sábado, 6 de outubro de 2018

VULPECULA ou AS RAPOZINHAS DO CANIL

New star in the sky  Ladrão de galinheiro... ─ Tem rapozinha no forro! ─ De futebol, cabelos, barbas e bigodes ─ Abril de 1973: um mês inesquecível  Um marsupial tupiniquim ─ Amok ou Sede de sangue ─ “Filho de gambá é raposa” ─ Do Cerradinho ao telhado ─ “Muita bala para pouco bicho...” ─ Paúra de raposas, digo, de cães... ─ Uma cachorra da Era Espacial Caçando morcegos ─ Velhas piadas.

O que mata o gambá é a
publicidade que faz de si.”
(Abrahan Lincoln, presidente EUA)
epis
“Esses são os bichos que na nossa cabeça
deveriam morar lá fora, no mato, mas que,
vira e mexe vêm nos fazer companhia.”
(Vida na Fazenda ― Tabuleiro, por Nina
Horta. Globo Rural Nº 370, ago. 2016)

"Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta!
Por todos os lados havia penas arrancadas,
mostrando que a pobre se debatera, lutara contra
o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço,
onde existiam coágulos de sangue...
Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos
da mulher se esbugalharam de pavor.
– Não fui eu não! Com certeza um gambá!"
(Galinha cega. João Alphonsus. 1931)


Ah, as raposinhas, as raposinhas do canil!... páginas evocativas da minha distante meninice!... Para muitos dos meus, um episódio solenemente esquecido na vala comum das memórias recuadas, e, pior, sepultado com uma sumária pá de cal de esquecimento e insignificância! Para mim não, que ainda tateio esses dias instigantes, que ainda sinto o calor de suas noites, que ainda ergo meus olhos aos céus com o mesmo fascínio destes incomparáveis tempos de menino usineiro!...
 
*   *   *

Meu pai jogou a luz do farolete sobre a rapozinha.

─ Olha, pai, como os olhos dela se acendem!

─ Parece aqueles curiangos que a gente via à noite lá no meio da estrada do bosque da fazenda Santa Cruz! Lembra, Wenilton?!!

─ É meeemo, pai! O farol da DKW batia de cheio neles e os olhos acendiam!

Meu pai se referia àqueles velhos e bons tempos em que treinava o Búfalo Rural, a time de futebol desta fazenda, isto, nos finais de tarde daquele frígido Inverno de 1968. Tomávamos a DKW em meio àquela legião de grilos cantantes, e, ao partir, já ouvíamos ao longe os piados inconfundíveis dos curiangos. Depois, ao atravessar a longa estrada do imenso bosque, nos deparávamos com os olhos amarelos e fosforescentes destes pássaros sinistros que, com a nossa aproximação, emergiam da escuridão riscando a estrada feito vaga-lumes.

─ Eles devem caçar insetos que aparecem com a luz, Wenilton.

Vale dizer que, assim como os felinos, os olhos destes sinistros pássaros tem a capacidade de brilhar à noite refletindo a luz da Lua e mesmo a luz artificial, isto, por meio de um mecanismo de espelho que permite ao animal lançar mão das mínimas unidades de luz para poder enxergar onde para outros bichos não é possível. Tanto o é que os antigos egípcios idolatravam os felinos devido à esta notável capacidade..

─ Joga luz alta agora, pai! ─ opinou o Waltinho.

*   *   *

A suposta rapozinha
Existe neste imenso País de dimensões continentais um discreto animalzinho marsupial, o qual não damos a mínima para ele, mas o danado, na escala evolutiva, é muito mais antigo que os próprios cangurus da velha Austrália. Explico: surgidos na América do Sul há aproximadamente 160 milhões de anos, eles se difundiram há pelo menos 60 por trechos da Antártida que foram utilizados como pontes, e, assim, acabaram chegando à Austrália, onde se dispersaram. Assim, quando meu pai começou a dar cabo daqueles estranhos animaizinhos que chamávamos “raposinhas”, mal sabíamos que estávamos diante de um verdadeiro fóssil vivo, bichinho contemporâneo de gigantescos animais pré-históricos, como os temíveis triceratops, de 6 m de comprimento, que vagavam pela América do Norte, isto, quase no fim da era dos dinossauros.

É de desse gracioso bichinho americano ─ o gambá-comum ─ que trataremos no presente capítulo. Vale lembrar que aquela famosa canção do Raul Seixas, "Capim-Guiné", lançada exatos 10 anos após a presente história, tem um trecho onde ele canta: "Sariguê na macaxeira". Pois este tal de Sariguê é o gambá de que tratamos, nome, porém, corrente na Bahia.

─ Ih, pai, parece que, cada vez mais está aumentando o número de rapozinhas no forro da casinha! Elas estão criando adoidado, hein!
                                          
─ E não é só a quantidade de rapozinhas que está aumentando: você viu que o Brasil, neste exato mês, atingiu 100 milhões de habitantes, Waltinho!

─ Nossa, pai, não era 90 milhões, que nem a gente cantava no hino da Seleção?!

─ Era!... Em dois anos aumentou 10 milhões! Onde vamos parar?! E as rapozinhas, por sua vez, parece que não querem ficar atrás!...


New star in the sky

Dois dias antes do desenlace do Seu Paulo Domingues, o que se deu no triste 29 de março de 1973, lendo o livreto "O Futuro do Homem no Universo", de Harlow Shapley, vim a a conhecer pela primeira vez as estrelas batizadas como Cefeidas, que são estrelas instáveis muito maiores e muito mais brilhantes do que o Sol, e que se expandem-se e contraem-se de forma regular, levando entre cerca de poucos dias até alguns meses para completar o ciclo.

Ah, o grande Harlow Shapley, o cientista que, em 1918, descobriu o centro da galáxia e a posição periférica do Sol nela, façanha que mereceu o título de “moderno Copérnico”!

Cefeidas vem do nome da estrela Delta Cephei, que foi a primeira estrela variável descoberta, isto, no distante 1784, estrela pulsante cuja magnitude varia, aproximadamente, de 2 a 3 num período de cerca de cinco dias. Ela é o protótipo da classe de estrelas que sofrem este tipo de fenômeno, no que tem importância fundamental para a Astronomia já que são usadas para medir a distancia de galáxias ou nebulosas. A Delta Cephei, cujo nome em árabe é Al Radif, ou seja, O Seguidor, pode ser vista facilmente a olho nu a variar de brilho de noite para noite. Segundo Shapley, os cálculos baseados em estrelas variáveis permitiriam descobrir que "o universo era incomodamente mais amplo, mais populoso e mais inescrutável do que havíamos suposto."

A estrela Delta Cephei, ou Al Radif
Data deste período, após ganhar minha luneta no Natal anterior, o início de minhas leituras constantes de livros de Astronomia, que eu retirava semanalmente na Biblioteca Municipal de Araras. No dia seguinte à partida do Seu Paulo, eu retiraria pela primeira vez aquele que é um dos livros de minha vida: “Os Mistérios do Firmamento”, do Domingos Grachett, o livro que foi meu cicerone do céu. Deus, quantos nomes latinos lindos de constelações conheci folheando seu belíssimo planisfério, como, p. ex.: Auriga, Camelopardalis, Canes Venatici, Cassiopeia, Coma Berenices, Fornax, Horologium, Monoceros, Ophiucus, Sextans, Volans, Vulpecula... realmente, nomes lindos e incomuns!

Naquele dia do desenlace, minha mãe tentou consolar o Nelsinho:

─ Não chora, Nelsinho, que o céu ganhou mais uma estrela, que é o teu pai.

─ Tá, dona Lourdes.

The watcher of the skies
Mas, por mais que os adultos nos dissessem que o Seu Paulo, morto, era mais uma estrela no céu, eu, ali em cima do telhado ─ já não mais menino ingênuo ─, bem sabia que, mesmo com minha luneta, jamais ia poder encontrá-lo em qualquer ponto do firmamento estrelado. Poderia até ver a Delta Cephei reaparecendo vagamente entre a cumeada dos eucaliptais acima do "tanque do meio", mas, por mais que procurasse, jamais encontraria a tal estrela do Seu Paulo? Restaria-me apenas parodiar a famosa canção do Fábio, e cantar: “Seu Paulo, em que estrela você se escondeu?!”...

Seu Paulo, Seu Paulo!... em que canto do universo “incomodamente mais amplo, mais populoso e mais inescrutável do que havíamos suposto” ele brilharia?... 



Ladrão de galinheiro...

Antes de mais nada, uma música climática para a cena. Deixemos, portanto, ao Ashera  um dos magos da Ambient Music, tecladista oriundo lá das terras dos cangurus ─ a tarefa de sonorizar a abertura deste singelo subcapítulo.


Início da noitinha. Céu estrelado. La estava eu, no quintal, naquela pasmaceira toda, pensando na vida... Em meu colo o bonachão do gato Beto, ronronando, se espreguiçando sonolento...

─ Caramba, que noite chata!

Os irmãos, junto de nossa mãe, todos, assistindo à nova novela, a instigante Cavalo de Aço...

Poucas horas antes, dia ainda, lá nos fundos do quintal, notei uma galinha isolada, ensimesmada, ciscando aqui e acolá com aquele seu cacarejar característico de despreocupação, atitude de quem procurava se entreter com algo para passar o tedioso dia no encarceramento do quintal. Lembrando disso, enquanto fazia uns carinhos, desta vez na Laika, atinei que aquele inofensivo bípede de penas tinha algo a me ensinar para espancar o tédio reinante, algo para a passar a noite que se desenrolava serena:

─ Taí: vamos ciscar os quintais do céu!

