“O que mata o gambá é a
publicidade que faz de si.”
(Abrahan Lincoln, presidente EUA)
epis
“Esses são os bichos que na nossa
cabeça
deveriam morar lá fora, no mato, mas
que,
vira e mexe vêm nos fazer companhia.”
vira e mexe vêm nos fazer companhia.”
(Vida
na Fazenda ― Tabuleiro, por Nina
Horta. Globo Rural Nº 370, ago. 2016)
"Encontrou-a no terreirinho,
estirada, morta!
Por todos os lados havia penas
arrancadas,
mostrando que a pobre se debatera,
lutara contra
o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço,
onde existiam coágulos de sangue...
Era tão trágico o aspecto do marido
que os olhos
da mulher se esbugalharam de pavor.
– Não fui eu não! Com certeza um
gambá!"
(Galinha
cega. João Alphonsus. 1931)
Ah, as raposinhas, as raposinhas do canil!... páginas evocativas da minha distante meninice!... Para muitos dos meus, um episódio solenemente esquecido na vala comum das memórias recuadas, e, pior, sepultado com uma sumária pá de cal de esquecimento e insignificância! Para mim não, que ainda tateio esses dias instigantes, que ainda sinto o calor de suas noites, que ainda ergo meus olhos aos céus com o mesmo fascínio destes incomparáveis tempos de menino usineiro!...
* * *
─ Olha, pai, como os olhos dela se acendem!
─ Parece aqueles curiangos que a gente via à noite lá no
meio da estrada do bosque da fazenda Santa Cruz! Lembra, Wenilton?!!
─ É meeemo, pai! O farol da DKW batia de cheio neles e os olhos acendiam!
Meu pai se referia àqueles velhos e bons tempos em que treinava o Búfalo Rural, a time de futebol desta fazenda, isto, nos finais de tarde daquele frígido Inverno de 1968. Tomávamos a DKW em meio àquela legião de grilos cantantes, e, ao partir, já ouvíamos ao longe os piados inconfundíveis dos curiangos. Depois, ao atravessar a longa estrada do imenso bosque, nos deparávamos com os olhos amarelos e fosforescentes destes pássaros sinistros que, com a nossa aproximação, emergiam da escuridão riscando a estrada feito vaga-lumes.
─ Eles devem caçar insetos que aparecem com a luz, Wenilton.
Meu pai se referia àqueles velhos e bons tempos em que treinava o Búfalo Rural, a time de futebol desta fazenda, isto, nos finais de tarde daquele frígido Inverno de 1968. Tomávamos a DKW em meio àquela legião de grilos cantantes, e, ao partir, já ouvíamos ao longe os piados inconfundíveis dos curiangos. Depois, ao atravessar a longa estrada do imenso bosque, nos deparávamos com os olhos amarelos e fosforescentes destes pássaros sinistros que, com a nossa aproximação, emergiam da escuridão riscando a estrada feito vaga-lumes.
Vale dizer que, assim como os felinos, os olhos destes sinistros pássaros tem a capacidade de brilhar à noite refletindo a luz da Lua e mesmo a luz artificial, isto, por meio de um mecanismo de espelho que permite ao animal lançar mão das mínimas unidades de luz para poder enxergar onde para outros bichos não é possível. Tanto o é que os antigos egípcios idolatravam os felinos devido à esta notável capacidade..
─ Joga luz alta agora, pai! ─ opinou o Waltinho.
* * *
A suposta rapozinha |
É de desse gracioso bichinho americano ─ o gambá-comum ─ que
trataremos no presente capítulo. Vale lembrar que aquela famosa canção do Raul Seixas, "Capim-Guiné", lançada exatos 10 anos após a presente história, tem um trecho onde ele canta: "Sariguê na macaxeira". Pois este tal de Sariguê é o gambá de que tratamos, nome, porém, corrente na Bahia.
─ Ih, pai, parece que, cada vez mais está aumentando o
número de rapozinhas no forro da casinha! Elas estão criando adoidado, hein!
─ E não é só a quantidade de rapozinhas que está
aumentando: você viu que o Brasil, neste exato mês, atingiu 100 milhões de
habitantes, Waltinho!
─ Nossa, pai, não era 90 milhões, que nem a gente cantava
no hino da Seleção?!
─ Era!... Em dois anos aumentou 10 milhões! Onde vamos
parar?! E as rapozinhas, por sua vez, parece que não querem ficar atrás!...
