedra. Enquanto ela saltava sucessivamente na
superfície, eu ia dizendo:
― Vô, vó, pai, mãe, filho, filha, neto, neta, bisneto...
― Aiii, que legal, Vinito! Tamém quero
zogá uma!
― Para a sua idade é muito difícil
atirar a pedra certinho, Lu. Quando você ficar maiorzinha, eu te ensino.
― Ahhhh, seu chato!...
― Ahhhh, seu chato!...
― Isto, para você, Lu, é mais difícil do que dar nó em pingo d'água...
― Ãnnnn?
― Nada, Lu, nada.
― Nada, Lu, nada.
* * *
― Mas isto tem nome?!
― Sim, descobri esses dias numa enciclopédia.
― E qual é?
― Lá vai: e-pos-tra-cis-mo...
― O quê? Epostracismo! Caramba, que nome feio!
― Pois é...
― Já pensou, Wenilton, você chega num amigo seu e diz: “Vamos brincar de epostracismo?” e ele, com os olhos arregalados diz: “Brincar do quê?!”
― Há, há, há!...
Dragonflies in the air
Início da irrupção de libélulas |
— Olha, Lu, quantas libélulas
apareceram!
— O quê?
Inicialmente, a cena
nada tinha de extraordinária, mas, depois, a coisa se
tornou meio que cinematográfica, digna até de um programa sobre vida selvagem.
Falei em centenas antes, mas eram
milhares e milhares de libélulas, e vinham de todos os lados, surgidos não se
sabia de onde. Acima de nossas cabeças, milhares delas enchendo os ares, revoando com suas asas ora irizadas ora cintilando como mica ao sol, indo e vindo, subindo e descendo ─ inquietas sempre.
Ficamos espantados com o fenômeno que, décadas depois, vim a saber que era a tal da “irrupção” (outro nome feio, não é, amigos?). Mas o fenômeno era mais um daqueles incríveis espetáculos da vida selvagem que, ali na Usina, a natureza parecia ter criado apenas para o regalo das crianças que amam a vida selvagem. Os grupos, em voos ondulantes, ora subindo ora se aproximando das águas, pareciam voar desordenadamente, mas passavam a estranha impressão de que estavam “patrulhando” o tanque e seus arredores.
Irização das asas de uma libélula |
Quantas vezes, anos depois, nas margens desse tanque,
pescando ou não, eu não me detive a olhar a dança ascendente e descendente
desses curiosos insetos sobre as águas, e lá ficavam eles, silenciosos,
ondulando pra cima e para baixo aos impulsos de sua própria vontade, de sua
fantasia e do sopro da brisa.
* * *
Ficamos espantados com o fenômeno que, décadas depois, vim a saber que era a tal da “irrupção” (outro nome feio, não é, amigos?). Mas o fenômeno era mais um daqueles incríveis espetáculos da vida selvagem que, ali na Usina, a natureza parecia ter criado apenas para o regalo das crianças que amam a vida selvagem. Os grupos, em voos ondulantes, ora subindo ora se aproximando das águas, pareciam voar desordenadamente, mas passavam a estranha impressão de que estavam “patrulhando” o tanque e seus arredores.
Vale lembrar que, dentre os insetos que frequentam as coleções d’água nesta abençoada terra, poucos são atraentes como esses verdadeiros símbolos de pureza da água que são as libélulas. Alguma vez notaram, amigos, o voo elegante e controlado, as cores vivas, ora acetinadas, ora esmaltadas que adornam os anéis de seus corpos esguios e flexíveis? Já deram um close na fantástica e brilhante irisação que saem de suas asas transparentes ao mais leve raio de sol? Anos depois, nas aulas de Biologia, eu aprenderia que estas cores magníficas se devem à difração da luz que atravessa as escamas que compõem o revestimento das asas, e as cores metálicas são causadas por camadas superpostas destas escamas, que são transparentes e muito finas, e que reagem ao reflexo da luz de determinado comprimento de onda.
Uma pausa aqui para inserir uma trilha para o cenário, canção Flower & Power, movimento que, por sinal, ia de vento em popa na época:
Uma pausa aqui para inserir uma trilha para o cenário, canção Flower & Power, movimento que, por sinal, ia de vento em popa na época:
— Que lindo, Lu! Olha isso! Tem bicho
demais voando!
— Noooossa, que bonito, Vinito!
― É tudo libélula, Lu!
― Lilélu...lilé...
― Libélula, Lu. Fala devagar:
li-bé-lu-la.
― Li-lé... Li-bé... aaaaah, não
consigo!...
― Há, há, há!... Quando você ficar
maiorzinha, vai falar certinho, mana.
— Éééé?...
— Éééé?...
— Aiiii!
— O que foi, Vinito?
— Deu mau-jeito no pescoço.
Acho que é torcicolo.
— Torci o quê?
* * *
Irrupção de libélulas |
Vale lembrar que estas libélulas que surgiram na Usina, eram daquelas que — por pior que o tempo estivesse —, jamais iriam pousar na ponta de baionetas...
* * *
Minha irmã estava tão fascinada com
aquela beleza toda que parecia se abandonar de corpo e alma à magia do
instante, que para ela, menininha que era, o cenário se revestia de
características de um sonho encantado. Desnecessário dizer que, comigo, a coisa
não foi muito diferente... (ah, ninguém, ninguém — nem mesmo eu
—, podia
imaginar as maravilhas que já estavam se processando em meu cérebro com tudo o que eu vivia, via, ouvia e lia nestes dias de
instigantes surpresas e descobertas que foram os meus primeiros anos de Usina).
― Que lindo, Vinito, que lindo!
― Bonito mesmo, né, Lu! Mas...
― Vinito...
— Quêêê?
— Tô cum frio.
― Tá cum frio? Bate a bunda no rio!
A mana riu gostosamente, e
perguntou:
― E se eu tivesse cum calor?
― “Bate a bunda num tambor!”...
― Ih, ih, ih!...
O tempo mudando justificava a friagem.
― Olha,
Vinito, que esquisito: vai chover e tá fazendo sol!
― Taí, Lu, o que eu te falei agora a
pouco: sol e chuva, casamento de viúva,
chuva e sol, casamento de espanhol.
Sem prestar atenção ao que eu disse, a Lu
interviu:
― E o arco... arco o quê?
— Arco-íris, Lu. Olhei para o céu para ver se havia um e...
— É, Lu, que pena: não está aparecendo nenhum.
— É, Lu, que pena: não está aparecendo nenhum.
Resolvi continuar com a brincadeira:
― O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem; o tempo respondeu
ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo, tempo tem.
E ela, com os cotovelos apoiados no
joelho e sustendo seu rostinho entre as conchas das mãos, exclamou:
― Nooossa, Vinito! Quiquiéisso quiocê
tá falano?! Prá quê tanto tempo assim?!
Dragonfly ou Demoiselle?
A Mariner 7 |
— Viu, Wenilton, que a Mariner 7 chegou em Marte?
— Não, Tonholi, não estava
sabendo.
— Se a gente pudesse ver isso
pela televisão, hein.
— Quem sabe um dia...
Neste momento, dois jatos
surgiram nos céus da Usina para dar início aos seus treinamentos.
— Lindo esse jato novo da Força
Aérea, hein, Wenilton.
— Que jato é?
— É o T-37 Dragonfly.
— Que jato é?
— É o T-37 Dragonfly.
Santos Dumont e o Demoiselle, 1909
|
— Dragonfly é libélula! Dá para acreditar?
— Até que o corpo dessas mais grandonas lembra um pouco ele... ah, Tonholi, sabia que a tradução de Demoiselle, aquele aviãozinho do Santos Dumont, é libélula?
― Sério?! Que legal!
― Também achei!
― Mas você percebe que os nomes dos dois aviões não poderiam ser trocados?
― Como assim?
― Dragonfly não cairia bem para
o Demoiselle e vice-versa. Dragonfly seria um nome muito pesado para o leve
Demoiselle, e Demoiselle seria um nome muito tetéia para um jato. Concorda?
― Verdade. Mas, você viu, Wenilton, que os Dragonfly vêm sempre aqui agora? Eu fico até com torcicolo de tanto observar eles treinando.
― Verdade. Mas, você viu, Wenilton, que os Dragonfly vêm sempre aqui agora? Eu fico até com torcicolo de tanto observar eles treinando.
— Que coincidência: eu tive torcicolo um dia
desses vendo libélulas.
— Vendo libélulas?! Que azar! Antes fosse os Dragonfly, né.
Dragonfly T-37C, anos 60-70
|
— Ô louco, libélula costurando a boca! Caramba, que pesadelo, hein! Parece castigo!
— Deve ter sido, porque eu aprontei uma daquelas nesse dia... E eu tenho mania de sonhar com insetos, e, vira e meche, eu sonho com mariposas.