*   *   *

Hora de vigília, luneta à tiracolo, começo a escalar o muro que divide nossa casa do vizinho para ir ao meu observatório, ou seja, o telhado do galinheiro lá nos fundos do quintal, recanto sagrado de que trato adiante no capítulo seguinte. Desde o final de dezembro do ano anterior eu me entretinha com este hábito, no que, aos poucos, fui harmonizando meu tempo com a maravilhosa mecânica celeste ─ parodiando o velho Joaquim Nabuco: época do aprofundamento das minhas ligações sensíveis com a natureza e a vida universal, os nervos todos de minha periferia intelectual...

Ah, primoroso céu outonal de minha terra!... e, realmente, era belíssimo ali na Usina aquele céu de março no início das noites ─ para usar uma feliz expressão do Jorge Mautner, “aquela tapeçaria mágica das estrelas do hemisfério sul resplandecendo em opulência”.

Ao centro, Sírius, a mais bela e brilhante estrela de nossos céus.

Enfim, eis-me ali, entregue ao raro luxo da solidão durante longos momentos de encanto! são passados mais de 40 anos, mas, lembrando destas velhas noites, ainda posso sentir claramente aqui na mente o mesmo sabor daquelas deliciosas sensações!

A noite veio descendo mansa, e Sírius ─ a primeira e mais brilhante estrela do céu ─, foi elevando aos poucos, pálida, mas já irradiando parte de sua luz de prata na imensidão do firmamento. Belíssima estrela esta  a que eu mais gostava de observar com minha luneta, admirando aquele seu brilho cintilante, em cores variadas e em rápida sucessão. Sírius, Sírius!... Aquela belíssima estrela que o inspirado e sensível Visconde de Taunay, atravessando solitário os sertões do Mato Grosso por ocasião da Guerra do Paraguai, definiu assim:

“Faísca desde logo Sírius, a mais bela estrela que contemplam os olhos do homem; Sírius, a desferir a todo instante raios que do branco intenso, como chama de magnésio, cambiam para o vermelho e o verde escuro.”

Curiosamente, se a luz de nosso Sol leva oito minutos para chegar à Terra, a de Sírius emprega longos oito anos. Segundo os antigos egípcios, sua primeira aparição anual acima do horizonte Leste anunciava o período de cheias do Rio Nilo, e, anos depois, vim a saber de um fato incrível sobre ela, que, na pirâmide de Quéops há um orifício que atravessa uma de suas espessas paredes de um lado a outro, onde, neste exato dia, estando-se no altar central, pode-se ver através dele esta estrela em sua primeira aparição sobre o horizonte. Eu cismava:

Deus, que tecnologia era esta que os antigos possuíam que lhes permitia construir coisas assim com tal precisão?

Quem responderá?

Atrás de Sírius, vinha a segunda estrela mais brilhante do céu: Canopus, a brilhante estrela que, geralmente, é utilizada para balizar satélites e sondas do espaço profundo, isto, porque está situada numa região do céu quase desprovida de outras estrelas brilhantes que poderiam confundir o sensor ótico automático usado para calibração de órbitas e trajetórias. Era a estrela que eu gostava de ver quando estava lá no "canto de muro", na quina do quintal do Seu Paulo.


A majestosa constelação de Órion, com as famosas Três Marias ao centro

A nebulosa de Órion, ou M 42
Olhando lá para os lados da fazenda Palmeiras, à Noroeste, a grande constelação de Perseu já ia se despedindo, mal caíra a noitinha. Notava que suas estrelas brilham vagamente no meio daquele resto de barra crepuscular. Dentre suas estrelas, porém, eu observava outra do citado tipo variável, a bela Algol, que é uma das mais famosas neste quesito.

Do outro lado, para os lados da fazenda Santa Escolástica, na extremidade da constelação de Eridano, a estrela brilhante Archenar ia se aproximando de seu mergulho no horizonte. No extremo oposto de Perseu, era o Cruzeiro do Sul que começava a se levantar no céu atrás das chaminés da Usina, trazendo junto de si a bela dupla de fulgurantes estrelas: Alpha e a Beta Centauro. Da linha imaginária que cortava o céu de Norte a Sul, importantes e belas constelações se mostravam aos meus olhos ─ ao Norte: Gêmeos, Touro e Auriga; ao Sul: Lebre, Cão Maior e a brilhante Sírius, sua rival Canopus; adiante dela, com exceção da Grande Nuvem de Magalhães, havia aquela região meio que vazia do céu que não oferecia muitos atrativos. Porém, acima de minha cabeça, majestoso e imenso pairava o quadrilátero de Órion, e era aí que, inicialmente, eu me detinha, em especial na belíssima nebulosa que aí se notava mesmo à olho nu, a M 42, vista como um floquinho de paina à direita das Três Marias. Órion foi a primeira constelação que eu comecei a observar com a luneta, isto, já no começo do ano quando, por volta deste mesmo horário, ela pairava acima do horizonte Leste logo ao anoitecer. Com o passar dos meses, imperceptivelmente, ela ia se elevando nos céus em noites sucessivas, quatro minutos por noite, até que, no mês de março, podia ser vista pairando acima de mim já nas primeiras horas da noitinha.

A constelação da Raposa, ou, no latim, Vulpecula
Ensimesmado em cima do telhado, um nome latino me aflorou à mente: “Vulpecula”...

─ Ah ééé! É aquela constelação de nome estranho aos pés da cruz do Cisne, lá no lado Noroeste! Será que dá para vê-la?!

Como muitas outras pequenas e discretas constelações de nomes lindos, vim a conhecê-la através do citado livro “Os Mistérios do Firmamento”.

Nisto, levantei-me e fui para o outro lado do telhado, na extremidade onde voltei-me para o Noroeste, mas nada ─ a configuração de céu que me permitiria ver a constelação da Raposa ─ tradução do termo latino Vulpecula ─ fora visível nesta hora e neste ponto do céu até o final do ano anterior. Mal sabia eu que ela se via uma curiosa nebulosa, a M 27, por sua inusitada conformação, também conhecida como nebulosa do Haltere, visível apenas com 10 aumentos.

Até o final do ano anterior, também era visível a famosa estrela Delta Cepheida, que podia ser observada bem baixa no horizonte seguindo-se uma linha imaginária partindo do eixo da cruz do Cisne, porém, os contrafortes das matas situadas acima do “tanque do meio” certamente impediriam sua visão descortinada.

*   *   *

No encerramento da noitinha, as últimas tonalidades alaranjadas do crepúsculo desapareceram nas barras do horizonte setentrional. As árvores começaram a se fundir à própria sombra na luz difusa do início da noite propriamente dita. Pairava sobre o local uma estranha quietude  que a densa folhagem dos entornos amortecia os sons , porém, um silêncio sinistro, algo como o da calma que precede uma tempestade... 

Essa sempre era a hora de se ficar com a boca fechada ─ quando muito uma exclamação de espanto ou surpresa, pois o que imperava nestes sagrados momentos era a eloquência do silêncio. 



"Estrelas", com Lô Borges, sucesso na época desta história

Vasculhando o céu aqui e acolá, súbito, atraído por um ruído, divisei algo se esgueirando na semi-obscuridade. Tal como eu pouco antes, se equilibrando na linha do alongado muro, um pequeno e estranho vulto passou como uma sombra e sumiu entre as folhagens do chuchuzeiro... Pensei se tratar de um de nosso dois gatos.

─ Nossa, que bicho será esse! Será o Beto ou o Ronrom dando uns bordejos? Será que um dos dois subiu no pé de gabiroba?

A magna questão, na situação em que eu estava, era saber do que se tratava aquilo... Um sacolejo de folhagens e estalidos de galhos me arrepiaram.

─ O que será isso?!

Não demorou muito, uma verdadeira  estranha confusão se iniciou no galinheiro abaixo de mim, e o que se ouvia era um desespero de pombas e galinhas se esvoaçando feito loucos. Assustado, tomei o muro e voltei rapidamente para casa, e, sem saber que iria fazer algo de que me arrependeria no futuro, fui avisar meu pai.

Nossa pastora, a Laika, late incomodada.

Instantes depois, munido de seu farolete, vamos lá com nosso pai conferir o que se passa no canil.

― Nossa, mas o que está se passando lá no galinheiro, Wenilton?

― Nem imagino, pai!

Tudo, uma grande azáfama, em que aves cacarejam desesperadas ao mesmo tempo em que esvoaçam pelos poleiros. Junto delas, tão alvoroçadas quanto, as pombas oriundas de um pombal que tínhamos lá na cidade e que fora trazido para a Usina recentemente. Porém, lá dentro, nada late, nada rosna, nada emite ruído em meio à balbúrdia.

― Mas reparou, pai, que os perus estão quietos?

― Estranho...

Varrendo o interior do galinheiro com o facho de luz, nosso pai vê num canto um animalzinho cinzento pouco maior que um gato.

— É uma rapozinha! Bichinho maldito!

— Rapozinha, pai?

— Sim, e essa danada é comedora de galinha e passarinho!

— Nossa, pai! Quero ver! ─ falou o Wagner.

— Eu também! ─ disse o Waltinho.

Em seguida, o velho correu buscar um porrete para dar cabo do animalzinho.

― Segura a lanterna aí, Waltinho, que eu já volto.