New star in the sky
Dois dias antes do desenlace do Seu Paulo Domingues,
o que se deu no triste 29 de março de 1973, lendo o livreto "O Futuro do
Homem no Universo", de Harlow Shapley, vim a a conhecer pela primeira vez
as estrelas batizadas como Cefeidas,
que são estrelas instáveis muito maiores e muito mais brilhantes do que o Sol,
e que se expandem-se e contraem-se de
forma regular, levando entre cerca de poucos dias até alguns meses para
completar o ciclo.
Ah, o grande Harlow Shapley, o cientista que, em 1918, descobriu o centro da galáxia e a posição periférica do Sol nela, façanha que mereceu o título de “moderno Copérnico”!
Cefeidas vem do nome da estrela Delta Cephei, que foi a primeira estrela variável descoberta, isto, no distante 1784, estrela pulsante cuja magnitude varia, aproximadamente, de 2 a 3 num período de cerca de cinco dias. Ela é o protótipo da classe de estrelas que sofrem este tipo de fenômeno, no que tem importância fundamental para a Astronomia já que são usadas para medir a distancia de galáxias ou nebulosas. A Delta Cephei, cujo nome em árabe é Al Radif, ou seja, O Seguidor, pode ser vista facilmente a olho nu a variar de brilho de noite para noite. Segundo Shapley, os cálculos baseados em estrelas variáveis permitiriam descobrir que "o universo era incomodamente mais amplo, mais populoso e mais inescrutável do que havíamos suposto."
Cefeidas vem do nome da estrela Delta Cephei, que foi a primeira estrela variável descoberta, isto, no distante 1784, estrela pulsante cuja magnitude varia, aproximadamente, de 2 a 3 num período de cerca de cinco dias. Ela é o protótipo da classe de estrelas que sofrem este tipo de fenômeno, no que tem importância fundamental para a Astronomia já que são usadas para medir a distancia de galáxias ou nebulosas. A Delta Cephei, cujo nome em árabe é Al Radif, ou seja, O Seguidor, pode ser vista facilmente a olho nu a variar de brilho de noite para noite. Segundo Shapley, os cálculos baseados em estrelas variáveis permitiriam descobrir que "o universo era incomodamente mais amplo, mais populoso e mais inescrutável do que havíamos suposto."
A estrela Delta Cephei, ou Al Radif |
Naquele dia do desenlace, minha mãe tentou
consolar o Nelsinho:
─ Não
chora, Nelsinho, que o céu ganhou mais uma estrela, que é o teu pai.
─ Tá, dona Lourdes.
The watcher of the skies |
Seu Paulo, Seu Paulo!... em que canto do universo
“incomodamente mais amplo, mais populoso e mais inescrutável do que havíamos
suposto” ele brilharia?...
Ladrão
de galinheiro...
Antes de mais nada, uma música climática para a cena. Deixemos, portanto, ao Ashera ─ um dos magos da Ambient Music, tecladista oriundo lá das terras dos cangurus ─ a tarefa de sonorizar a abertura deste singelo subcapítulo.
Início da
noitinha. Céu estrelado. La
estava eu, no quintal, naquela pasmaceira toda, pensando na vida... Em meu colo
o bonachão do gato Beto, ronronando, se espreguiçando sonolento...
─
Caramba, que noite chata!
Os irmãos, junto de nossa mãe, todos,
assistindo à nova novela, a instigante Cavalo
de Aço...
Poucas horas antes, dia ainda, lá nos
fundos do quintal, notei uma galinha isolada, ensimesmada, ciscando aqui e acolá
com aquele seu cacarejar característico de despreocupação, atitude de quem procurava
se entreter com algo para passar o tedioso dia no encarceramento do quintal.
Lembrando disso, enquanto fazia uns carinhos, desta vez na Laika, atinei que aquele inofensivo
bípede de penas tinha algo a me ensinar para espancar o tédio reinante, algo
para a passar a noite que se desenrolava serena:
─
Taí: vamos ciscar os quintais do céu!
* * *
Hora de
vigília, luneta à tiracolo, começo a escalar o muro que divide nossa casa do
vizinho para ir ao meu observatório, ou seja, o telhado do galinheiro lá nos
fundos do quintal, recanto sagrado de que trato adiante no capítulo seguinte.