— Isto não acontece comigo.
— Me lembro do primeiro sonho que tive com uma: morava lá na cidade e acordei em meio ao pesadelo cheio de medo chamando por meus pais!...
* * *
"Irrupção" de Dragonflies... |
Ao cair da tarde, as libélulas
foram voando cada vez mais baixo e passaram a pousar onde quer que houvesse
touceiras de capim e pequenos arbustos. As que vinham pousar ao nosso lado, se
espantavam sempre quando tentávamos apanhá-las, mas, estranhamente, voltavam a
pousar no mesmo lugar. Mais estranho ainda foi notar que os pássaros que
surgiam não as atacavam — creio que, ou já estavam fartos de comê-las, ou elas
não lhes serviam de alimento.
Então, me digam, amigos: o que poderia haver neste dia mais lindo que uma irrupção de libélulas? Desnecessário dizer que só mesmo uma irrupção de Dragonflies!...
Então, me digam, amigos: o que poderia haver neste dia mais lindo que uma irrupção de libélulas? Desnecessário dizer que só mesmo uma irrupção de Dragonflies!...
Sabiam que há quem diga que libélula sobrevoando a cabeça da gente coisa boa não é (será mesmo, amigos?...)
Um Dragon Fly que não me atraiu
Dragonfly, Dragonfly... eu
voltaria a travar a contato com esse curioso nome exatos cinco anos depois, em
abril de 1975, quando foi lançado no Brasil o disco Dragon Fly, da
banda norte-americana Jefferson Starship ― um disco que ouvi e, na época, não
me agradou, e, por fim, acabei vendendo-o.
Muito certamente, o que atraiu no disco foi a linda capa de cunho espacial, uma cena agradabilíssima, uma ilustração de uma mulher-libélula com jeitão de biônica, cruzando o espaço estrelado cor azul profundo, onde alguns raios riscavam ao longe.
Por outro lado já havia lido a biografia da banda num dos números da Rock, a História e a Glória (Nº 27), e fiquei curioso de conhecer o seu trabalho, ainda mais que fiquei curioso por conhecer o trabalho do novo guitarrista da banda, o Craig Chaquinho, de apenas 19 anos, que diziam ser um músico promissor.
Muito certamente, o que atraiu no disco foi a linda capa de cunho espacial, uma cena agradabilíssima, uma ilustração de uma mulher-libélula com jeitão de biônica, cruzando o espaço estrelado cor azul profundo, onde alguns raios riscavam ao longe.
Por outro lado já havia lido a biografia da banda num dos números da Rock, a História e a Glória (Nº 27), e fiquei curioso de conhecer o seu trabalho, ainda mais que fiquei curioso por conhecer o trabalho do novo guitarrista da banda, o Craig Chaquinho, de apenas 19 anos, que diziam ser um músico promissor.
― Que comprar essa bolacha,
Davi?
― Que banda é?
― Jefferson Starship, uma banda
psicodélica norte-americana.
― Som legal?
― Não é muito meu tipo...
― Se você me vender o “Zoot
Allures” do Frank Zappa, eu compro no ato.
― Não, não, esse eu não vendo.
Só o Jefferson.
― Tudo bem, negócio fechado!
Vale lembrar que a capa era tão
linda quanto a de outra banda norte-americana da época, o Grateful Dead, aquela
cuja famosa ilustração é uma caveira de cabelos brancos eriçados e ray-ban, tocando
violino sentada num pórtico tendo onde ao fundo se vê um céu estrelado ― outro
disco que não me agradou e também me desfiz, porém, com uma tremenda dor no
peito, pois esse disco ― o Blues for Allah ―, lançado aqui em
outubro do mesmo ano, tem uma das capa mais lindas do rock, digna de um Black
Sabbath.
Lembro-me que, na cola desse disco do Grateful veio o dinossauro Bill Halley fazer shows no Brasil, e tive oportunidade de vê-lo na TV, e ele mandou muito legal, além de fazer uma pontinha e aparecer na capa do disco do Bill Halley Presents Lee Jackson, do Lee Jackson, disco lançado porém em julho do ano seguinte ― ótimo e bem gravado disco, sucessão no Brasil.
Lembro-me que, na cola desse disco do Grateful veio o dinossauro Bill Halley fazer shows no Brasil, e tive oportunidade de vê-lo na TV, e ele mandou muito legal, além de fazer uma pontinha e aparecer na capa do disco do Bill Halley Presents Lee Jackson, do Lee Jackson, disco lançado porém em julho do ano seguinte ― ótimo e bem gravado disco, sucessão no Brasil.
Como dar um caldinho num tiziu...
Mas, voltemos à história em questão.
Nosso deslumbre durou enquanto o céu não ficou livre desses curiosos insetos, quando então voltamos a atirar pedras nas águas. Num dado momento, porém, arremessamos conjuntamente duas pedras ao rio, e ambas caíram tão próximas que uma quebrou as ondulações da outra.
Nosso deslumbre durou enquanto o céu não ficou livre desses curiosos insetos, quando então voltamos a atirar pedras nas águas. Num dado momento, porém, arremessamos conjuntamente duas pedras ao rio, e ambas caíram tão próximas que uma quebrou as ondulações da outra.
― Olha, Lu: os meus círculos se
encontraram com os seus!
― Enroscou tudo, Vinito!
― Xiiiii...
― Xiiiii...
Oportunamente, achei uma vara de pescar caída ao nosso
lado, e como isca, resolvi colocar um talinho de capim
gordura, e mostrei para a mana como se pescava. Mais oportunamente ainda, gostaria de adiantar aqui que, sobre aquela velha historiazinha de que se existe um trouxa numa das extremidades da vara de pescar, esse trouxa era tudo menos eu, como se verá...
― Os peixes comem capim, Vinito?
― Só se fosse cavalo marinho, Lu...
― Cavalo marinho, Vinito! Que cavalo é
esse?
― Deixá prá lá, Lu...
― Olha isso, Lu!
― Uma lilé... libé...
― Li-bé-lu-la,
Lu!
Foi quando um passarinho escuro também pousou
na ponta da vara espantando a libélula. Era um Tiziu! A mana ficou exultante:
― Olha, Vinito, um passarico!
Sussurrei para ela:
― É um Tiziu, Lu! Fica quietinha, para não espantar
ele.
― Tá.
— Olha, Vinito!
— Fica quieta, Lu, não se meche!
O bichinho se arremessava girando no ar
e agilmente voltava a pousar na vara. Sussurrei:
― Olha o que eu vou fazer, Lu, presta
atenção.
― Tá.
Quando o Tiziu saltou, imediatamente
desloquei a vara para o lado e o passarinho, sem ter onde pousar, caiu na
água!...
— Nooossa! ― exclamou minha irmã.
O passarinho rapidamente bateu as asas
e conseguiu se safar da água, voando para longe.
Por um momento, a Lu ficou observando
um arbusto ao seu lado.
― O que você está olhando, Lu?
― Tem duas lilé... libé... ah, tem dois
bichinhos desses grudados aqui!
― Deixa eu ver. Nossa: duas libélulas
cruzando!
― Cruzando?
Nisto, ela se agachou devagarzinho e
apontou seu dedinho indicador para o casal.
— Olha, Vinito: parece um coração!
O tal coração era o desenho resultante da união dos corpos das as libélulas ao copularem (boa observadora, essa minha irmã!)
O tal coração era o desenho resultante da união dos corpos das as libélulas ao copularem (boa observadora, essa minha irmã!)
― É meeeeesmo, Lu! Que legal!
Efeito Libélula...
Apesar do vento, mansa caía a tarde sobre a Usina. Vindas lá do quintal, as pombas lá do nosso pombal surgiram acima do rio e passaram a executar voos circulares como um balé muito bem organizado ─ todo mês de abril é assim, assim... Seria um ritual saudando a chegada do Outono? Estranhamente, o vento cessou e plácida se tornou a tarde naquele breve instante. A tona alisou-se feito um espelho ─ assim, assim, límpida e praticamente imóvel se mostrou a cintilante lâmina d’água, e com tal perfeição que as andorinhas, em voos rasantes, pareciam apostar corrida com a própria imagem refletida abaixo de si; mas, bastava encostarem os biquinhos nela para se dessedentar, que a superfície se crispava num borrifo cristalino lindo de se ver. Agachei-me à margem; minha irmã me acompanhou; ambos ficamos, assim, assim, olhando nossos rostos refletidos no espelho de fundo limoso antes que o retorno da brisa viesse distorcê-los: duas crianças, dois reflexos... ambos fascinados com aquilo tudo, mas minha irmã, bastava notar seu semblante e adivinhar que mil ideias cor-de-rosa enchiam-lhe a imaginação...