*   *   *

— Lourdes, onde esta quele porrete de peroba?

—  Está lá no quartinho.

— Nossa, que música estranha é essa no rádio agora?

— É a nova música do Edu Lobo.

— Aquele do "Upa Neguinho"?

— Esse mesmo! 

— Do que ela fala?

— De um vento bravo que surgiu.

— Vento bravo?! Bravo é o que está acontecendo lá no galinheiro!

— E o que está acontecendo?!

— Uma raposinha atacando as galinhas e pombas!

— Nossa!


Enquanto não voltava, para nosso desespero, notamos a rapozinha ia provocando uma verdadeira chacina ali dentro: em meio à escuridão, dar de asas, cacarejos, piados agudos e aflitos, um rebuliço total!

— Vai logo, pai, se não ela vai matar as pombas e galinhas!

O Waltinho e uma das filhas da Laika, a saudosa 
Barka, dois anos após a presente história
Ele voltou com um pedaço de cabo de enxada. Não amedrontada pela luz — talvez não soubesse do que se tratava —, com menos agilidade que as aves, a tal rapozinha conseguia persegui-las, no que ia enroscando seu rabo pelado nos poleiros todas as vezes em que se desequilibrava. Com seus dentes afiados, o bicho quase conseguiu abocanhar uma pomba que estava mais próxima e desprotegida. O animalzinho se comportava tal e qual uma fuinha europeia, animal que quando adentra um galinheiro mata apenas pelo prazer de matar.

― É agora que eu desanco esse bicho! Ilumina direito ela aí, Waltinho!

A luz caiu em cheio no bicho, que com a boca escancarada e cheia de dentes, parecia babar de fome. A paulada pegou no poleiro onde ele se equilibrava e o bicho se deixou cair no chão.

― Aponta a luz no chão, Waltinho!

― Aonde!

― Procura, caramba!

O que eu sei dizer é que, no joga luz para lá, joga luz para cá, pareceu que o bicho sumiu do galinheiro!

― Me dá aqui essa lanterna, pô!

...e o bicho desapareceu!

― Que merda, a rapozinha escapou! Mas ela vai voltar, ah, se vai!

─ Também acho, pai.

─ Bom, já deve estar na hora do Chico City, pai, e eu estou louco para dar umas boas risadas com o Pantaleão!

─ É mesmo: o novo programa do Chico Anísio, né, pai! 

Por hoje, então, chega de falar em rapozinhas!




Tem rapozinha no forro

─ Outra raposinha se aninhou no forro da casinha de cachorros, Lourdes!

─ E o que você fez dessa vez?

─ Daí que, para afastá-la dali, eu fiz uma trilha de comida do telhado até o Cerradinho.

─ Que ótima ideia, Walter!

─ Ótima nada!

─ Mas porquê não?

─ Os amigos da raposinha fizeram o caminho inverso e seguiram a trilha de comida do Cerradinho até o telhado e foram se instalar ali!...

*    *   *

Além dos ataques ao galinheiro, o que levava o meu pai a matá-los era que no quintal central havia um quartinho do lado direito, transformado em canil, onde ele criava cães da raça pastor-alemão. Com a indesejável presença das rapozinhas ali meu pai sentia como se estivesse perdendo certos direitos de propriedade, e o pior, pondo suas crias em risco. E, mais grave ainda, ele criava curiós e sabiás. 

— Se esse bicho avança nas minhas gaiolas eu dou cabo de todas as rapozinhas do Cerradinho, ô, se dou!


De futebol, cabelos, barbas e bigodes

Propaganda da calça jeans US Top
O Isnaldo, que sempre aparecia ali quando uma rapozinha era apanhada, conversava com meu pai.

─ Uma galinha lá no fundo do quintal, Isnaldo, engoliu um elástico de iô-iô!

─ Ô, louco, Seu Walter! E o que aconteceu com ela?!

─ Faz uma semana que ela está botando o mesmo ovo!...

─ Aaaaaah!...

*   *   *

O Miltinho colocou a cara acima do muro, cumprimentou meu pai e disse:

─ Isnaldo, vamos embora que o almoço saiu!

O Wagner, que estava sentado no muro transversal, perguntou:

─ Nossa, Miltinho, que calça invocada é essa, meu?!

─ É a US Top, a primeira calça jeans brasileira que desbota e perde o vinco!

O Miltinho, na época
─ Ué, Miltinho ─ pergunto nosso pai ─, mas não é ruim isso, um defeito: desbotar e perder o vinco?!

─ Maluquices da moda jovem, Seu Walter!... Espera um pouco aí, Seu Walter. Nisto ele desaparece do muro. Em seguida, reaparece e exibe um sapato estranho nas mãos.

─ Veja isto, Seu Walter!

─ Nossa, que sapato mais louco esse! Olha o tamanho desse salto!

─ É o tal “cavalo de aço”. O Tarcísio Meira vem usando um nessa novela nova que está passando na Rede Globo, e todo mundo aderiu!

─ Eu quero um pai! ─ gritou o Wagner, no que foi seguido pelo mesmo pedido por todos nós...

O legendário sapato "Cavalo de Aço"
─ E essa barba aí, Miltinho?

─ Desde o último disco dos Beatles, Seu Walter, entrou na moda!

─ Você, com esse visual aí, está que nem o Afonsinho do Botafogo, aquele que, depois da Copa de 70, o panaca do Zagallo tentou proibir de jogar, porque estava cabeludo, barbudo e bigodudo!

─ Pode crer, que caretice a do Zagallo!... Grande jogador, o Afonsinho! O radialista Big Boy disse que vai sair agora em abril um compacto do Gilberto Gil com uma música dedicada à ele!

─ Soube que ele brigou na justiça e, dias atrás, conseguiu se tornar dono do próprio passe?

O Marcos, de calça "boca de sino" e sapato "cavalo de aço"
A direita, o muro através do qual eu acessava meu observatório
─ Esse cara é fera!

─ Sim, mas só espero que ele não caia na besteira de processar o Gil pela música em sua homenagem!...

─ Porquê o senhor diz isso?

─ Não viu que o Fio Maravilha processou o Jorge Bem querendo faturar uma em cima dele!

─ Que safado, o Fio! Não sabia dessa!

─ E a música está aí, todo mundo cantando junto com a Maria Alcina!

─ Linda música, grande homenagem! Que ingrato esse Fio! Nenhuma maravilha na traição que ele fez!





*   *   *

─ Pai, um frango já está bom para comer com três semanas de vida?

─ É óbvio que não, Wenilton!

─ Então, como é que ele não morre de fome?!

─ Engraçadinho! Mas para o apetite das rapozinhas, três semanas de vida já está de bom tamanho, né?


*   *   *

A gente sabia quando o bichinho estava lá no telhado, que escutávamos claramente os ruídos que ele fazia ao se deslocar pelo forro. Para chegar até esse canil, usava ela um muro que vinha lá dos fundos onde ficava o Cerradinho, reserva esta que, como já dito num capítulo específico, foi erradicada ao final de 1972 para dar lugar à depósito do Restilo e às leiras laterais que receberiam o vinhoto oriundo dele.

Às vezes, nas horas do lusco-fusco, eu flagrava uma rapozinha vindo pelo muro, com aquele seu jeito engraçado de se locomover: o andar compassado e aquela ginga que só ela tem. Lá vinha ela — acho que um macho, pois todo pimpão —, quiçá em busca da galinha cega do Alphonsus, pobre Alphonsus, digo obre galinha cega...  toda. Sua figurinha sinistra ia se cristalizando conforme imergia da escuridão em direção as luzes no corredor do quintal. Porém, passando por uma latada de chuchus, pelos caibros junto à parede, entrou ela por um vão do telhado e sumiu discretamente forro adentro. 

— Pai, a rapozinha voltou! Eu vi ela chegando quando estava lá no telhado do galinheiro. E ela entrou no forro da casinha dos cachorros!

— Bichinho desgraçado! Mas o que é que você estava fazendo lá em cima do telhado do galinheiro a essa hora no escuro?! Tá louco, menino?!

― Eu tenho ido lá ultimamente ver as estrelas com a luneta.

― Tá bom, tá bom, mas vamos lá ver se a rapozinha está no forro mesmo.

― Wenilton, você que, pelo jeito, já está com prática de subir em telhados, vamos subir lá comigo e tirar umas telhas para ver se ela está lá mesmo.

― Mas ela não morde, pai?!

― Não, não precisa ter medo: ela só rosna e mostra e os dentes, mas não ataca não.

Subimos. Bastou tirar umas telhas e iluminar o interior com o farolete, e lá estava a danada com suas dentalhas à mostra e rosnando ameaçadoramente.

— Mas, pai, porque elas vem vindo aqui agora?

— Devem estar com inveja da Laika e querem criar por aqui...

— É sério, pai?!

— É claro que não, menino! É brincadeira minha...


Abril de 1973: um mês inesquecível

Foi no abril de 1973; sim, meu caro: abril de 1973, mais precisamente no dia 6 ─ portanto, um dia e um mês inesquecível ─ pelo menos para um menino como eu, of course... E já veremos o porquê desse “inesquecível.

A Pioneer, em visita à Júpiter
Pois bem. O motivo seu deu quando a sonda espacial norte-americana Pioneer 11 foi lançada com sucesso do famoso Cabo Canaveral, isto com ampla cobertura da mídia, sendo ela uma das primeiras e principais sondas do programa de exploração espacial da NASA. A sonda pioneira, na verdade, era a sua irmã, a Pioneer 10, que havia sido lançada no ano anterior, em 3 de março de 1972, mas não me recordo desta data; portanto, mantenhamos o foco na 11.