Desde o final de dezembro do ano anterior eu me entretinha com este hábito, no
que, aos poucos, fui harmonizando
meu tempo com a maravilhosa mecânica celeste ─ parodiando o velho Joaquim Nabuco: época do aprofundamento das minhas ligações sensíveis
com a natureza e a vida universal, os nervos todos de minha periferia intelectual...
Ah, primoroso
céu outonal de minha terra!... e, realmente, era belíssimo ali na Usina aquele céu de março no início das noites ─ para
usar uma feliz expressão do Jorge Mautner, “aquela tapeçaria mágica das
estrelas do hemisfério sul resplandecendo em opulência”.
Enfim, eis-me ali, entregue ao raro luxo da
solidão durante longos momentos de encanto! Já
são passados mais de 40 anos, mas, lembrando destas velhas noites, ainda posso sentir claramente aqui na mente o mesmo sabor daquelas deliciosas sensações!
A noite veio descendo mansa, e Sírius ─ a
primeira e mais brilhante estrela do céu ─, foi elevando aos poucos, pálida,
mas já irradiando parte de sua luz de prata na imensidão do firmamento. Belíssima estrela esta ─ a que eu mais gostava de observar com
minha luneta, admirando aquele seu brilho cintilante, em cores variadas e em rápida sucessão. Sírius, Sírius!... Aquela belíssima
estrela que o inspirado e sensível Visconde de Taunay, atravessando solitário os
sertões do Mato Grosso por ocasião da Guerra do Paraguai, definiu assim:
“Faísca desde logo
Sírius, a mais bela estrela que contemplam os olhos do homem; Sírius, a
desferir a todo instante raios que do branco intenso, como chama de magnésio,
cambiam para o vermelho e o verde escuro.”
Curiosamente, se a luz de nosso Sol leva oito
minutos para chegar à Terra, a de Sírius emprega longos oito anos. Segundo os
antigos egípcios, sua primeira aparição anual acima do horizonte Leste
anunciava o período de cheias do Rio Nilo, e, anos depois, vim a saber de um
fato incrível sobre ela, que, na pirâmide de Quéops há um orifício que
atravessa uma de suas espessas paredes de um lado a outro, onde, neste exato
dia, estando-se no altar central, pode-se ver através dele esta estrela em sua
primeira aparição sobre o horizonte. Eu cismava:
─
Deus, que tecnologia era esta que os antigos possuíam que lhes permitia
construir coisas assim com tal precisão?
Quem responderá?
Atrás de Sírius, vinha a segunda estrela
mais brilhante do céu: Canopus, a brilhante estrela que, geralmente, é utilizada
para balizar satélites e sondas do espaço profundo, isto, porque está situada
numa região do céu quase desprovida de outras estrelas brilhantes que poderiam
confundir o sensor ótico automático usado para calibração de órbitas e
trajetórias. Era a estrela que eu gostava de ver quando estava lá no "canto de muro", na quina do quintal do Seu Paulo.
A majestosa constelação de Órion, com as famosas Três Marias ao centro |
A nebulosa de Órion, ou M 42 |
Do outro lado,
para os lados da fazenda Santa Escolástica, na extremidade da constelação de
Eridano, a estrela brilhante Archenar ia se aproximando de seu mergulho no
horizonte. No extremo oposto de Perseu, era o Cruzeiro do Sul que começava a se
levantar no céu atrás das chaminés da Usina, trazendo junto de si a bela dupla
de fulgurantes estrelas: Alpha e a Beta Centauro. Da linha imaginária que cortava
o céu de Norte a Sul, importantes e belas constelações se mostravam aos meus olhos ─ ao Norte: Gêmeos, Touro e Auriga; ao Sul: Lebre, Cão Maior e a
brilhante Sírius, sua rival Canopus; adiante dela, com exceção da Grande Nuvem
de Magalhães, havia aquela região meio que vazia do céu que não oferecia muitos
atrativos. Porém, acima de minha cabeça, majestoso e imenso pairava o quadrilátero
de Órion, e era aí que, inicialmente, eu me detinha, em especial na belíssima
nebulosa que aí se notava mesmo à olho nu, a M 42, vista como um floquinho de
paina à direita das Três Marias. Órion foi a primeira
constelação que eu comecei a observar com a luneta, isto, já no começo do ano
quando, por volta deste mesmo horário, ela pairava acima do horizonte Leste
logo ao anoitecer. Com
o passar dos meses, imperceptivelmente, ela ia se elevando nos céus em noites
sucessivas, quatro minutos por noite, até que, no mês de março, podia ser vista pairando acima de mim já
nas primeiras horas da noitinha.