─ Queria beber água que nem as andorinhas, Nito.
─ Mas como, Lu, se você não pode voar?
─ Assim, assim!
E fazendo uma concha com suas pequeninas mãos, apanhou um pouco d’água.
─ É, Lu, as andorinhas bebem água na concha do bico: assim, assim...
Nisto, uma libélula baixou a tona d’água tocando-a com a extremidade de seu abdômen.
─ Olha, Nito, a lilé... libé...
─ Libélula, Lu...
─ Ela está bebendo água?
─ Beber água pela bunda, Lu?!
─ Mas o que ela tá fazendo, então?
─ Deve estar lavando a bunda...
Súbito, os ventos da bonança pareceram mudar de direção. Já não eram os sussurros da brisa que chegava até nós tampouco o suave ruflar das asas do Tiziu. Não se sabe vindo de onde, ouvimos um conhecido assovio se elevando ameaçadoramente no espaço.
─ Queria beber água que nem as andorinhas, Nito.
─ Mas como, Lu, se você não pode voar?
─ Assim, assim!
E fazendo uma concha com suas pequeninas mãos, apanhou um pouco d’água.
─ É, Lu, as andorinhas bebem água na concha do bico: assim, assim...
Lava-cu... |
Nisto, uma libélula baixou a tona d’água tocando-a com a extremidade de seu abdômen.
─ Olha, Nito, a lilé... libé...
─ Libélula, Lu...
─ Ela está bebendo água?
─ Beber água pela bunda, Lu?!
─ Mas o que ela tá fazendo, então?
─ Deve estar lavando a bunda...
─ Ih, ih, ih...
Súbito, os ventos da bonança pareceram mudar de direção. Já não eram os sussurros da brisa que chegava até nós tampouco o suave ruflar das asas do Tiziu. Não se sabe vindo de onde, ouvimos um conhecido assovio se elevando ameaçadoramente no espaço.
― Nossa, Lu, será que eu ouvi
direito?!... Será que é quem eu estou pensando?... Acho que é mesmo!
E o tal assovio surgiu num
horário em que ainda era um pouco cedo para ser ouvido!... (há quanto tempo estávamos ali, será que o tal do missing
time havia nos pregado uma peça?!)
― Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii-í!
Antes fosse o assovio de "The
Good, The Bad and The Ugly",
com o Hugo
Montenegro e sua Orquestra,
a famosa música de faroeste que, na época, toda criança procurava imitar
assoviando com as mãos em concha. Melhor assim, pois vai que o Clint Eastwood
inventasse de aparecer ali, ameaçador, com sua capa, seu charuto e... seu
famigerado Colt 45!...
― Pelo amor de Deus, Lu, é o assovio do pai mesmo!
Em instantes, lá em cima surgiu ele, com aquela cara mais ameaçadora que o céu
atrás de si, que, aquela hora, já se mostrava bastante acinzentado (se nesta hora, como Jesus, eu pudesse andar pelas águas, eu atravessaria o tanque mais rápido que um rito de chumbinho). Lá em baixo
estava eu ― o estrupício ― na companhia da querida caçulinha de meu pai, aquela que,
após quatro filhos meninos, foi a sua primeira e única menina... Mal nos viu, colérico, gritou para mim dos altos do barranco:
— Ah, seu Wenilton, seu Wenilton!...
Estremeci:
― Tô perdido, Lu! (Top, top, top...)
Com o olhar fulminante, gesticulando
ameaçadoramente, renovou seus protestos:
— Dio cristo de la madona! O que você está fazendo aí com tua irmã, seu maluco?!
Convém que o meu atento leitor faça
uma ideia clara do que era a situação neste momento crítico. Em meio à uma
forte lufada de vento que chegou a despentear seus cabelos, o neto de italianão
desceu rapidamente o barranco, tomou minha irmã ao colo, e, me pegando pelo
braço, arrancou-me violentamente do banco, no que fui sacudido do mesmo jeito que ele fazia com aquela
coqueteleira ao preparar meia-de-seda quando morávamos lá na cidade...
Com a voz mais áspera e embrutecida
ainda, me segurando firme por uma das orelhas, vociferou:
— Dou-lhe um murro que você nunca mais
se apruma! Seu estrupício! (ainda preferia
o “Seu Wenilton, seu Wenilton!...”).
O nervosismo oriundi, o
olhar colérico, o pavio-curto herdado da linhagem italiana dava o tom do seu
crescente protesto. Seus gritos me invadiam a cabeça e reverberavam feito
bigorna. Nesse momento, tive a certeza de
que uma bela surra me estava reservada para mim quando chegássemos em casa. Se o tal de Efeito Borboleta existe, eu não posso garantir, mas era de se desconfiar que o bater de milhões de asas de libélulas iria provocar uma tempestade em casa...
— Mas
o quê que vocês dois estavam fazendo ali, naquele lugar perigoso, Deus do céu?!
Foi difícil explicar — chorava, gaguejava,
tremia, não articulava bem as palavras.
— Nó-nó-nós esta-ta-vamos ve-vendo o...
— Tava vendo nada, seu estrupício! Você não para
quieto, sempre batendo pernas pelos matos! Parece que tem murbim! (Até hoje eu não sei o que é esse tal de murbim; nem ele... Seria mais um daqueles bichos
monstros do tal de Joan Nieuhoff? Depois eu comento esse sujeito.)
Ainda em frente ao rio, me alertou da
loucura que eu fizera e do sério
risco que
corremos, e foi enfático:
— Nunca mais faça isso de novo, seu irresponsável! Não sabia do perigo que corria?! E a sua irmã ainda é uma
menininha!
— Ma-mas, pa-pai, nó-nós só estávamos
jo-jo-gando pedras no rio!
— Não interessa! Ali é um lugar
perigoso para a idade de vocês!
Suprema ironia: nosso pai, perdido em
nuvens cinzentas de preocupação, veio então estourar a bolha colorida de nossos
sonhos encantados...
É mister que, a esta altura, ouçamos uma
música pertinente, um verdadeiro hit do período: me refiro à tocante "He
Ain't Heavy, He's My Brother", com o grande The Hollies!
* * *
Subimos o barranco com dificuldade, e,
já na estrada, ele se agachou para tirar algumas ramas de capim presas no
chinelinho da Lu. Foi quando houve um instante sem protestos. Aproveitei e, já
mais calmo, tentei também acalmar os “ânimos” de meu pai.
— Pai, porquê se a gente joga uma pedra na terra ela não traça uma linha reta, mas se a gente joga na água ela faz círculos certinhos?
— Não adianta disfarçar com essa
conversinha mole, Wenilton! Lá em casa você vai ver o que eu vou traçar nas
tuas costas!
— Mas, pai, o senhor precisa ter visto
o bando enorme de libélulas que apareceu voando em cima do tanque!
Walter, sob a mira de um amigo. |
— Mas, pai, essa revoada das libé...
— Não me fala nesse bicho! De libélula, já basta a Libélula Deslumbrada do Carlos Imperial no carnaval desse ano!
Enfiei a mão nos bolsos, enterrei o peito no queixo e protestei:
— Pô, pai!
— Não tem Popeye nem Olívia Palito!
Prevendo o pior, fui pela estrada mordiscando a unha do dedo médio.
* * *
Sim (devo repeti-lo?), agora eu me certificava de que ia mesmo levar uma surra ao chegar em casa... (Desnecessário dizer que o meu choro voltou...)
Passando em frente a casa dos Lima, o
Toninho apareceu indo em direção do quintal com uma espingarda. Meu pai
ironizou:
— Aôôô, Joe Buck!
― Joe Buck, o cow-boy do
Perdidos na Noite?! Quem me dera, seu Walter!
― Você não é muito novo, não,
Toninho, para ficar desfilando com essa espingarda para cima e para baixo? Isso é perigoso,
rapaz!
― Eu tenho cuidado e sei usar,
seu Walter. Eu só atiro lá atrás, no Cerradinho.
— Mas o Perdidos na Noite, seu
Walter, que filmão, hein! Fui assistir no Cine Araruna! Foi ver, Walter?
― Sim. Também gostei muito.
― Mas o quê que o Wenilton está
chorando, seu Walter?
— Ele me aprontou uma daquelas
agora! Nem te conto!
* * *
“Evil Ways”...
A Lu, alguns anos depois. |
— Onde
você estava, menininha sapeca?
E a mana, na
mais pura inocência e com voz afetada, respondeu, imitando o tatibitate de sua amiguinha Dani:
— Eu fui zogá pédinha no liu co’o Vinito!...
— Fala direito, sua malandrinha: é
jogar pedrinha no rio que se fala!
— E a gente viu também aqueles bichinhos que voam em cima do rio, as lilé... libé. Ah, não sei dizer, mãe!