Antes de mais nada, vale lembrar que no mês anterior chegava às ruas do País o célebre Rolls-Wagens, aquela estranha combinação de Fuscão com frente de Rolls-Royce. Não vou mentir que a novidade não me chamou a atenção ─ meus irmãos acharam o máximo, mas nada, para mim, era comparável à beleza da Pioneer! O que eu sei dizer é que a famosa frase popular usada para designar o órgão sexual feminino, proeminente em certas mulheres, ou seja, a polêmica “capô de fusquinha”, teve de ser revista com o surgimento do Rolls-Wagens...


─ Olha que capô de fusquinha, Wenilton!

─ Esta aí, para mim, Tonholi, está mais para Rolls-Wagens!

─ É meio quadradadona, né?...

O Gustão, que havia ouvido a conversa, disse:

─ Esses dias, vi um conjunto pop novo no programa Sábado Som do Big Boy, a Raspberries, e eles tem um Fusca cor-de-rosa desses com o nome do grupo pintado na lataria!

─ Uau!

─ É deles aquela música belíssima “Don’t want to say goodbye”!

─ Não sei qual música, é, Gustão!

─ Mas com certeza já ouviu e não sabe que é eles, Wenilton!

Mas, deixemos estes assuntos para lá, e deixe-me lembrá-los que ali havia também outro menino aficionado por engenhocas espaciais, que era nada menos que o Tonholi citado acima.

─ Viu ontem o lançamento da sonda Pioneer 11, Tonholi?!

─ Ô, se vi! Demais!

─ Pelo jeito, vai dar o que falar esta sonda!

─ Se vai!




Era uma sonda linda, a Pioneer, lembrando muito uma antena parabólica de TV, porém, munida com longas varetas eletrônicas a se projetarem radialmente de sua estrutura. Lembremos, porém, que as primeiras antenas parabólicas domésticas começaram a chegar aos lares, isto, em 1975, e nos EUA, ressalte-se.

A placa da Pioneer
A missão da Pioneer e suas façanhas foram coisas demoradas e arrastadas ─ mensuradas em anos espaçados. Primeiro, depois de atravessar com êxito o Cinturão de Asteroides (entre as órbitas de Marte e Júpiter) em 19 de abril do ano seguinte, chegou a Saturno em 1 de setembro de 1979, no que tomou as primeiras fotografias a curta distância do planeta, onde pôde descobrir novas luas e anéis. Depois de seu encontro com do gigante gasoso, prosseguiu sua rota para o exterior do Sistema Solar, onde pesquisou as partículas energéticas oriundas do Sol.

O must desta sonda ─ e que deu o maior ibope ─ foi a (mais famosa ainda) placa de ouro-alumínio anexada entre seus equipamentos ─ aliás, outra já havia sido anexada anteriormente na sua citada irmã, sendo que ambas foram criadas no caso de uma forma de vida inteligente de outros lugares do Universo conseguirem interceptá-las. A placa mostra, dentre outras informações, um casal de humanos representando a raça humana, além de símbolos que mostram a localização da origem da nave, o nosso discreto planetinha.

─ Viu que o casal de humanos impresso na placa da Pioneer estão nus, Wenilton?

─ Sério? E a mulher é do tipo “capô de fusquinha”, Tonholi?...

─ Para com isso, Wenilton! Por acaso, você não viu o adesivo de automóveis que foi lançado esse ano?!

─ Que adesivo?

─ Aquele: “Não faça de seu carro uma arma. A vítima pode ser você”…

─ Há, há, há! Mas você acha mesmo, Tonholi, que o que estas mulheres tem no meio da forquilha pode ser uma arma?!

─ Depende…

*   *   *

Fantásticas sondas, as Pioneers: sobre as futuras façanhas, cientistas calculam que por volta de 14.000 anos ou mais, elas ultrapassarão os limites da Nuvem de Oort ─ berçário de cometas que visitam nosso Sistema Solar ─, isto, caso não sofra nenhuma avaria que a comprometa durante a arrastada jornada, que é quando se libertará em definitivo das poderosas influências de nossa estrela.

Enfim, para não fugir à verdade, tenho de reconhecer que eu e o Tonholi ainda não tínhamos captado todas as implicações técnicas futuras desta grande façanha que foi o lançamento das Pioneers, mas, certamente, intuímos que algo de extraordinário havia acontecido e “prometia”. Porém, como em outras proezas astronáuticas anteriores, um dia, no futuro, novamente fascinados, iríamos ouvir falar novamente delas e nos certificaríamos de que, realmente, naquela distante data do venerável ano de 1973, o ser humano havia dado mais um de seus grandes passos no espaço, e passo de consequências imprevisíveis.


Um marsupial tupiniquim

Gambá-comum (Didelphis marsupialis)
Nesta época na Usina, ainda não sabíamos que, na verdade, esse animalzinho era um gambá. Injuriado com o nome científico de Didelphis marsupialis, tem 30 a 40 centímetros de comprimento. Hoje é muito comum na área urbana das cidades brasileiras ― para isto, basta que tenha alguma pequena reserva mata por perto. A crescente fragmentação das matas remanescentes na periferia das cidades é a causa direta da migração desses animaizinhos para as áreas urbanas. Aí, ele mantém seus hábitos noturnos, no que adora revirar latões de lixo em busca de comida, e enfrenta até cães nestas horas.

Numa árvore, é animal muito ágil, pois, como os macacos, é dotado de cauda preênsil, que é utilizada como um quinto membro, sendo capaz até mesmo de andar sobre fios de luz. Bichinho onívoro, come de tudo, principalmente frutos silvestres ― adora laranja, goiaba e manga ―, insetos, sapinhos e... galinhas e filhotes de pássaros!... E isso tudo era coisa que havia de sobejo na usina.

E, em se falando de dentes, amigos, o gambá não perde para nenhum outro mamífero do reino animal: tem nada menos que cinquenta!

— Nossa, pai, para que ela tem tantos dentes?!

— Para te comer melhor!

― Ah, pai, mas ela não é um lobo mau! ― respondeu o Weber ante a ironia de nosso pai ─ veja: ela até mexe as orelhinhas que nem a Laika!

E o pequeno Weber, com argúcia, notava que, igual aos cães e gatos, o gambazinho também conseguia expressar emoções através de movimentos da orelha.


*   *   *

Vivendo no máximo quatro anos, o Gambá-comum ― esse é o nome com que os cientistas pegam mais leve ― é um animal marsupial uma vez que, como os cangurus, possui uma bolsa na barriga onde carrega os filhotes que nascem com 1 centímetro após uma gestação de apenas 12 dias. No marsúpio eles se desenvolvem e, aí dentro, mamam nas tetas da mamãe gambá por até 70 dias. Faz até três crias por ano, nascendo de 10 a 21 filhotes por ninhada, mas apenas cerca de nove sobrevivem, pois há grande disputa na amamentação. À esta altura, convém lembrar que o gambá é um animal típico do bioma Cerrado.

― Nossa, pai, um bichinho desses dá mais cria que a Laika! Olha só: deve ter uns 15 filhotes!

― Parece que só perde para os coelhos!...

Os adultos são de cor cinza escuro e os filhotes pretos, com a ponta do focinho e do rabo de cor branca. Sabe-se que os filhotes, quando já podem se locomover, saem à cata de alimentos. Nas primeiras excursões fora da bolsa da mãe, é engraçado vê-los, pois andam encarapitados no dorso da mãe ou dependuram-se em seu rabo.

*   *   *

─ ...ah, Seu Paulo, eu não consigo dormir de noite mesmo!

─ E o quê é dessa vez, Seu Anjo?

─ Sei lá, Seu Paulo, acho que é um gambá andando no forro que me acorda!

─ Pára com isso, Seu Anjo! Gambá no Brasil! Onde já se viu! Gambá é no Estados Unidos! Isso deve ser gato!

Dito isto, ele saiu do consultório, mas antes disse:

─ Pera um pouco aí, Seu Anjo, que eu vou buscar algo.

Ao voltar, disse:

─ Olha, este pózinho aqui vai dar resultado.

─ Como devo tomar?

─ Cê tá louco, homem! Isto não é para você!

─ Para quem é então, caramba?!

─ Para o gato, oras! Ponha no leite dele...

*   *   *

Weber Daltro, Marcos Coutinho Pereira, David Nascimento
e Wenilton Daltro, na época da presente história.
Pobre gambá. Quando acuado, esse curioso animalzinho dá sinais de intenso nervosismo ─ é quando ele expele aquele famoso líquido malcheiroso produzido em suas glândulas axilares. Além disto, nestes momentos, ele não só rosna mostrando ameaçadoramente suas dentuças, como também defeca e urina ─ serviço completo!... Por mais incompreensível que pareça, na fase do cio, numa atitude nada romântica, a fêmea também exala sua fedentina, porém, altamente irresistível ao macho...

─ Vai tomar banho, Weber, que você está fedendo que nem um gambá!

─ Mas tem gambá no Brasil, mãe?!

─ Tem: você!...