A constelação da Raposa, ou, no latim, Vulpecula |
─ Ah ééé! É aquela constelação de nome estranho aos pés
da cruz do Cisne, lá no lado Noroeste! Será que dá para vê-la?!
Como muitas
outras pequenas e discretas constelações de nomes lindos, vim a conhecê-la
através do citado livro “Os Mistérios do Firmamento”.
Nisto, levantei-me e fui para o outro lado do
telhado, na extremidade onde voltei-me para o Noroeste, mas nada ─ a
configuração de céu que me permitiria ver a constelação da Raposa ─ tradução do
termo latino Vulpecula ─ fora visível nesta hora e neste ponto do céu até o
final do ano anterior. Mal sabia eu que ela se via uma curiosa nebulosa, a M 27,
por sua inusitada conformação, também conhecida como nebulosa do Haltere, visível
apenas com 10 aumentos.
Até o final do ano anterior, também era
visível a famosa estrela Delta Cepheida, que podia ser observada bem baixa no
horizonte seguindo-se uma linha imaginária partindo do eixo da cruz do Cisne, porém,
os contrafortes das matas situadas acima do “tanque do meio” certamente impediriam sua visão
descortinada.
* * *
No encerramento da
noitinha, as últimas tonalidades alaranjadas do crepúsculo desapareceram nas
barras do horizonte setentrional. As árvores começaram a se fundir à própria
sombra na luz difusa do início da noite propriamente dita. Pairava sobre o
local uma estranha quietude ─ que a densa folhagem dos entornos amortecia
os sons ─, porém, um silêncio sinistro, algo como o da calma que precede uma
tempestade...
Essa sempre era a hora de se ficar com a boca fechada ─ quando muito uma exclamação de espanto ou surpresa, pois o que imperava nestes sagrados momentos era a eloquência do silêncio.
"Estrelas", com Lô Borges, sucesso na época desta história
Vasculhando o céu aqui e acolá, súbito, atraído por um ruído, divisei algo se esgueirando na semi-obscuridade. Tal como eu pouco antes, se equilibrando na linha do alongado muro, um pequeno e estranho vulto passou como uma sombra e sumiu entre as folhagens do chuchuzeiro... Pensei se tratar de um de nosso dois gatos.
Essa sempre era a hora de se ficar com a boca fechada ─ quando muito uma exclamação de espanto ou surpresa, pois o que imperava nestes sagrados momentos era a eloquência do silêncio.
"Estrelas", com Lô Borges, sucesso na época desta história
Vasculhando o céu aqui e acolá, súbito, atraído por um ruído, divisei algo se esgueirando na semi-obscuridade. Tal como eu pouco antes, se equilibrando na linha do alongado muro, um pequeno e estranho vulto passou como uma sombra e sumiu entre as folhagens do chuchuzeiro... Pensei se tratar de um de nosso dois gatos.
─ Nossa, que bicho será esse! Será o Beto ou o Ronrom dando uns bordejos? Será que um dos dois subiu no pé de gabiroba?
A magna questão, na situação em que eu estava, era saber do que se
tratava aquilo... Um sacolejo de folhagens e estalidos de galhos me arrepiaram.
─ O que será isso?!
Não demorou
muito, uma verdadeira estranha confusão se iniciou no galinheiro abaixo de mim, e o que se ouvia era um desespero de pombas e galinhas se esvoaçando feito loucos. Assustado, tomei o muro e voltei rapidamente para casa, e, sem saber que iria fazer algo de que me
arrependeria no futuro, fui avisar meu pai.
Nossa pastora,
a Laika, late incomodada.
Instantes
depois, munido de seu farolete, vamos lá com nosso pai conferir o que se passa
no canil.
― Nossa, mas o que está se passando lá no galinheiro, Wenilton?
― Nem imagino, pai!
Tudo, uma grande azáfama, em que aves cacarejam desesperadas ao mesmo tempo em que esvoaçam pelos poleiros. Junto delas, tão alvoroçadas quanto, as pombas oriundas de um pombal que tínhamos lá na cidade e que fora trazido para a Usina recentemente. Porém, lá dentro, nada late, nada rosna, nada emite ruído em meio à balbúrdia.
― Mas reparou, pai, que os perus estão quietos?