— É libélula, aquele insetinho que o
seu pai adora...
― Adora o caramba, Lourdes! Que aqui em casa ninguém
nunca mais toque no nome desse bicho disgramado! ― esbravejou meu pai.
Colérico ainda, o italianão se
encarregou de, prontamente, deixar minha mãe ciente da besteira que eu acabara
de cometer. Em seguida, o veredito final:
— ...e nunca mais faça isso, porque
numa próxima vez você não vai nem imaginar o que te vai acontecer, seu
estrupício!
Fiquei aliviado por ele não me bater, mas, por dias a fio, a sentença ecoou como
uma ameaça em minha cabeça (antes as coisas ficassem por aí...).
* * *
Luciana, Lourdes e Walter, em 1967. |
— Eu já te fa-lei pra vo-cê não se
a-pro-xi-mar da-que-le rio!
Não posso deixar de interromper
momentaneamente a narrativa aqui, para citar aqui que o velho Mark Twain se
referiu à esse curioso modo de advertir as crianças, onde, relembrando uma
certa passagem de sua vida, escreveu que, durante uma aula, a professora brava
consigo pronunciara seu nome “declamado inteiramente e com acento tão pouco animador”...
Então, leitores, como já disse, foi
justamente aí que o tempo fechou!... Após a sova, foi minha vez de soletrar uma
desculpa...
― Mas, mã-mã-e, e-eu só que-que-ria
mo-mostrar pra e-ela o rio...
― Engula esse choro e nunca mais faça
isso, seu estrupício! (Caramba! Agora é moda todo mundo me chamar de estrupício?!)
― Ma-mais eu nã-não fiz por-por mal!...
― Um dia você vai ter filhos iguaizinhos a você, e
vai ver o quanto eu sofro!
(Vale lembrar que, em casa, nenhum de
nós filhos se dirigia aos nossos pais como “papai” ou "mamãe” — era “pai” e
“mãe” e acabou, pois não tinha essas formas mais carinhosas — ou “frescuras” ―
de chamá-los assim, e era só na hora dos choros que repetíamos as sílabas “pa”
ou “ma”, como se viu...)
Por fim, fiquei agachado num cantinho da cozinha, amuado, dedos dos pés e das mãos retesados, encolhido para dentro, engolindo meu choro miudinho...
Minha mãe, mudando o dial do
rádio para lá e para cá, resolveu deixar numa música com uma bela guitarra
suingada e cheia de percussão.
— Quem gosta desse guitarrista
são aqueles dois sobrinhos nossos com o mesmo nome — acrescentou minha
mãe, parecendo deixar sua raiva em suspenso.
— Dois sobrinhos nossos com o
mesmo nome! Quem são eles? — perguntou meu pai.
— O Gil da tua irmã Naide e o
Gil da minha irmã Cida...
— Olha só! E de quem é essa
música diferente?
Neste momento, a música terminou
e o locutor anunciou: "Acabamos de ouvir Evil Ways com o guitarrista Santana, uma das estrelas do Festival de Woodstock".
— “Evil Ueis”: o que será que significa isso, Lourdes?
— Não me pergunte...
* * *
Dragonflies em voo rasante. |
Mais calmo, vendo que as
ameaças cessaram, também saí para o quintal. Súbito, surgido como que do nada e troando feito uma descarga de trovão, dois
jatos deram um belo rasante por sobre a Usina. Junto com a pastora Laika,
que correu assustada para dentro da lavanderia, levamos um grande susto, e meu
pai, que quase havia derrubado uma gaiola na surpresa, perguntou:
— Nossa, que jatos são esses?!
Corri até os altos do
galinheiro e pude vê-los se afastando no céu ― reconheci-os de imediato:
— São os Dragonfly, pai, jatos
que a Força Aérea de Pirassununga comprou três anos atrás para os pilotos
treinarem.
— Ah, sim, aqueles jatos que
ficam aqui em cima da Usina treinando o dia todo.
— Iiiisso!
― E que barulhão fazem esses bichos!
Antes fossem aviões de carreira, aviões que passam bem alto.
― Aviões de carreira?! ― perguntei eu sem resposta.
— Mas como você sabe dessas coisas,
Wenilton?
— Foi o Carlos Tonholi que me contou, pai, aquele amigo meu lá da Granja Paulista.
— Hammm... mas qual é mesmo o nome do jato?
— Dragonfly.
— Dragonflai?! E o que significa esse
nome esquisito?
— Libélula...
— Libélula?!
— Sim: li-bé-lu-la... Disse isso e fui saindo de mansinho em direção ao
galinheiro...
E a Luciana, que estava lá na porta da
cozinha nos ouvindo, balbuciou:
― Lilé... Libé... aaaaah, pai, eu não
consigo falar!
O italianão sorriu. O estrupício
idem...
“Ninguém
põe a mão nessa porcaria!”
Como eu ia dizendo... ia nada,
pois isto já é outra história!...
Bem, caros amigos, àqueles que
tiveram a suprema paciência de me acompanhar até este ponto de minha narrativa,
esclareço que esta história, complementar da anterior, se deu nesta mesma época
que repousa no silêncio das velhas idades, e, por sinal, no mesmo recanto do tanque do meio, e, creio, história não menos curiosa (se é que a outra
foi...).
Antes de mais nada, gostaria de dizer que é
estranho que sempre que eu pense ou leia sobre a evolução da raça humana ou a
saga dos peixes saídos das águas primordiais para dar origem às criaturas
terrestres, é justamente neste discreto recanto de rio que me
reporto e coloco meu pensamento.
À segunda história, então, mas, antes, permitam-me contar uma curiosa historiazinha ocorrida nesta época!
* * *
Foi próximo desse pesqueiro
também, ali junto à estrada principal onde havia um despejo de águas vindas da
colônia, que, certa vez, eu, meus irmãos e outros meninos vimos pela primeira
vez um preservativo. E muito diferente dos modernos, feito de uma borracha
grossa e vermelha, com a borda enrolada mostrando a cor branca interna. Também
diferentemente de hoje, se não me falha a memória, ela não era dobrável, mas um
tubo comprido, armado e flexível, lembrando muito essas modernas luvas de
segurança de látex amarelo, cujos dedos permanecem como que cheios de ar.
Eu, até então, não sabia o que
era um preservativo, e quando descemos o barranco para vê-lo de perto, o Celso,
que era o menino mais velho e vivido, alertou:
― Ninguém põe a mão nessa
porcaria! Isso é camisinha!
― Camisinha?!
― Sim, camisinha de pôr no pau pra evitar fazê nenê! E deve ser usada e estar toda suja por dentro!
― Credo!
A "bolinha preta" do filme Laranja Mecânica |
Depois, o Celso, mesmo ignorando que tipo de preservativo era aquele, se encarregou de nos
passar mais detalhes sobre o assunto, assunto picante aliás, que a molecada ouviu
curiosa e de olhos arregalados, todos sentados à sombra de um pé de Cordia que havia ali...
Hoje, pesquisando sobre este método anticonceptivo, fui descobrir que aquele estranho preservativo caído às margens do rio era do tipo feminino, de uso interno mulheres ― por isso aquele formato armado ―, que, ironicamente, lembrava o nariz usado pelo Malcolm McDowell no filme “Laranja Mecânica” (Clock Orange,que estrearia dois anos depois), naquela polêmica cena de estupro em que a hilária censura brasileira se encarregou de colocar uma bolinha preta como tapa-sexo na deslumbrante loiraça que era a Adrienne Corri...
Hoje, pesquisando sobre este método anticonceptivo, fui descobrir que aquele estranho preservativo caído às margens do rio era do tipo feminino, de uso interno mulheres ― por isso aquele formato armado ―, que, ironicamente, lembrava o nariz usado pelo Malcolm McDowell no filme “Laranja Mecânica” (Clock Orange,que estrearia dois anos depois), naquela polêmica cena de estupro em que a hilária censura brasileira se encarregou de colocar uma bolinha preta como tapa-sexo na deslumbrante loiraça que era a Adrienne Corri...
Mas, à segunda história, então!
Hóspedes
em tratamento
Tios João e Antonia |
* * *
Tudo se iniciou quando essa prima minha
adoeceu de algo que parecia ser uma febre fraca mas intermitente, e minha tia
levou-a aos cuidados do médico Dr. Sebastião Jair Mourão, o mesmo que, poucos
anos depois, viria a ser meu pediatra também. Lembro-me de minha mãe me
levando, menino ainda, à consultas com este médico naquele pequeno consultório
ainda existente situado ali na rua Marechal Deodoro, Nº 247 (dá uma passada lá!).