Porém, ele é diferente do gambá “Striped Skunk” (Mephitis mephitis) que vemos em filmes e no desenho da Warner Bros ― o 
O romântico Pepe le Gambá
romântico gambá conhecido aqui no Brasil como Pepe le Gambá ―, e, apesar de o Gambá-comum também viver nos EUA, ele não exala um odor tão forte quanto o que o Skunk produz. Porém, este não é um marsupial, mas sim um carnívoro da família Mephitidae. Daí, os norte-americanos usarem nomes diferentes para ambos os animais, mas a fama de malcheiroso quem granjeia mesmo é este, o Skunk. Aliás, o gambá tupiniquim, além de embalsamar os ares com seu cheiro peculiar como defesa quando ameaçado, tem outra curiosa estratégia para se safar dos perigos: o fingir-se de morto até que o atacante desista do intento... 

─ Só falta, então, mãe, a senhora me chamar de Pepe le Gambá!

─ Quem é Pepe le Gambá?

─ Aquele do desenho da Turma do Pernalonga que a gente assiste na TV!

─ Garanhão que nem ele você é, né?!...

─ Só preciso, então, arrumar uma namoradinha mal-cheirosa como eu!...

─ Engraçadinho!...


Do Cerradinho ao telhado

O Isnaldo e seu gato
─ Isnaldo, pare de puxar o rabo do gato!

─ Mas eu não estou puxando, Seu Walter!

─ Ah, não é, moleque danado!

─ Não, Seu Walter: eu estou só segurando ─ quem está puxando é o gato!

E por falar em moleque, exatamente neste mês começaram os ensaios para a gravação do primeiro disco dos Secos & Molhados; enquanto isso, o Gonzaguinha arrebentava nas rádios com a "rancorosa" (e belíssima) canção “Moleque”...





*   *   *

O Wagner e o Isnaldo, na época desta história
Outra coisa de que me recordo quando meu pai conseguia arrancar um gambazinho do telhado ― no que o capturava pela extremidade do rabo ―, era levá-lo para o quintal, onde dava cabo da pobre criatura.

— Até que essa rapozinha é bonita, né, pai.

— Cê tá brincando!...

— Verdade, Walter, olha que pelo bonito ela tem.

— A coisa pára por aí, Lourdes... A hora em que você sentir a catinga dela você vai mudar de opinião!...

― O que eu não entendo é porque essas rapozinhas começaram a aparecer por aqui agora, Lourdes. Porque antes elas não vinham?

― Será que não é porque cortaram a mata que tinha aí atrás da colônia, pai? ― indaguei.

― Bem pensado, Wenilton, pode ser mesmo.

*   *   *

─ Pare de fazer careta para a Laika, Isnaldo!

─ Foi ela quem começou, Seu Walter?!


“Muita bala para pouco bicho...”

Ao fundo, as ruínas do galinheiro, também meu observatório...
À fraca luz incandescente do quintal, a molecada toda da colônia se reunia para ver a tal “rapozinha”, que, acuada, rosnava e mostrava os dentes afiados. Como éramos meninos, tínhamos receio dela, mas não nos agradava vê-la sendo morta, às vezes com todos os filhotinhos na bolsa. Isso ocorria a partir do início do mês de julho, que é quando ocorre a primeira das três ninhadas anuais.

― Não mata, pai!

― Porquê, Wagner?

― Olha direito: ela está com filhotinhos!

― Pior ainda! Aí é que tem que matar mesmo!

― Ahhhhh, pai!!! ― o Weber lamentou.

― Que ah, que nada! A urina desse bicho é perigosa e pode transmitir doença, e as fezes também, pois dá verminose! E se ela morder a Laika pode transmitir raiva para ela!

― Raiva, pai, aquela doença dos cachorros loucos que nós vimos quando a gente morava lá na cidade?

― Exatamente, Wenilton!

― Noooossa!

Minipistola Beretta 950B, 6.35 mm.
― Mas cadê aquele revolvinho que o senhor tem, pai?

― Não é meu, mas de seu avô Francisco, e parece que ele o vendeu. Era uma Beretta.

― Ah, era tão bonito, pai!

― Se tivesse com ele ainda podia matar o gambazinho, né? ― acrescentou o Wagner.

― Muita bala para pouco bicho...

─ Vai buscar aquele porrete para mim, Wenilton?

─ Ah, pai, estou com preguiça!

─ Corre lá buscar! Quer moleza, vai empurrar minhoca na descida!


Amok ou Sede de sangue

Como vimos, o que esse gambazinho gosta mesmo é atacar galinheiros, e se diz que quando encontra muitas galinhas, como que tomado por uma loucura repentina, mata mais do que pode comer, mas, mesmo assim, come carne e bebe sangue até empanturrar-se, e assim, com a barriga estufada, mal pode sair do lugar. Daí que o bicho busca um canto qualquer onde ferra num sono profundo, que é quando pode ser facilmente morto já que não oferece muita resistência. No entanto, na Usina, nunca encontramos um nesta condição.

― Onde o senhor vai enterrar a rapozinha, pai, se matar ela? ― perguntei.

― Que enterrar, que nada! Vou jogar ela lá atrás do muro e está de bom tamanho!

Diz a literatura regional que essa sede de sangue é talqualzinho a das onças — talvez a tal da “amok”, aquela estranha condição de que falava o escritor Stephan Zweig, a das pessoas afetadas por um estado psíquico que beira a loucura, uma paixão súbita que as acomete levando-as a atos impensados,  onde chegam a praticar ataques de fúria cega. Aliás, quiçá a expressão “bêbado como um gambá” derive também deste hábito, mas o consenso é de que o gambá gosta de cachaça e dela se embriaga se lhe oferecem...

Por outro lado, não são poucos os que têm predileção pela carne desse gambazinho, como os índios e caipiras de nossa terra. Cita-se que, após a retirada da tal glândula que produz a catinga, sua carne se torna comestível e quem a provou diz que é muito saborosa, tão boa quanto a de frango, aliás, nos EUA, onde é conhecido como “Opossum”, também é iguaria das mais estimadas. A diferença desta espécie é que ele costuma se “fingir de morto”... enquanto o nosso fica imóvel, com os olhos arregalados e a boca aberta, mas, diz o povo, que quando ele espreita onça por perto, também costuma fingir...

― Ah, pai, não mata ela não!


*   *   *

― Gosto dessa música nova aí, Walter!

― Quem canta?

― É uma tal de Roberta... Roberta... ah, sei lá!

― Qual o título?

― "Killing me softly".

― E o que quer dizer?

― A Nilza me disse que é "Me matando suavemente".

― Que título estranho para uma música romântica!...

― À propósito, matar suavemente é coisa que você não faz com as rapozinhas, né, Walter?...

― Queria o que: que eu descesse o sarrafo nelas com amor e compaixão?...

― Há, há, há! Mas, Walter, esta música é linda mesmo! Ergue um pouco o rádio, vai!

― É pra já!... tá bom aqui em cima, perto da luz, Lourdes?...

― Engraçadinho!




“Filho de gambá é raposa”

Coleção "Os Bichos"
Quanto ao fato de as pessoas geralmente confundir esse gambá com uma raposa, o escritor Amadeu Amaral, em seu livro “O Dialeto Caipira” (1920), registra uma antiga pegadinha infantil: “Sabe de uma coisa?... Filho de gambá é raposa”, e afirma que pode vir daí a confusão, isto, de modo semelhante ao que se dá ao urubu o nome de “corvo”.

Mas, falando de outro grande escritor, quando releio aquela sonora página, devoto que sou do santo Eurico, ─ digo, do meu mestre naturalista Eurico Santos , ele me garante que um dia se deparou com 14 galinhas que foram mortas por um gambazinho desses, no que o animal fora morto, e à pauladas, isto, após ser encontrado “embriagado” de tanto se empanturrar do sangue das pobres aves. Esta nota mostra o quanto este animalzinho pode trazer prejuízos aos criadores de aves.


Após a façanha, bêbado de sangue, ou, o que é mais certo, amolentado por uma digestão trabalhosa, por sobrecarga, o bruto deita-se a dormir naquele mesmo palco da tragédia, onde o Seu João, dono das galinhas, na manhã seguinte, armado de cacete, dá-lhe cabo do canastro, jurando que de ora avante matará todos os gambás que lhe aparecerem”.

*   *   *

Uns três anos após estas ocorrências ― pois vários gambazinhos que se aninharam nesse forro foram mortos  ― vim, finalmente, descobrir de que animal se tratava: na segunda semana de setembro de 1974, chegava às bancas a coleção Os Bichos, da Abril Cultural ― que eu colecionei , e num dos fascículos do primeiro volume, no caderno Campo e Cerrados Brasileiros, lá estava o “Gambá”, que, por pura falta de conhecimento, eu (também) imaginava ser animal não existente no Brasil.

― ...nossa, parece que eu conheço esse bicho!

Num texto curto, porém bem explicativo, vim a saber um pouco das características desse curioso animalzinho. As ilustrações estavam à cargo de um desenhista que eu já conhecia e admirava, um velho desenhista da revista Combate, o grande Jayme Cortez, que na parte concernente aos animais brasileiros, era o encarregado de ilustrá-los.

— Nossa! Então não é uma raposa, mas um gambá! — e fui correndo mostrar para meus pais e irmãos.


─ Esse bichinho confunde a gente mesmo: é meio raposa, meio rato, meio gato ― menos gambá! E, cheira mal...

*   *   *

Coleção "Os Bichos"
Ao que consta, coube à este simplório gambazinho a “glória” de ter sido o primeiro animal das Américas a ser levado para o Velho Mundo, o que se deu em 1500, por obra do navegador Vicente Yanes Pinzon, o que causou furor entre os naturalistas de lá, já que os marsupiais da terra se encontravam extintos desde o período terciário, ou seja, há mais de 60 milhões de anos!