― Estranho...
Varrendo o
interior do galinheiro com o facho de luz, nosso pai vê num canto um
animalzinho cinzento pouco maior que um gato.
— É uma rapozinha! Bichinho maldito!
— Rapozinha, pai?
— Sim, e essa danada é comedora de galinha e passarinho!
— Nossa, pai! Quero ver! ─ falou o Wagner.
— Eu também! ─ disse o Waltinho.
Em seguida, o
velho correu buscar um porrete para dar cabo do animalzinho.
― Segura a lanterna aí, Waltinho, que eu já volto.
* * *
— Lourdes, onde esta quele porrete de peroba?
— Está lá no quartinho.
— Nossa, que música estranha é essa no rádio agora?
— É a nova música do Edu Lobo.
— Aquele do "Upa Neguinho"?
— Esse mesmo!
— Do que ela fala?
— De um vento bravo que surgiu.
— Vento bravo?! Bravo é o que está acontecendo lá no galinheiro!
— E o que está acontecendo?!
— Uma raposinha atacando as galinhas e pombas!
— Nossa!
Enquanto não voltava, para nosso desespero, notamos a rapozinha ia provocando uma verdadeira chacina ali dentro: em meio à escuridão, dar de asas, cacarejos, piados agudos e aflitos, um rebuliço total!
— Vai logo, pai, se não ela vai matar as pombas e
galinhas!
O Waltinho e uma das filhas da Laika, a saudosa Barka, dois anos após a presente história |
― É agora que eu desanco esse bicho! Ilumina direito ela aí,
Waltinho!
A luz caiu em
cheio no bicho, que com a boca escancarada e cheia de dentes, parecia babar de
fome. A paulada pegou no poleiro onde ele se equilibrava e o bicho se deixou
cair no chão.
― Aponta a luz no chão, Waltinho!
― Aonde!
― Procura, caramba!
O que eu sei
dizer é que, no joga luz para lá, joga luz para cá, pareceu que o bicho sumiu do galinheiro!
― Me dá aqui essa lanterna, pô!
...e o bicho desapareceu!
― Que merda, a rapozinha escapou! Mas ela vai voltar, ah,
se vai!
─ Também acho, pai.
─ Bom, já deve estar na hora do Chico City, pai, e eu estou louco para dar umas boas risadas com o Pantaleão!
─ Também acho, pai.
─ Bom, já deve estar na hora do Chico City, pai, e eu estou louco para dar umas boas risadas com o Pantaleão!
─ É mesmo: o novo programa do Chico Anísio, né, pai!
─ Por hoje, então, chega de falar em rapozinhas!
─ Por hoje, então, chega de falar em rapozinhas!
Tem rapozinha no forro
─
Outra raposinha se aninhou no forro da casinha de cachorros, Lourdes!
─ E o
que você fez dessa vez?
─ Daí
que, para afastá-la dali, eu fiz uma trilha de comida do telhado até o Cerradinho.
─ Que
ótima ideia, Walter!
─
Ótima nada!
─ Mas
porquê não?
─ Os
amigos da raposinha fizeram o caminho inverso e seguiram a trilha de comida do Cerradinho até o telhado e foram
se instalar ali!...
* * *
Além dos ataques ao galinheiro, o que
levava o meu pai a matá-los era que no quintal central havia um quartinho do
lado direito, transformado em canil, onde ele criava cães da raça pastor-alemão.
Com a indesejável presença das rapozinhas ali meu pai sentia como se estivesse
perdendo certos direitos de propriedade, e o pior, pondo suas crias em risco. E,
mais grave ainda, ele criava curiós e sabiás.
— Se esse bicho avança nas minhas gaiolas eu dou cabo de todas
as rapozinhas do Cerradinho, ô, se dou!
De
futebol, cabelos, barbas e bigodes
Propaganda da calça jeans US Top |
─ Uma
galinha lá no fundo do quintal, Isnaldo, engoliu um elástico de iô-iô!
─ Ô,
louco, Seu Walter! E o que aconteceu com ela?!
─ Faz
uma semana que ela está botando o mesmo ovo!...
─
Aaaaaah!...
* * *
O Miltinho colocou a cara acima do muro, cumprimentou
meu pai e disse:
─
Isnaldo, vamos embora que o almoço saiu!
O Wagner, que estava sentado no muro
transversal, perguntou:
─
Nossa, Miltinho, que calça invocada é essa, meu?!