Numa destas vezes, na sala de espera estava
um moço que puxou do bolso uma caixinha amarela de pastilhas de Mentex. Mal o vi se deliciando com
aquela tentação e a caixinha passou a ser alvo de meus olhares cobiçosos...
Notando o que acontecia, ele sorriu, tirou uma delas da caixinha e me ofereceu.
Não precisou oferecer duas vezes: voei em direção de sua mão estendida...
Minha mãe, surpreendida e um pouco
constrangida, agradeceu a gentileza e disse a mim:
―
Wenilton, como é mesmo que se diz ao moço?
Rapidamente, eu virei-me para ele e
perguntei:
― Tem
mais?
Ambos riram sem que eu soubesse o por quê.
Voltando do pediatra e subindo a rua José Bonifácio:
─ Olha só, Wenilton: nós dois aqui, com muito sacrifácio, vamos subindo a rua José Bonifício...
─ Nossa, mãe, o que você disse!
─ Nós dois, com muito sa-cri-fá-cio, vamos subindo a rua José Bo-ni-fí-cio.
─ Ah, mãe, não entendi mesmo!
─ Não percebeu que eu troquei partes das palavras? Sacrifício e Bonifácio, que ficou sacrifácio e Bonifício?
─ Ah, sim, mãe, agora entendi, mãe! Que legal!
─ Você nunca ouviu aquela antiga, Wenilton?
─ Qual?
─ “Bolei as trocas”.
─ Não, mãe, nunca tinha ouvido.
─ “Bolei as trocas” é “Troquei as bolas”. Percebeu a troca de sílabas?
─ Ah, sim, mãe, que bacana! Vou falar para meus amigos!
Achava graça nesse consultório do pediatra, pois olhando de fora a simplicidade de sua pequenina entrada, ele me remetia à bonita casinha de tijolos à vista que havia no “Hermínio Ometto”, parque infantil onde eu e meus dois irmãos mais velhos estudamos quatro anos antes, casinha esta que não era bem uma “casinha de brincadeira”, mas uma verdadeira construção de alvenaria; porém, bem entendido, de pequenas dimensões. Era nesta singela casinha que os meninos e meninas brincavam de “marido e mulher” naqueles saudosos tempos pueris.
Esse mesmo lance de “miniaturização” parecia se dar no consultório do Dr. Arnaldo Baptistella de Oliveira, um dentista, que se situava ― perdoem-me novamente a precisão — na rua Visconde do Rio Branco, Nº 303 (ah, dá uma passada lá), pois tinha ele também um consultório de pequenas proporções, um cubículo espremido entre duas casas, que parecia se feito à medida e gosto das crianças. Mas, deixemos de divagações arquitetônicas e voltemos à história.
O dentista me faz uma pergunta:
— Como é o seu nome, meninão?
— Wenilton.
Minha mãe intervém:
— Seja mais educado ― Diga "doutor"!
— Tá bom, mãe! Meu nome é doutor Wenilton!
─ Presta atenção, Wenilton: sempre que alguém te oferecer algo de comer, um doce ou um salgadinho, diga sempre: “Não, muito obrigado”, e só aceite se insistirem muito.
Na sala de espera, uma pessoa oferece uma bala:
─ Não, muito obrigado, mas se a senhora insistir muito eu aceito.
* * *
─ Olha só, Wenilton: nós dois aqui, com muito sacrifácio, vamos subindo a rua José Bonifício...
─ Nossa, mãe, o que você disse!
─ Nós dois, com muito sa-cri-fá-cio, vamos subindo a rua José Bo-ni-fí-cio.
─ Ah, mãe, não entendi mesmo!
─ Não percebeu que eu troquei partes das palavras? Sacrifício e Bonifácio, que ficou sacrifácio e Bonifício?
─ Ah, sim, mãe, agora entendi, mãe! Que legal!
─ Você nunca ouviu aquela antiga, Wenilton?
─ Qual?
─ “Bolei as trocas”.
─ Não, mãe, nunca tinha ouvido.
─ “Bolei as trocas” é “Troquei as bolas”. Percebeu a troca de sílabas?
─ Ah, sim, mãe, que bacana! Vou falar para meus amigos!
* * *
Esse mesmo lance de “miniaturização” parecia se dar no consultório do Dr. Arnaldo Baptistella de Oliveira, um dentista, que se situava ― perdoem-me novamente a precisão — na rua Visconde do Rio Branco, Nº 303 (ah, dá uma passada lá), pois tinha ele também um consultório de pequenas proporções, um cubículo espremido entre duas casas, que parecia se feito à medida e gosto das crianças. Mas, deixemos de divagações arquitetônicas e voltemos à história.
O dentista me faz uma pergunta:
— Como é o seu nome, meninão?
— Wenilton.
Minha mãe intervém:
— Seja mais educado ― Diga "doutor"!
— Tá bom, mãe! Meu nome é doutor Wenilton!
* * *
Na sala de espera, uma pessoa oferece uma bala:
─ Não, muito obrigado, mas se a senhora insistir muito eu aceito.
* * *
Achava graça nesse consultório, pois olhando de fora a simplicidade de sua pequenina entrada, ele me remetia à bonita casinha de tijolos à vista que havia no parque infantil “Hermínio Ometto”, onde eu e meus dois irmãos mais velhos estudamos quatro anos antes, casinha esta que não era bem uma “casinha de brincadeira”, mas uma verdadeira construção de alvenaria, porém, bem entendido, de pequenas dimensões. Era nesta singela casinha que os meninos e meninas brincavam de “marido e mulher” naqueles saudosos tempos pueris. Esse mesmo lance de “miniaturização” parecia se dar no consultório do Dr. Arnaldo Baptistella de Oliveira, um dentista, que se situava ? perdoem-me novamente a precisão — na rua Visconde do Rio Branco, Nº 303 (ah, dá uma passada lá), pois tinha ele também um consultório de pequenas proporções, um cubículo espremido entre duas casas, que parecia se feito à medida e gosto das crianças. Mas, deixemos de divagações arquitetônicas e voltemos à história.
O dentista me faz uma pergunta:
— Como é o seu nome, meninão?
— Wenilton.
Minha mãe intervém:
— Seja mais educado ? Diga "doutor"!
— Tá bom, mãe! Meu nome é doutor Wenilton!
Mas deixemos de divagações e voltemos à história em questão.
Minha tia, instada sobre o problema da filha, disse ao médico que para saber se a menina estava com febre não costumava colocar a mão na testa, como normalmente se fazia, mas encostava seu no rosto no dela, e, assim, sutilmente, percebia sua temperatura alterada, o que surpreendeu o doutor.
— Ela está tossindo?
— Sim, ficou vários dias tossindo, mas melhorou um pouco. Parecia aquela tal de “tosse comprida”.
Após o diagnóstico, o doutor opinou:
— Ela está com coqueluche, mas nada de mais grave, dona Antonia.
— Coqueluche...
— Sim, mas uma forma benigna de coqueluche, onde os acessos são mais fracos;
— Antes, doutor, ele tomou muito antibiótico, mas eles não estavam fazendo efeito.
— Acho que eles não foram necessários nesses caso, mas uma coisa muito boa seria levar tua filha lá no Campo da Aviação e...
— Campo da Aviação! Como assim, doutor?!
— Seria bom para ela fazer o “voo da coqueluche”.
— Mas voar de avião para curar doença?!
— Sim, sim, dona Antonia: isto seria muito bom para o pulmão dela. Ela iria fazer um voo de uma hora a 3 mil metros de altitude. É que o ar rarefeito das alturas baixa a pressão e ajuda a melhorar o aparelho respiratório.
— Mas quanto custaria essa hora de voo, doutor?
— Em torno 50 cruzeiros, dona Antonia.
— Nossa, doutor, eu não tenho todo esse dinheiro não! E mais, doutor, eu nunca voei, mas mesmo assim tenho pavor de avião!
— Na verdade, dona Antonia, esses voos deveriam ser grátis. Até uns 20 anos atrás, a Força Aérea fazia voos grátis de voo da coqueluche, e cedia grandes aviões que levavam grupos de crianças doentes para o tratamento, mas aqui em Araras, não sei se fazem isso e se cobram se fazem.
Com a negativa de minha tia, o médico recitou remédios e orientou então que ela deveria levar a menina por uns tempos para um lugar longe da cidade, onde houvesse muita natureza e ar puro, que isto ajudaria na recuperação.
O dentista me faz uma pergunta:
— Como é o seu nome, meninão?
— Wenilton.
Minha mãe intervém:
— Seja mais educado ? Diga "doutor"!
— Tá bom, mãe! Meu nome é doutor Wenilton!
Mas deixemos de divagações e voltemos à história em questão.
Minha tia, instada sobre o problema da filha, disse ao médico que para saber se a menina estava com febre não costumava colocar a mão na testa, como normalmente se fazia, mas encostava seu no rosto no dela, e, assim, sutilmente, percebia sua temperatura alterada, o que surpreendeu o doutor.