Registra a história que o príncipe Francois Ferdinand Philippe Louis Marie d’Orleans (1818-1900), que desembarcou no Brasil em 1838, quando deixou nosso país levou consigo, dentre outros animais, "uma sarigueia com seus filhotes no bolso", no entanto, uma preguiça com um filhote foi o animal que mais o surpreendeu: "O animal mais incrível que jamais vi".

Enfim, amigos, esse simpático marsupial merece maior respeito entre os homens, já que, além deste “feito”, ele é um nato caçador de cupins, ratos, gafanhotos e cobras por excelência, sendo resistente ao veneno da jararaca, o que o levou a ser utilizado em estudos sobre soros antiofídicos. E mais, lembrando de sua bela pelagem, o bichinho é domesticável.

― Mãe, e se a gente pegar um filhotinho, será que não dá para criá-lo? A gente coloca ele lá no viveiro junto com os preazinhos! ― perguntou o Weber ingenuamente.

― Se você fizer isso, a rapozinha não vai comer os preazinhos, Weber?

― É meeemo, mãe!


Paura de raposas, digo, de cães...

Coleção Geoturismo Nº 1. Filhote da Laika, sede da fazenda Bom Jesus, em 1970
Uma reforma ia ser feita na “casinha dos cachorros” ─ que era como chamávamos o canil, e, como se viu, o quartinho onde nosso pai criava religiosamente, todo ano, seus amados pastores alemães. Quando nos mudamos para esta residência, nos acompanhou a já mencionada cachorra que ostentava o pomposo nome de Laika.

Nos quatro anos em que aí moramos, quatro ninhadas foram obtidas, e a última ─ ou as duas últimas ─, creio que vieram da Barka, uma bela filhota da Laika, escolhida a dedo por meu pai. Realmente era linda a Barka, a principal cachorra de minha vida, e que por isto mesmo mereceu um capítulo só seu nesta obra memorial. Um de seus irmãos foi comprado pelo proprietário da fazenda Bom Jesus, e nunca me esqueço o dia em que nosso pai chegou todo orgulhoso em casa com um folheto à cores documentando a cidade ─ que era o fascículo número 1 da coleção Geoturismo ─, e numa das fotos, lá estava ele, todo bonachão, deitado num gramado em frente a sede ─ belo cão cujo nome se perdeu.

*   *   *

Enquanto isso, meu irmão lá na escola...

─ Weber, esta redação sobre sua cachorra Laika você fez sozinho?

─ Não, professora?

─ Então, quem mais participou?

─ A Laika, professora.

─   !!!


*   *   *

Pois bem. O pedreiro que ia trabalhar na reforma era familiar ─ velho conhecido ─, o humilde e bonachão Roberto, que era irmão de nosso tio Augusto Paura, outro funcionário da Usina.

─ Mas, Walter, essas rapozinhas não atacam e não mordem não?!

─ Fica, tranquilo, Roberto, que se tiver alguma na casinha, ela fica no forro, escondida, pois só sai à noite.

─ Hummm... Mas esta tua cachorra aí morde, né, Walter!

— Fica tranquilo, Roberto: ele só gosta de carne de primeira...

— Hãnnn?!

— Brincadeira, Roberto!


*   *   *

— Wenilton, saberia me dizer qual é o masculino desses três animais: vaca, égua e raposa?

─ Raposa, professora.

─ Muito bem, Wenilton!

─ Mas, professora, eu já li uma história com o nome raposo. Eu tenho uns livros que eram de meu pai, do escritor Cretella Jr., e num deles tem um conto chamado “As calças do raposo”.

─ Ah, sim, Wenilton, eu conheço esse conto! É do Medeiros e Albuquerque; conto muito bonito, por sinal. Esse conto quase sempre está presente nessas seletas de livros de Português. Mas esse raposo aí, se não me engano, é o nome de uma personagem do conto, acho que um inspetor.

─ Não me lembro, professora.


Uma cachorra da Era Espacial!

─ Uau, Miltinho, que rock é esse rolando aí em teu rádio!

─ É “Crocodile rock”, do Elton John!

─ Elton John?! Nunca ouvi falar!

─ Este ótimo cantor, Weber, começou a fazer sucesso aqui no Brasil faz uns dois anos, quando muito.





*   *   *

Laika e o Sputnik II
Nesses dias outonais em que o Roberto fora trabalhar ali, nosso pai, previamente e por precaução, soltava a Laika no quintal dos fundos, cachorra que, em nossa colônia, tinha a fama de ser meio brava... Eu escrevi “meio brava”, mas esta cachorra de belíssima pelagem amarelada, segundo a lembrança de meu irmão Weber, “era braba mesmo!”...

E alguém aí deve estar se perguntando: “De onde seu pai tirou esse nome, Wenilton?”. Pois bem: o pomposo batismo adveio do advento da Era Espacial, não da ala norte-americana, mas da soviética, do célebre Sputnik II, aquele belíssimo satélite, ou nave, que no distante 3 de novembro de 1957 levou o primeiro ser vivo ao espaço, ser vivo este que era nada mais nada menos que uma nobre cadela, que atendia pelo pomposo nome de Laika, cachorra que, por sinal, era educada e não mordia ninguém...

─ A Laika do Sputnik, pai, era uma cosmonauta, e não uma astronauta.

─ Mas qual a diferença, Wenilton?

─ Cosmonauta é soviético, e astronauta é norte-americano.

─ Hummm... E como você sabe disso, Wenilton?

─ Mas como você não sabe, pai?!

─ !!!
*   *   *

E o Weber voltou da escola...

─ Mãe, a senhora acredita que a minha professora nunca viu uma rapozinha?!

─ Gambazinho, Weber!

─ Sim, gambazinho!

─ Mas isso é bastante difícil, hein, Weber!

─ Pois é, mãe: eu desenhei um e mostrei para ela, e ela perguntou o que era.

─ Ah, mas se fosse o Wenilton que tivesse desenhado ela ia falar que conhecia sim, ô, se ia!...

*   *   * 

A pastora Barka, filha da Laika, diante do portão do quintal 
Mas acontece que, no dia seguinte, quando o Roberto chegou para trabalhar, a danada da Laika estava solta no quintal da frente... [o leitor estremeceu; o Roberto (ainda) não, e muito menos eu...]. Quando ele se achegou ao portão de entrada deste quintal, teve a infeliz ideia de querer olhar por cima do mesmo para checar se a danada da cachorra estava na área. Daí que quando ele se equilibrou na ponta dos pés para olhar, por um lamentável descuido ─ e uma tremenda infelicidade , sua proeminente barriga ficou justamente em frente ao buraco do portão por onde se acessava a taramela. E a Laika, notando seu vacilo, não pensou duas vezes em meter sorrateiramente sua cabeça por ali e cravar os dentes na pança do pobre Roberto!...

Ruínas do portão em 1998.
Ele chorou!... Deve ter doído muito!

Entre soluços, descontrolado e nervoso que estava, ele perguntou?

─ É-ela é va-vacinada, Se-Seu Walter? Na-não vou pe-pegar raiva?

─ Fique tranquilo, Roberto! De raiva já basta o temperamento dela...

─ Hu-hummm...

Nós, crianças, rimos disfarçadamente na hora... Horas depois, rimos a valer!... No dia seguinte, pintou o remorso, doeu em nós todos... sentimos pena e compaixão...

─ Ele olhou por cima, ela atacou por baixo!... ─ explicou o Weber.

─ O Roberto não tem boca para nada! ─ disse o Waltinho.

Afinal, era uma boa e humilde pessoa, o Roberto!


*   *   *

Os caninos da Laika não descansaram por aí. Meu irmão Weber se recordou de outras vítimas:

Acho que a Laika mordeu vários. Vira e mexe eu encontro um da Usina falando que foi mordido por ela: a Silvana, o Teschinha... Acho que o Gumercindo da marcenaria também ─ esse merecia porque era chato!.... Isso, fora o pau que ela deu em outros cachorros...”

*   *   *

O Teschinha, na época desta história
─ Você já sofreu algum acidente, Teschinha?

─ Não, Wenilton.

─ Nunca?!

─ Pensando bem, até hoje só aquela mordida da tua cachorra, a Laika, mas, para mim, aquilo não foi acidente.

─ Mas porquê você acha que não foi um acidente?

─ Oras, Wenilton, ela mordeu de propósito!...



*   *   *

A Laika... bela, mas, meio brava...

─ Muito brava, Wenilton!

─ Hummm...
*   *   *

Minha mãe estava irritada.

─ Você já tomou banho, Weber?

─ Ainda não.

Ela se irritou mais ainda...

─ E está esperando quê, seu molequinho desobediente?! Vai já tomar banho!

─ Já vou, mãe! E não grita comigo, que eu não sou o teu marido!!

─ O quê?! Ah, mas é agora eu vou bater em você que nem seu pai bate nas rapozinhas!

─ Não mããããe!

O azar do Weber foi que nosso pai viu a cena!...

— Deixa que eu vou dar uma surra nele com esse porrete, Lourdes!

— Isso vai machucá-lo seriamente, Walter: é madeira muito dura!

— Esta desculpa é porque você não quer que eu bata nele?

— Não, não... toma esta vara aqui, que é de Santa Bárbara, madeira leve e macia que usam para fazer palito de fósforo!...