─ É a
US Top, a primeira calça jeans brasileira que desbota e perde o vinco!
O Miltinho, na época |
─
Maluquices da moda jovem, Seu Walter!... Espera um pouco aí, Seu Walter. Nisto ele
desaparece do muro. Em seguida, reaparece e exibe um sapato estranho nas mãos.
─
Veja isto, Seu Walter!
─
Nossa, que sapato mais louco esse! Olha o tamanho desse salto!
─ É o
tal “cavalo de aço”. O Tarcísio Meira vem usando um nessa novela nova que está
passando na Rede Globo, e todo mundo aderiu!
─ Eu
quero um pai!
─ gritou o Wagner, no que foi seguido pelo mesmo pedido por todos nós...
─
Desde o último disco dos Beatles, Seu Walter, entrou na moda!
─ Você, com esse visual aí, está que nem o Afonsinho do Botafogo, aquele que, depois da Copa de 70, o
panaca do Zagallo tentou proibir de jogar, porque estava cabeludo, barbudo e
bigodudo!
─
Pode crer, que caretice a do Zagallo!... Grande jogador, o Afonsinho! O
radialista Big Boy disse que vai sair agora em abril um compacto do Gilberto
Gil com uma música dedicada à ele!
─
Soube que ele brigou na justiça e, dias atrás, conseguiu se tornar dono do
próprio passe?
O Marcos, de calça "boca de sino" e sapato "cavalo de aço"
A direita, o muro através do qual eu acessava meu observatório
|
─ Esse cara é fera!
─ Sim, mas só espero que ele não caia na besteira de processar o Gil pela música em sua homenagem!...
─ Sim, mas só espero que ele não caia na besteira de processar o Gil pela música em sua homenagem!...
─
Porquê o senhor diz isso?
─ Não
viu que o Fio Maravilha processou o Jorge Bem querendo faturar uma em cima dele!
─ Que
safado, o Fio! Não sabia dessa!
─ E a
música está aí, todo mundo cantando junto com a Maria Alcina!
─
Linda música, grande homenagem! Que ingrato esse Fio! Nenhuma maravilha na
traição que ele fez!
* * *
─ Pai,
um frango já está bom para comer com três semanas de vida?
─ É
óbvio que não, Wenilton!
─ Então,
como é que ele não morre de fome?!
─
Engraçadinho! Mas para o apetite das rapozinhas, três semanas de vida já está
de bom tamanho, né?
* * *
A gente sabia quando o bichinho estava lá no telhado, que escutávamos claramente os ruídos que ele fazia ao se deslocar pelo forro. Para chegar até esse canil, usava ela um muro que vinha lá dos fundos onde ficava o Cerradinho, reserva esta que, como já dito num capítulo específico, foi erradicada ao final de 1972 para dar lugar à depósito do Restilo e às leiras laterais que receberiam o vinhoto oriundo dele.
Às vezes, nas horas do lusco-fusco, eu flagrava uma rapozinha vindo pelo muro, com aquele seu jeito engraçado de se locomover: o andar compassado e aquela ginga que só ela tem. Lá vinha ela — acho que um macho, pois todo pimpão —, quiçá em busca da galinha cega do Alphonsus, pobre Alphonsus, digo obre galinha cega... toda. Sua figurinha sinistra ia se cristalizando conforme imergia da escuridão em direção as luzes no corredor do quintal. Porém, passando por uma latada de chuchus, pelos caibros junto à parede, entrou ela por um vão do telhado e sumiu discretamente forro adentro.
— Pai,
a rapozinha voltou! Eu vi ela chegando quando estava lá no telhado do
galinheiro. E ela entrou no forro da casinha dos cachorros!
—
Bichinho desgraçado! Mas o que é que você estava fazendo lá em cima do telhado do
galinheiro a essa hora no escuro?! Tá louco, menino?!
― Eu
tenho ido lá ultimamente ver as estrelas com a luneta.
― Tá
bom, tá bom, mas vamos lá ver se a rapozinha está no forro mesmo.
―
Wenilton, você que, pelo jeito, já está com prática de subir em telhados, vamos
subir lá comigo e tirar umas telhas para ver se ela está lá mesmo.
― Mas
ela não morde, pai?!
―
Não, não precisa ter medo: ela só rosna e mostra e os dentes, mas não ataca não.