— Ela está tossindo?
— Sim, ficou vários dias tossindo, mas melhorou um pouco. Parecia aquela tal de “tosse comprida”.
Após o diagnóstico, o doutor opinou:
— Ela está com coqueluche, mas nada de mais grave, dona Antonia.
— Coqueluche...
— Sim, mas uma forma benigna de coqueluche, onde os acessos são mais fracos;
— Antes, doutor, ele tomou muito antibiótico, mas eles não estavam fazendo efeito.
— Acho que eles não foram necessários nesses caso, mas uma coisa muito boa seria levar tua filha lá no Campo da Aviação e...
— Campo da Aviação! Como assim, doutor?!
— Seria bom para ela fazer o “voo da coqueluche”.
— Mas voar de avião para curar doença?!
— Sim, sim, dona Antonia: isto seria muito bom para o pulmão dela. Ela iria fazer um voo de uma hora a 3 mil metros de altitude. É que o ar rarefeito das alturas baixa a pressão e ajuda a melhorar o aparelho respiratório.
— Mas quanto custaria essa hora de voo, doutor?
— Em torno 50 cruzeiros, dona Antonia.
— Nossa, doutor, eu não tenho todo esse dinheiro não! E mais, doutor, eu nunca voei, mas mesmo assim tenho pavor de avião!
— Na verdade, dona Antonia, esses voos deveriam ser grátis. Até uns 20 anos atrás, a Força Aérea fazia voos grátis de voo da coqueluche, e cedia grandes aviões que levavam grupos de crianças doentes para o tratamento, mas aqui em Araras, não sei se fazem isso e se cobram se fazem.
Com a negativa de minha tia, o médico recitou remédios e orientou então que ela deveria levar a menina por uns tempos para um lugar longe da cidade, onde houvesse muita natureza e ar puro, que isto ajudaria na recuperação.
O primeiro lugar que veio à cabeça de minha
tia foi a casa de sua cunhada, a Maria de Lourdes (oh, sim, aquela das chineladas
compassadas...) e sua casa na Usina Palmeiras.
―
João, já decidi: eu vou conversar com a Lourdes
e ver se posso passar um dias lá na Usina para tratar da Cássia. Isso
foi por decisão do médico: tem de ser um lugar com natureza e ar puro.
―
Tudo bem, Antonia. Melhor lugar não há, mas, fica tranquila, querida, que eu me
viro aqui, eu e o Júnior.
* * *
Ônibus da Usina Palmeiras, 1974 |
Abraçando-o, perguntou-lhe:
— Oi,
Weber, há quanto tempo! E aí, está gostando das aulas, da escola, dos
amiguinhos?
― Sim
tia, mas a aula acabou cedo, hoje. Dito isto, ele franziu as sobrancelhas e
emendou:
—
Olha, tia: eu gostei muito dos novos amiguinhos, mas a professora, chiii, ela
não sabe nada!
— Como assim: “não
sabe nada”, Weber?
— É que ela fica o
tempo todo perguntando de tudo para a gente, tia!
Minha tia sorriu abertamente
— Eu estava com muita saudade da tia.
Após minha mãe levar sua cunhada até o chamado “tanque do meio”, deixou-a ali e voltou para seus afazeres. Logo que se aproximou da margem, minha tia encontrou o hortelão Seu Anjo, que se dirigia à sua horta, e foi logo perguntando:
─ Bom dia, meu senhor, um momento! Uma pequena informação, por favor.
─ Poi, não, senhora.
─ Meu nome é Antonia.
─ Bom dia, dona Antonia! Prazer em conhecê-la! Em que posso servi-la?
─ Me diz uma coisa, Seu Anjo: minha cunhada, a Lourdes Daltro, me falou que o clima aqui da Usina é muito bom? O que o senhor me diz?
─ Ah, eu conheço a dona Lourdes, e ela falou a verdade: o clima aqui é muito bom mesmo.
─ E é verdade mesmo que esse ar daqui pode curar as pessoas?
─ Sim, é o que todo mundo aqui diz: que cura mesmo! Para a senhora ver, dona Antonia, eu mesmo, quando eu cheguei aqui, os meus olhos mal se abriam... eu só tinha um fio de cabelo no cocoruto e num falava uma palavrinha sequer! E mais: minha mãe tinha que me carregar no colo pra cima e pra baixo!
─ Que maravilha, Seu Anjo! ─ exclamou minha tia, impressionada ─ Que recuperação incrível, a tua! Mas quando foi que o senhor chegou aqui na Usina?
E o bom hortelão, respondeu sorrindo:
─ Eu nasci aqui, dona Antonia…
─ Há, há, há, há, há... Boa piada, essa, Seu Anjo!
— Eu estava com muita saudade da tia.
* * *
Após minha mãe levar sua cunhada até o chamado “tanque do meio”, deixou-a ali e voltou para seus afazeres. Logo que se aproximou da margem, minha tia encontrou o hortelão Seu Anjo, que se dirigia à sua horta, e foi logo perguntando:
─ Bom dia, meu senhor, um momento! Uma pequena informação, por favor.
─ Poi, não, senhora.
─ Meu nome é Antonia.
─ Bom dia, dona Antonia! Prazer em conhecê-la! Em que posso servi-la?
─ Me diz uma coisa, Seu Anjo: minha cunhada, a Lourdes Daltro, me falou que o clima aqui da Usina é muito bom? O que o senhor me diz?
─ Ah, eu conheço a dona Lourdes, e ela falou a verdade: o clima aqui é muito bom mesmo.
─ E é verdade mesmo que esse ar daqui pode curar as pessoas?
─ Sim, é o que todo mundo aqui diz: que cura mesmo! Para a senhora ver, dona Antonia, eu mesmo, quando eu cheguei aqui, os meus olhos mal se abriam... eu só tinha um fio de cabelo no cocoruto e num falava uma palavrinha sequer! E mais: minha mãe tinha que me carregar no colo pra cima e pra baixo!
─ Que maravilha, Seu Anjo! ─ exclamou minha tia, impressionada ─ Que recuperação incrível, a tua! Mas quando foi que o senhor chegou aqui na Usina?
E o bom hortelão, respondeu sorrindo:
─ Eu nasci aqui, dona Antonia…
─ Há, há, há, há, há... Boa piada, essa, Seu Anjo!
Dente
de leite
Assim, durante cerca de uma semana, minha
tia e minha prima ficaram morando conosco, e, religiosamente, toda manhã, iam
passar uma horas com a menina às margens do tanque do meio, que era o
lugar onde minha mãe acreditava ser o ar mais fresco e puro ali na colônia de
baixo.
—
Ali, Antonia, no meio daquele verde e daquela água limpa, o ar deve ser dos
melhores. E mais, cunhada: nessa época de entressafra não tem caminhões de cana
rodando por ali.
— Que
bom, Lourdes, que bom. É isso mesmo o que a Cássia precisa.
* * *
E ali, ambas passavam longos momentos, indo
de cá para lá, de lá para cá. Ao sol da manhã, tomado por um princípio de
cerração que se espraiava de leve sobre a superfície da água, tinha esse lugar
como que uma cenografia que remetia à recantos paradisíacos de velhos arraiais
de outrora, arraiais estes só encontrados naquelas tocantes poesias dos mestre
Fagundes Varella.
Isto posto, amigos, antes de nos
aprofundarmos mais na história, eis aqui a trilha sonora ideal para a cenográfica
cena, pérola que fui buscar lá no futuro: “Luz do dia”, do mestre Cláudio
Nucci, belíssima balada campestre que vim a conhecer pouco mais de 10 anos
depois:
“Tudo de novo
Sob a solar luz do
dia
Tudo a renovar
O que vai vir
O que virá para
ficar
Tudo novo sob a luz
Do dia que vem
renovar
Tudo o que ficou
Tudo o que ficar,
fazer,
Sobreviver
Sob a luz do dia
Viva a luz solar”
* * *
Noutro dia, ali pelo meio da manhã, com o Sol fraco ainda, minha tia e sua filha desceram novamente para a margem do tanque. Lindo era o dia e a atmosfera desse dia luminoso e sereno, céu de brigadeiro, temperatura agradabilíssima.
Diante do tanque, a Cássia exclamou:
—
Olha, mãe, os passarinhos em cima do rio!
A pequena Cássia Rocha, quatro anos antes desta história |
—
An-do-ri-nha...
— Isso,
filha: andorinha. Sabia que ter andorinha morando no telhado da casa da gente,
traz sorte, Cássia?
—
Sorte. O que é sorte, mãe?