— Você só pode estar brincando, Lourdes!...

— Então bate nele com doçura!

— Bater com doçura! Com assim?!

—  Com uma cana-de-açúcar... meio que Killing me softly...

— Engraçadinha!...

*   *   *

─ Seu Walter, eu falei para o senhor da música que o Gilberto Gil fez para o Afonsinho, mas sabia que no disco novo do Sergio Sampaio lançado agora tem uma música chamada “Dona Maria de Lourdes”?!

─ Sério, Miltinho?! Uma música com o nome de minha esposa! É aquele cantor novo da música “Eu quero botar meu bloco na rua”?

─ Sim, ele mesmo!

─ E de que ela fala?

─ É uma letra muito louca, difícil de entender... mas a música até que é bonita!

─ Vou querer ouvir!


*   *   *

Caçando morcegos

Vinho Cave D'Aubigny
Dias depois, numa certa noite, um velho amigo de meu pai, o bonachão Hugo Campos Martins, nos visitou. Vamos, então, travar contato com este ilustre cidadão, que, assim como outros amigos de nosso pai, era um habitué  de nossa casa. De saída, para descrevê-lo numa síntese, poupo minhas próprias palavras e tomo emprestado uma fala de Erico Verissimo em que ele descreve seu avô:

“sua prosódia, a cadência de sua voz, sua sabedoria da vida, seus ditos, seu gosto em matéria de comida, os 'causos' que ele contava, a maneira como se vestia, a opinião que manifestava sobre política, instituições, pessoas, bichos, coisas...”

Perfeito, Erico!


*   *   *

─ ...mas esse Opala SS é lindo, hein, Hugo!

─ Um senhor carro, Walter: freio a disco, ar condicionado, vidro ray-ban, faróis de neblina e... vai de 0 a 100 quilômetros em 1 segundo! O problema é que bebe que nem um gambá!...

─ Bebe que nem um gambá! Há, há, há! Boa essa, Hugo! Mas, uau, que fera esse carro, hein! Mas, Hugo, eu estou louco para sair dessas Decavês ultrapassadas e comprar um Ford Belina 73.

─ É um carrinho econômico, é ótimo para quem tem uma família como a sua, com essa meninada toda. 

─ Vamos entrar, Hugo!

─ Ah, olha, Walter, trouxe um vinhozinho prá gente tomar! Manda a Lourdes por na geladeira!

─ Cave D’Aubigny... hummm... belo rótulo! É importado, francês pelo jeito? 

─ Parece, mas não é. É vinho brasileiro mesmo, mas acho que esse é o primeiro grande vinho brasileiro! Uma delícia!

─ E como se pronuncia isto, Hugo?

─ Sei lá, Walter! Não manjo nada de francês!...

Ambos foram para a sala, e minha mãe se encarregou de um providencial cafezinho.

─ Criançada, trouxe chocolate para vocês!

─ Ebaaaaa!

O chocolate Dessert, da Nestlé
─ É uma delícia esse novo chocolate da Nestlé, Lourdes!

─ Dessert... bonito rótulo!

─ Recheado com passas e castanhas de caju!

─ Hummm!...

─ Dessert... e como se pronuncia isto, Hugo?

─ Sei lá, Lourdes! E não manjo nada de francês...

─ Mas é francês, Hugo? Pensei que fosse inglês.

─ Se é francês ou inglês, Lourdes, não importa: eu não manjo nada de nenhuma das duas línguas mesmo!...

─ Nem eu...

─ Posso fumar um cigarro, Walter?

─ Sim Hugo, sem problema.

─ Obrigado!

─ Mas que isqueiro chique esse, hein, amigo!

─ É o Dupont, mas este é francês mesmo, e banhado a ouro 18 quilates!

─ Uau!

─ Nossa, que gritaria é essa, Walter?

─ São os meninos jogando bola no quintal... Com crianças dessa idade em casa, parece que a gente nunca vive em paz!...
Isqueiro francês Dupont,
 folheado a ouro 18 quilates

─ Na minha casa, eu fiz um acordo com meus meninos!

─ Qual?

─ Eu nunca digo à eles o que devem fazer...

─ E então, Hugo?

─ Daí que eles não fazem nada!...

─ Há, há, há!...

─ É pra rir mesmo, né, Walter, mas quem está rindo mesmo são seus filhos!

─ Mas o que será que estão aprontando esses danados?!


*   *   *

Enganou-se o meu pai: não jogávamos bola, mas... caçávamos morcegos... ou melhor, tentávamos... Ah, o inesquecível o guinchar daqueles morcegos naquelas velhas noites: sons que, ainda hoje, ecoam nostálgicos nos desvãos da memória e ressoam lá dentro feito caverna profunda.

O Wagner disse:

─ Um amigo lá do Grupo Zurita que a gente agitar fortemente uma vara de bambu, ela solta sons agudos de alta frequência, e essa frequência é bem parecida com a que o morcego solta quando canta.

─ Sério?! ─ me exultei.

─ E daí que o morcego ouve este som e pensa que está vindo de um inseto, e ele vem de encontro à vara.

─ Caramba! ─ exclamou o Weber.

─ Na verdade, os sons que saem da vara confundem o bicho: as ondas da vara colidem com as ondas emitidas pelo morcego mudando a trajetória e confundindo ele, e, quando ele vem em cima, acaba levando uma varada!

─ Nossa, que louco!

─ Vamos tentar caçar um, então, com esse bambu do varal!

─ Esse do varal não é flexível. Vamos pegar uma vara de pescar! ─ opinou o Waltinho.

De vara à mão, o Wagner começou a agitá-la em círculos em direção ao céu.  Nós em volta ficávamos gritando, cada qual louco para caçar um também, mas nada de um morcego se aproximar...

─ Fiquem quietos, se não o morcego não escuta!!  

E a vara era agitada para lá e para cá, mas nada!

─ Caramba, os morcegos parece que estão de greve hoje!

Meu pai, que tinha ido lá fora ver o que estávamos fazendo, ao voltar para dentro disse ao Hugo:

─ Eles estão caçando morcegos com uma vara de bambu! Dá para acreditar?

─ Ah, Walter, eu já fiz isso quando era menino! Uma brincadeira muito excitante! Mas, amigo, nós adultos somos diferentes das crianças: somos atores, estamos sempre interpretando. E não tem outra alternativa, pois, do contrário, nós não poderíamos viver socialmente.

─ Como assim, Hugo?

─ No fundo, Walter, penso que nenhum comportamento social é natural (disse isto fazendo no ar um sinal de parênteses com dois dedos de cada mão). Natural mesmo seria correr e pegar tudo aquilo que desejamos, assim como seus filhos lá fora caçando morcegos. Natural seria batermos o pé no chão e gritarmos quando, querendo algo, somos contrariados. A maneira como nos comportamos socialmente é toda regrada, e não podemos, como as crianças, ser sinceros; por isso, a gente está sempre atuando, fingindo comportamentos, sendo antinaturais. Mas a vida é assim mesmo, e essa maneira de se portar socialmente a gente só consegue após longa vivência e aprendizado. E é por isso que tenho tanta inveja das crianças, de serem naturais, sinceras, verdadeiras, de não guardarem o que pensam, apesar que a toda uma carga de ingenuidade e inocência por detrás disso.

Minha mãe desabafou:

─ Interessante esse ponto de vista, Seu Hugo. Nunca me passaram pela cabeça esses pensamentos.

*   *   *

Cansamos em nossas tentativas de tentar derrubar um morcego. Daí, resolvemos brincar de equilibrista com o bambu. Vem dessa época a minha habilidade de equilibrar objetos, e eu costumava tentar equilibrar o pesado bambu do varal na palma das mãos. Com o tempo, consegui equilibrá-los não só na palma da mão, mas também nos dedos do pé, na ponta do dedo indicador, e até mesmo na ponta do nariz...

─ Vocês conhecem a piada do rato e do morcego?! ─ perguntou o Weber, tentando quebrar o gelo.

─ Conta aí!

─ Então o ratinho estava passeando um dia de noite com a mãe dele, e, de repente, passou um morcego voando, e ele gritou: “Alá, mãe, um anjo!”

O Wagner, fazendo cócegas em seu próprio sovaco, soltou uma risada forçada...

─ Não tem uma piadinha mais sem graça para contar, Weber?! ─ ironizei.

─ Ah, e morcego não é rato com asas não, viu, seu tonto!

─ Ah, vai caçar sapo, Waltinho!            

*   *   *

O sapo Cururu (Bufo marinus)
Pela mais incrível das coincidências, um enorme cururu surgiu do orifício de saída d’água do muro e foi se colocar abaixo da luz da quina do telhado.

─ Olha um sapo ali! Vamos brincar com ele!

─ Vamos, mas como? ─ perguntou o Wagner.

Nisto, o Weber lembrou-se de algo:

─ O China, meu amigo lá do Zurita, disse que ele e o irmão dele de vez em quando caçam um marimbondo e depois jogam ele dentro do congelador, e deixam ele lá por um 10 minutos.

─ Mas o que isso tem a ver com o sapo?

─ Calma, que eu chego lá! Daí que eles tiram o bicho meio congelado lá de dentro e amarram uma linha na cintura dele. Logo depois, quando que ele volta à vida, ele quer fugir voando, mas não pode, pois está preso pela linha. Assim eles ficam passeando pelo quintal com o marimbondo voando preso na linha...