Subimos. Bastou tirar umas
telhas e iluminar o interior com o farolete, e lá estava a danada com suas dentalhas
à mostra e rosnando ameaçadoramente.
— Mas, pai, porque elas vem vindo aqui agora?
— Devem estar com inveja da Laika e querem criar por aqui...
— É sério, pai?!
— É sério, pai?!
— É claro que não, menino! É brincadeira minha...
Abril
de 1973: um mês inesquecível
Foi no abril de
1973; sim, meu caro: abril de 1973, mais precisamente no dia 6 ─ portanto, um
dia e um mês inesquecível ─ pelo menos para um menino como eu, of course... E já veremos o porquê desse “inesquecível.
A Pioneer, em visita à Júpiter |
Pois bem. O
motivo seu deu quando a sonda espacial norte-americana Pioneer 11 foi lançada com sucesso do famoso Cabo Canaveral, isto
com ampla cobertura da mídia, sendo ela uma das primeiras e principais sondas
do programa de exploração espacial da NASA. A sonda pioneira, na verdade, era a
sua irmã, a Pioneer 10, que havia
sido lançada no ano anterior, em 3 de março de 1972, mas não me recordo desta
data; portanto, mantenhamos o foco na 11.
Antes de mais nada, vale lembrar
que no
mês anterior chegava às ruas do País o célebre Rolls-Wagens, aquela estranha combinação de Fuscão com frente de Rolls-Royce.
Não vou mentir que a novidade não me chamou a atenção ─ meus irmãos acharam o
máximo, mas nada, para mim, era comparável à beleza da Pioneer! O que eu sei dizer é que a famosa frase popular usada para
designar o órgão sexual feminino, proeminente em certas mulheres, ou seja, a polêmica “capô
de fusquinha”, teve de ser revista com o surgimento do Rolls-Wagens...
─ Olha que capô de fusquinha, Wenilton!
─ Esta aí, para mim, Tonholi, está mais para Rolls-Wagens!
─ É
meio quadradadona, né?...
O Gustão, que havia
ouvido a conversa, disse:
─ Esses dias, vi um conjunto pop novo no programa Sábado Som do Big Boy, a Raspberries, e eles tem um Fusca cor-de-rosa desses com o nome do grupo pintado na lataria!
─ Esses dias, vi um conjunto pop novo no programa Sábado Som do Big Boy, a Raspberries, e eles tem um Fusca cor-de-rosa desses com o nome do grupo pintado na lataria!
─ Uau!
─ É deles aquela música belíssima “Don’t want to say
goodbye”!
─ Não sei qual música, é, Gustão!
─ Mas com certeza já ouviu e não sabe que é eles, Wenilton!
Mas,
deixemos estes assuntos para lá, e deixe-me lembrá-los que ali havia também
outro menino aficionado por engenhocas espaciais, que era nada menos que o
Tonholi citado acima.
─ Viu ontem o lançamento da sonda Pioneer 11, Tonholi?!
─ Ô, se vi! Demais!
─ Pelo jeito, vai dar o que falar esta sonda!
─ Se vai!
Era uma sonda linda, a Pioneer, lembrando muito uma antena parabólica de TV, porém, munida com longas varetas eletrônicas a se projetarem radialmente de sua estrutura. Lembremos, porém, que as primeiras antenas parabólicas domésticas começaram a chegar aos lares, isto, em 1975, e nos EUA, ressalte-se.
Era uma sonda linda, a Pioneer, lembrando muito uma antena parabólica de TV, porém, munida com longas varetas eletrônicas a se projetarem radialmente de sua estrutura. Lembremos, porém, que as primeiras antenas parabólicas domésticas começaram a chegar aos lares, isto, em 1975, e nos EUA, ressalte-se.
A placa da Pioneer |
O must desta sonda ─ e que deu o maior ibope ─ foi a (mais famosa ainda) placa de ouro-alumínio anexada entre seus equipamentos ─ aliás, outra já havia sido anexada anteriormente na sua citada irmã, sendo que ambas foram criadas no caso de uma forma de vida inteligente de outros lugares do Universo conseguirem interceptá-las. A placa mostra, dentre outras informações, um casal de humanos representando a raça humana, além de símbolos que mostram a localização da origem da nave, o nosso discreto planetinha.
─ Viu que o casal de humanos impresso na placa da Pioneer
estão nus, Wenilton?
─ Sério? E a mulher é do tipo “capô de fusquinha”, Tonholi?...