—
Sorte?... bem... olha, filha: quando teus dentinhos de leite caírem, eu vou
jogá-los em cima do telhado pedindo pras andorinhas que aparecerem trazerem
outros dentinhos bons. Isso é sorte.
—
Éééé?...
* * *
Não sei se minha tia exagerava, ou se
queria agradar minha mãe pela cortesia da estadia, que cheguei ouvi-la dizer:
―
Nossa, Lourdes, aquele ar fino e puro do tanque parece que entra na alma da
gente!
—
Éééé?...
Em que pese o novo exagero, minha tia foi
até poética nas palavras...
—
Lourdes do céu, e aquela reverberação do sol nas águas, aquela cerração
finíssima se espalhando sobre as águas!... E a luz: a luz parecia palpável!
—
Nossa, Antonia, o que você andou lendo para falar bonito e difícil assim? Foi
Fagundes Varella, foi?
Django
usineiro...
O motorista Lima. |
Assim, durante esta semana, pouco depois
das oito da manhã, lá estavam minha tia e sua filha, descontraindo-se à beira
do tanque.
Ocorre que mal o Lima retornava de sua
viagem à cidade, notava que ambas ficavam perambulando por ali.
Nesta época, o Lima tinha uma plantação de
milho no terreno ao lado de sua casa. Assim, mal ele adentrava sua casa, corria
para uma das janelas laterais e ali se punha a vigiar discretamente tentando
descobrir o que aquela mulher desconhecida fazia ali com uma criança.
Mas acontece que, não se sabe como, minha
tia percebeu que sempre naquela hora o motorista ficava ali na janela “como
quem não quer nada”, e não viu coincidência nisto, que seus olhares pareciam
sempre inquiridores, mais, inquietantes até. Com a insistência,
começou a ficar cismada, até que um dia o homem apareceu na janela se
insinuando com uma espingarda à tiracolo, e ficou ali em atitude meio que intimidadora.
Imediatamente, minha tia pegou sua filha e
voltou para nossa casa. Tão logo entrou foi ter com minha mãe e dar ciência do
ocorrido.
—
Lourdes, não sei não, mas acho que o seu vizinho Lima está me interpretando
mal.
—
Como assim, cunhada?
— É
que...
Meu pai, que ouviu a história, ironizou:
—
Espingarda?! O Lima?! Há-há-há... Acho que o homem andou assistindo o filme do
Django lá na cidade!...
― O
caso é sério, Walter! Interviu minha mãe.
Indignada, no mesmo instante foi ter com o
homem. Este, ao saber o porquê da permanência delas ali, se desculpou
sinceramente e disse que estava agindo assim porque imaginou que, sem saber que
era nossa tia, ela estivesse ali roubando milho.
—
Nããão, Lima, não é nada disso! A minha sobrinha está em tratamento de saúde
e...
Wight is wight...
* * *
Desfeito o mal-entendido, no dia seguinte
minha tia voltou à estância, digo, o tanque do meio, mas, novamente, lá
estava o Lima à janela, mas desta vez debruçado no peitoril e (sem espingarda,
naturalmente...) com uma visível cara de arrependido, como que querendo se
desculpar... Minha tia, porém, magoada que ficara, não quis saber de conversa,
e mal conseguiu encará-lo... Virou a cara e se foi.
—
Django!... humpf!...
—
Di-jan-go.
Soletrou a Cássia…
A
cura
O "tanque do meio", em 1974 |
― Os
ares dessa Usina te fizeram bem, hein, menina! Abençoado lugar!
—
Di-jan-go.
— O
que a menina disse, dona Antonia?
—
Nada, nada...
* * *
Nesta época, ainda não havia sido
construído pouco acima e ao lado do tanque do meio as leiras que recebiam o
fétido vinhoto vindo da destilaria da Usina, o que talvez poderia comprometer o
tratamento de minha prima, uma vez que o cheiro era muito forte e até
nauseante.
Está certo: não se podia encontrar nos ares
usineiros um valor terapêutico semelhante ao do salutar clima de Campos de
Jordão ― longe disso ―, mas, em época de entressafra (a safra começaria em
maio), quando não havia queimadas nem as chaminés não deitavam fumo pelos ares,
e muito menos os caminhões que ao vir descarregar cana na Usina levantavam um
poeirão, os ares ali eram no mínimo bons e saudáveis. Assim, não é de se
descartar que uma suposta salubridade do lugar havia colaborado mesmo na cura
da menina.
Café
com leite
Retornamos ao tanque dias depois eu, meu
pai e meus irmãos, incluindo minha irmã. Íamos levar o nosso cão, a pastora Laika, para tomar uns ares, digo, nadar... Era um domingo à tarde.
Nisto, passou um negro sorridente largando poeira num
Corcelzinho branco, que buzinou e acenou para o meu pai:
― Faaaala,
Vartão!
Meu pai não o reconheceu.
―
Nossa, será que era o Marinho?
― Que
Marinho, pai? O filho da minha madrinha, a tia Laza?
―
Nããão, seu estrupício!
A Luciana interviu:
― É aquele
cavalo marinho lá do rio, Vinito?
Aí foi meu pai que interviu...
—
Vocês não viram que era um negão?!
― É
que eu estava olhando para a Laika no tanque... — me expliquei.
― E você acha, Wenilton, que teu primo tem idade para dirigir?! Nem carrinho de brinquedo acho que ele dirige direito!...
― E você acha, Wenilton, que teu primo tem idade para dirigir?! Nem carrinho de brinquedo acho que ele dirige direito!...
― Tá
bom, pai... (meus
irmãos mais velhos riram).
―
Acho que era um jogador de futebol lá da cidade que eu conheço. Pelo jeito, vai
jogar aí na Usina.
* * *
Arlete Salles e Tony Tornado |
Coincidentemente, nesta época, um exemplar
da revista Fatos & Fotos de março
de 1969, trazia um polêmico tema: "Negros que se casam com brancas"
se referindo ao assunto. Pouco depois, daria grande ibope o casal Tony Tornado
e Arlete Salles, ela, uma belíssima atriz, e ele, o futuro cantor que ganharia
o V Festival da Canção com o hit BR-3, no ano seguinte, em outubro de
1970.
Mas voltemos a Campos do Jordão, digo, ao “tanque do meio"...
―
Será que é o Marinho mesmo naquele Corcelzinho que passou, pai? ― perguntou o
Wagner.
― Só
indo lá no jogo para saber, mas se é ele mesmo, esse negão boa-pinta aí é cheio
de ganhar umas loironas lindas lá na cidade.
— Já
ouvi falar dessa história, pai. — acrescentou o Wagner.
Pelé e Rosemari, 1966 |
―
Verdade, pai.
―
Depois que ele se casou uns quatro anos atrás com o Rosemari, aí parece que o gelo
foi quebrado de vez mesmo, e a negada, encorajada por ele, começou a fazer a
festa!
― Que
Rosemary, pai? Aquela loirona cantora da Jovem Guarda?
―
Nããão, Waltinho! Essa era uma morena bonita, acho que lá de Santos, uma
jornalista.
—
Éééé?...
* * *
Giovanna e Germano |
No ano seguinte ao casamento do Pelé, houve um outro caso que deu enorme ibope, o do também jogador de futebol
Germano que se casou com a condessa Giovanna Augusta, herdeira de uma poderosa
e tradicional família da Itália. Germano fora jogar no Milan após ter
deixado o
Flamengo em 1962, e ao ficar famoso por lá atraiu a atenção da condessa. A
família foi contra o enlace, mas, mesmo assim, ele foi destaque na imprensa internacional.
Rosemary e Simonal, Vera Fischer e Erlon Chaves
|
E, no Brasil, a coisas se
incrementaria deveras na década seguinte, com grandes artistas desfilando com
as mais belas e famosas loiras do País: de um lado, o Wilson Simonal com a
cantora Elizabeth, de outro, o maestro Erlon Chaves com a ex-Miss Brasil — sim
amigos, a loira platinada Vera Fischer, e, bem depois, novamente o Pelé, desta
vez com a Xuxa!...
Assim, o gelo eterno estava
definitivamente quebrado, seja pelos famosos do mundo musical e das novelas,
sejam pelos do futebol!...
“Os discos voadores prometeram voltar a São Paulo”
John Lennon e Yoko Ono, nus pela paz... |
Minha mãe, que havia chegado a pouco,
ouvindo a conversa, resolveu opinar:
―
Mas, Walter, o caso deu ibope igual ao do casal do célebre 25 de março de 1969?
― Que
casal do 25 de março?
― Aquele casal dos Beatles, não lembra?
― Aquele casal dos Beatles, não lembra?
― Ah, o tal do John Lennon e aquela
japonesinha mal-ajambrada?
―
Issoooo: a Yoko Ono!