─ Há, há, há!... que barato!

─ Mas diga aí, Weber, como vamos fazer o sapo voar!...  ─ ironizou o Waltinho.

Eu e o Wagner, dois anos depois da presente história
─ É mesmo!...

─ Só se for aquele sapo com asas que o Wenilton sonhou lá na cidade aquela vez...  

─ Ah, vai caçar sapo, Wagner! ─ respondi enfezado.

 O Weber opinou.

─ Já sei: vamos colocar uma bolinha de papel na ponta de uma linha e tentar caçar o sapo! Acho que ele vai pensar que é um besouro e vai tentar comê-la!

─ Boa ideia!

Daí que quando o sapo botava aquela língua enorme para fora, erguíamos a bolinha num rápido puxão, enganando-o. Uma certa hora, o Waltinho notou que o sapo atacou a sombra da bolinha refletida no chão. Foi um festival de risadas. Com a descoberta, a brincadeira rolou em torno disto: fazendo a sombra da bolinha se aproximar diante do sapo, ele, iludido, ficava ali feito tonto na vã tentativa de caçá-la esticando sua língua flexível...

O quintal frontal, e, ao fundo, o pé de Gabiroba.
─ Olha o tamanho dessa língua! Parece língua de sogra!

─ Há, há, há!... que barato!

Uma hora, sem querer, numa distração o pobre sapo engoliu a bolinha verdadeira!...

─ Nooossa, meu, ele engoliu a bolinha e a linha ficou para fora!

─ Que judiação isso! ─ esbravejou nossa mãe que tinha vindo ver o porque de tantas risadas.

─ E agora, mãe: como vamos tirar a bolinha de dentro dele?! ─ perguntou o Weber.

─ Vai buscar uma tesoura para mim.

Ele voltou com a tesoura. Nossa mãe esticou a linha que ia até a sapo, e rapidamente cortou-a próximo à boca dele.

─ Fica tranquilo, Weber, que a bolinha de papel não vai fazer mal à ele.

─ Para quem come esses besouros cascudos, acho que não vai mesmo!... ─ acrescentei.


Velhas piadas

Hugo Campos Martins
Entre goles de café e cigarros, nosso pai contou ao amigo Hugo sobre o episódio dos gambás.

─ Foi o Wenilton que descobriu que era gambá, e não raposinhas como pensávamos.

─ E esses gambazinhos bebem que nem meu carro? ─ ironizou o Hugo.

─ O que elas gostam mesmo é de sangue de galinha, Hugo! 

─ Lembra daquele caso engraçado envolvendo o Adhemar de Barros e o Jânio Quadros, grandes inimigos políticos?

─ Que caso, Hugo?

─ Certa vez, o Jânio anunciou num comício que trouxera seu adversário com ele, e mostrou para a multidão uma gaiola com um rato dentro... O Adhemar deu um troco para o Jânio, e num comício seu disse que também trouxera adversário e exibiu uma gaiola com um gambá dentro...

─ Há, há, há!... Boa esta, Hugo!
  
A lembrança do episódio espicaçou a natural veia piadística do Hugo:

─ Ah, Walter, conhece aquela velha piada do casal de português e o gambá?

─ Não. Conta aí!

Imitando com perfeição o sotaque lusitano, o amigo deu dois traguinhos, um no café, outro no cigarro, e deu iniciou à sua anedota.

─ Pois bem, Walter, lá vai! Um certo dia, o Manuel e a Maria resolveram viajar de avião, mas a esposa insistia que queria levar seu gambazinho de estimação. O problema é que não havia como embarcar com um animal daqueles, pois era terminantemente proibido.

─ E como eles contornaram isso, Hugo?

─ A Maria, que costumava usar aquelas saias rodadas típicas de Portugal, perguntou ao marido: “Mas Manuel, e o gambá?! Eu não vou viajar sem o meu bichinho, não! Mas, onde vamos escondê-lo para poder entrar no avião?!”. Na maior serenidade, o Manuel respondeu: “Oras pois, Maria, coloque ele debaixo da saia!”. A esposa, encafifada, perguntou: “Mas Manuel, e o cheiro? E o Manuel , sem pestanejar, respondeu: “Oras, Maria, o gambá que se foda, raios!”

Enquanto o velho Hugo matava o restinho de café após dar um giro na xícara, meu pai se esborrachava de rir. Rimos com ele, mais por seu riso que por entender a piada...

─ O que é "que se foda", pai? ─ Perguntei.

─ Nada, Wenilton, e vai lá na cozinha agora e manda sua mãe trazer o vinho.

Aércio Zangerolamo
O Weber, que junto de nós também havia ouvido a piada, exultou:

─ Aí, pai, viu: então dá para a gente criar uma rapozinha como bichinho de estimação!

─ Não é rapozinha, Weber, mas gambá! O Wenilton não te disse, não? 

Eis que adentro a sala trazendo às mãos o volume 4 da Coleção Vovô Felício, e mostro a todos uma belíssima ilustração do Joselito, aquela que ilustra a singela história “O franguinho desobediente”.

─ Gostei deste teu boné, hein menino! (ao ir ao quarto buscar o livro, aproveitei e vesti o boné que havia ganho, um boné com uma linda estampa quadriculada em azul e amarelo, que foi o primeiro que tive em minha vida)

─ Foi o Aércio Zangerolamo que deu prá molecada. É lá da nova loja de autopeças dele, a Asamade.

─ Ah, eu dei um pulinho lá, esses dias.

Coleção Vovô Felício, vol. 4,“O franguinho desobediente”
─ Olhem só isso! ─ falei, exibindo a ilustração do Joselito.

O senhor Hugo diz:

─ Deixa-me ver, Wenilton... hummm... Coleção Vovô Felício, não conheço... Que escritor é esse, Lourdes? Sabe?

Nossa mãe, que havia acabado de entrar na sala trazendo o vinho, explicou:

─ Essa coleção de livros compramos para os meninos anos atrás, mas parece que só o Wenilton lê, não é, Wenilton?

─ É, mãe.

─ Esse tal do Vovô Felício me parece que é meio que uma espécie de Monteiro Lobato, pois também escreve para crianças.

─ Hummm... mas que desenho é esse que você queria mostrar, Wenilton?

─ É um franguinho prestes a cair nas garras de um gambá, Seu Hugo!

Nosso pai intercedeu...

─ Taí, Weber! Tem certeza de que você quer mesmo ter um gambá de estimação?...

─ Humm...

─ Hum, é?! Nem um nem dois, moleque! "Gambá de estimação"!...Não sei de onde você saiu com essas ideias de Pedro Bó, moleque!

O Seu Hugo interrompeu a repreensão de meu pai:

─ Weber, vem cá, menino: você conhece a piadinha do gambá! 

─ Não, Seu Hugo! Conta, por favor!

─ Pois bem. Uma gambazinha estava andando para lá e para cá, quando parou para coçar a bolsa! Andou mais um pouco e, novamente, sentiu coceira na bolsa. Na terceira vez, ela ficou brava, e tirando um filhote de dentro da bolsa, bateu nele, dizendo: "Eu já falei para você não comer bolacha na cama!"

─ Hi, hi, hi! Piadinha legal, Seu Hugo!

Por esta época, eu gostava de deitar no chão e ficar ouvindo a conversa dos adultos. E lá veio mais uma do inspirado Hugo!

─ Meu avô me disse que, lá na Paraíba, eles chamam esse bichinho aí de Timbu, e disse também que o rabo de gambá pisado e bebido com água é um ótimo estimulante. 

─ Deus me livre! ─ exclamou minha mãe.

─ E tem mais, Lourdes: ele é ótimo para acabar com escorpiões!

─ Mas não é a galinha que come escorpião, Seu Hugo?

─ Às vezes, mas como o escorpião tem hábitos noturnos, é à noite que o gambazinho pega eles.

─ Olha só! Quem diria!

*   *   *

─ Lourdes, desliga esse rádio! Isso é hora de ouvir música caipira?! Música caipira se ouve de manhã!

─ Mas essa é a Gal Costa que regravou índia, o sucesso de Cascatinha e Inhana!

─ É mesmo?! ─ Exclamou o senhor Hugo ─ A Inhana é cantora aqui da nossa terra!

Nossa mãe desligou o rádio.

─ Já que não é hora de ouvir música caipira, vamos ouvir outro tipo legal de música! ─ gritou o Weber. E daí que ele foi lá na rádio-vitrola na copa e colocou para rolar em som bem alto um dos compactos que havíamos ganhado de presente da Daisy Dadona: nada menos que “Son of My Father”, com o cibernético Giorgio!...

─ Nossa, Lourdes, até aqui vocês estão ouvindo isso! Lá em casa os meus filhos não tiram esse disco da vitrola!

─ Aqui também, Hugo!...

Súbito, a Luciana fez uma pergunta à nossa mãe:

─ Mãe, quem ama é amoroso, quem sabe é saboroso, e o feminino de rapaz é raposa. É isso, mãe?

Meus pais e o Hugo riram a valer; a Lu riu também, mas sem entender o por quê...

─ Criança diz cada uma, hein, Lourdes!

─ De quando em quando ela solta umas pérolas dessas, Hugo! ─  acrescentou meu pai.

─ Então, Walter, um brinde às nossas crianças maravilhosas!



* Este capítulo faz parte da série de 11 livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 ─ OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA ─ Vol. 5 ─ The watcher of the skies ─ dez. 1972 a mar. 1973”. Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.
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