Meu pai ficou curioso:
― E o
que esses dois fizeram que deu polêmica? É porque ele era branco e ela
japonesa? Casamento interracial?
―
Nãããão, Walter! Não tem nada a ver!...
―
Porquê, então?
― Não
lembra que os dois ficaram nus protestando pela paz, contra a Guerra do
Vietnam?
― Ah,
é, havia me esquecido! Mas cá entre nós, hein Lourdes: se existe maior exemplo
de que o amor é cego, o John Lennon ganha disparado nessa!...
― Que
exagero, Walter! Eu até que acho ela bonitinha.
― Mas
aquela bundinha murcha da foto... hummm...
― Que
maldade, Walter!
― Que revista é esta aí na tua mão?
― Que revista é esta aí na tua mão?
― A
Fatos e Fotos.
― Deixa-me ver a capa. Ah, o tal dos Beatles!...
― Deixa-me ver a capa. Ah, o tal dos Beatles!...
― Deixa
eu ver também, mãe!
Mal li um dos enunciados da capa, exultei:
― É
verdade isso, mãe?!
― Verdade o quê?
― O que está escrito aqui: “Os discos voadores prometeram voltar a São Paulo”.
― Verdade o quê?
― O que está escrito aqui: “Os discos voadores prometeram voltar a São Paulo”.
― Eu
não li ainda.
―
Então pode ser verdade?
―
Depois você lê e fica sabendo.
― Vou
ler já, mãe!
— Sabia
que aquela novela nova da TV Excelsior, Wenilton, “Os Estranhos”, fala de
discos voadores?
—
Éééé?...
— E
sabe que em está no elenco, Walter? Nada mais, nada menos que o... Pelé!
— O
Pelé ator!... E o que ele é na novela? Um marciano?
— Se
interessou em assistir a novela, Wenilton, já que ela fala dos discos voadores
que você tanto gosta?
— Não,
mãe. Prefiro assistir “Os Invasores” no Canal 4.
— E eu prefiro assistir o Pelé no futebol mesmo! — exultou meu pai...
— Aliás, mãe, se a senhora for comprar outra Fatos e Fotos, aproveita e compra para mim um gibi dos “Os Invasores”.
— Mãe, eu estava pensando um sia desses se algum dia vamos ter um astronauta negro. O Tonholi falou para mim que tinhanegros trabalhando na Nasa desde que ela surgiu, e quem foi responsável por levar o primeiro astronauta dos Estados Unidos em órbita da Terra foram três cientistas negras, que fizeram todos os cálculos matemáticos para que a viagem desse certo. Foi através delas o astronauta John Glenn foi ao espaço em 1962.
— Olha só que legal!
(Ano mais tarde, vim a saber que no ano em que eu nasci — ou seja, no ano da graça de 1961! —, o então vice-presidente Lyndon Johnson criou projetos para a Nasa visando diminuir a segregação e recrutar funcionários afro-americanos para os programas espaciais)
— Mas, peraí, Wenilton: o primeiro a entrar em orbita da Terra não foi o russo Yuri Gagarin?
— Sim, sim, mãe, mas isto foi em 1957.
— Então os Estados Unidos perderam a corrida espacial? — perguntou meu pai.
— Sim, pai, mas recuperaram depois que que chegaram primeiro na Lua.
— É surpreendente que, nos Estados Unidos, país tão racista, havia negros trabalhando com foguetes.
— É, o Tonholi falou desse racismo, e disse que as cientistas e trabalhadores negros não podiam usar os mesmos banheiros dos brancos, e até ganhavam menos que os brancos.
— Brincadeira!
— Ele falou também que aquele que seria o primeiro astronauta negro morreu num acidente aéreo dois anos atrás.
— Caramba!
— Você falou, Wenilton, se, um dia, vamos ter uma astronauta negro um dia, mas...
Meu pai interrompeu minha mãe:
— Olha o Pelé: do jeito que está subindo, logo-logo ele vai estar estrelando no cosmos.
Mas, basta de divagações, meus caros amigos, e vamos pegar leve agora e colocar um ponto final nesta longa história.
— Aliás, mãe, se a senhora for comprar outra Fatos e Fotos, aproveita e compra para mim um gibi dos “Os Invasores”.
Pelé no cosmos...
John Glenn e a Mercury 7, 1962 |
— Olha só que legal!
(Ano mais tarde, vim a saber que no ano em que eu nasci — ou seja, no ano da graça de 1961! —, o então vice-presidente Lyndon Johnson criou projetos para a Nasa visando diminuir a segregação e recrutar funcionários afro-americanos para os programas espaciais)
— Mas, peraí, Wenilton: o primeiro a entrar em orbita da Terra não foi o russo Yuri Gagarin?
— Sim, sim, mãe, mas isto foi em 1957.
— Então os Estados Unidos perderam a corrida espacial? — perguntou meu pai.
— Sim, pai, mas recuperaram depois que que chegaram primeiro na Lua.
— É surpreendente que, nos Estados Unidos, país tão racista, havia negros trabalhando com foguetes.
— É, o Tonholi falou desse racismo, e disse que as cientistas e trabalhadores negros não podiam usar os mesmos banheiros dos brancos, e até ganhavam menos que os brancos.
— Brincadeira!
— Ele falou também que aquele que seria o primeiro astronauta negro morreu num acidente aéreo dois anos atrás.
— Caramba!
— Você falou, Wenilton, se, um dia, vamos ter uma astronauta negro um dia, mas...
Meu pai interrompeu minha mãe:
— Olha o Pelé: do jeito que está subindo, logo-logo ele vai estar estrelando no cosmos.
Mas, basta de divagações, meus caros amigos, e vamos pegar leve agora e colocar um ponto final nesta longa história.
Anjo
tutelar
Ao centro, o pesqueiro em 1975 |
Mas acontece que eu me recordo que havia em casa, desde os tempos da Chácara Daltro lá na cidade, um pequeno quadro, muito comum na época, quadro esse normalmente vendido pelos mascates de outrora, cuja gravura trazia uma clássica cena campestre em que se via duas crianças — quiçá um irmão e uma irmã —, se aproximando perigosamente da margem de um lago para pegar uma pequena bola que havia caído ali. Atrás, certamente invisível, com as mãos estendidas, um anjo da guarda velava pelas inocentes crianças. (Ah, esta estampa está até hoje devidamente guardada em meus preciosos arquivos).
Na verdade, esse anjo era do sexo feminino,
e só não vou escrever anja aqui, que isso é tão feio quanto escrever
presidenta!... Diria então que era uma querubina, aliás, uma bela loira. De
todo modo, se diz que anjos não tem sexo, mas, mesmo assim, não vou discutir
aqui o tal “sexo dos anjos”, e, na verdade, isto nada importa à narrativa.
Citei esta cena do velho quadro apenas para
ressaltar a semelhança de sua gravura que remetia à eu e minha irmã, inocentes
e indefesos, na beira de um rio, e não quis aludir que poderia haver algum anjo
ali velando por nós — nada pressenti e, felizmente, fora a fúria de meu pai e as chineladas de minha mãe, nada de perigoso nos aconteceu.
Como se viu, o único ser vivo que apareceu
ali foi nosso pai, que, com sua figura que pouco tinha da calma de um anjo tutelar, nos
encheu de advertências e medo, levando-nos de volta para casa. Sim, amigos, foi medo brabo
mesmo ― coisa medo de menino sonhador, desses que veem estranhas mariposas em
seus pesadelos ― algo só comparável à aparição do temível “Hooyschrenkel”, o cruzamento
de libélula com gafanhoto ― um daqueles seres fantásticos que o
holandês Joan Nieuhoff disse ter visto no Brasil no distante 1682. Mas, cá entre nós, amigos: será que o tal de murbim de que falava meu pai era um bicho desses ― quiçá um bicho do fundo do rio? Bom, desde que ele não viesse
costurar minha boca em meus sonhos delirantes...
Enfim, quem sabe o meu pai tenha sido algo
como um anjo avesso... Mas, pensando bem, anjo sim foi minha tia que teve a
sapiência de escolher os bons ares da Usina, e, sem se aventurar perigosamente
pela margem do rio, curou definitivamente sua filha.
* *
*
Como se vê, a razão que o Di-jan-...,
digo, a razão que o Lima não teve com sua espingarda, a minha mãe teve de sobra
com seu chinelo surrando o tal de estrupício, este infeliz que vos escreve!...
— Eu já te fa-lei pra vo-cê não se a-pro-xi-mar da-que-le rio!
— Eu já te fa-lei pra vo-cê não se a-pro-xi-mar da-que-le rio!
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* Este capítulo faz parte
do Volume 2 - Sweet memories ― janeiro de 1969 a dezembro de
1970". O livro está em processo de confecção sem prazo para
lançamento.