─ Para com isso, Wenilton! Por acaso, você não viu o adesivo de
automóveis que foi lançado esse ano?!
─ Que adesivo?
─ Aquele: “Não faça de seu
carro uma arma. A vítima pode ser você”…
─ Há, há, há! Mas você acha mesmo, Tonholi, que o que estas mulheres tem
no meio da forquilha pode ser uma arma?!
─ Depende…
* * *
Fantásticas sondas, as Pioneers: sobre as futuras façanhas,
cientistas calculam que por volta de 14.000 anos ou mais, elas ultrapassarão os
limites da Nuvem de Oort ─ berçário de cometas que visitam nosso Sistema
Solar ─, isto, caso não sofra nenhuma avaria que a comprometa durante a
arrastada jornada, que é quando se libertará em definitivo das poderosas
influências de nossa estrela.
Enfim, para não fugir à verdade, tenho de reconhecer que eu e o Tonholi ainda não tínhamos captado todas as implicações técnicas futuras desta grande façanha que foi o lançamento das Pioneers, mas, certamente, intuímos que algo de extraordinário havia acontecido e “prometia”. Porém, como em outras proezas astronáuticas anteriores, um dia, no futuro, novamente fascinados, iríamos ouvir falar novamente delas e nos certificaríamos de que, realmente, naquela distante data do venerável ano de 1973, o ser humano havia dado mais um de seus grandes passos no espaço, e passo de consequências imprevisíveis.
Enfim, para não fugir à verdade, tenho de reconhecer que eu e o Tonholi ainda não tínhamos captado todas as implicações técnicas futuras desta grande façanha que foi o lançamento das Pioneers, mas, certamente, intuímos que algo de extraordinário havia acontecido e “prometia”. Porém, como em outras proezas astronáuticas anteriores, um dia, no futuro, novamente fascinados, iríamos ouvir falar novamente delas e nos certificaríamos de que, realmente, naquela distante data do venerável ano de 1973, o ser humano havia dado mais um de seus grandes passos no espaço, e passo de consequências imprevisíveis.
Um marsupial tupiniquim
Gambá-comum (Didelphis marsupialis) |
Numa árvore, é animal muito ágil, pois,
como os macacos, é dotado de cauda preênsil, que é utilizada como um quinto membro, sendo capaz até mesmo de andar sobre fios de luz. Bichinho onívoro, come de tudo, principalmente
frutos silvestres ― adora laranja, goiaba e manga ―, insetos, sapinhos e... galinhas
e filhotes de pássaros!... E isso tudo era coisa que havia de sobejo na usina.
E, em se
falando de dentes, amigos, o gambá não perde para nenhum outro mamífero do
reino animal: tem nada menos que cinquenta!
— Nossa, pai, para que ela tem tantos dentes?!
— Para te comer melhor!
― Ah, pai, mas ela não é um lobo mau! ― respondeu o Weber ante a ironia de nosso pai ─ veja: ela até mexe as orelhinhas que nem a Laika!
E o pequeno Weber, com argúcia, notava que, igual aos cães e gatos, o
gambazinho também conseguia expressar emoções através de movimentos da orelha.
* * *
Vivendo no máximo quatro anos, o Gambá-comum
― esse é o nome com que os cientistas pegam mais leve ― é um animal marsupial uma
vez que, como os cangurus, possui uma bolsa na barriga onde carrega os filhotes
que nascem com 1 centímetro após uma gestação de apenas 12 dias. No marsúpio
eles se desenvolvem e, aí dentro, mamam nas tetas da mamãe gambá por até 70 dias. Faz até três
crias por ano, nascendo de 10 a 21 filhotes por ninhada, mas apenas cerca de nove
sobrevivem, pois há grande disputa na amamentação. À esta altura, convém lembrar que o gambá é um animal típico do bioma Cerrado.
― Nossa, pai, um bichinho desses dá mais cria que a Laika! Olha só: deve ter uns 15 filhotes!
― Parece que só perde para os coelhos!...
― Nossa, pai, um bichinho desses dá mais cria que a Laika! Olha só: deve ter uns 15 filhotes!
― Parece que só perde para os coelhos!...
Os adultos são de cor cinza escuro e os
filhotes pretos, com a ponta do focinho e do rabo de cor branca. Sabe-se
que os filhotes, quando já podem se locomover, saem à cata de alimentos. Nas
primeiras excursões fora da bolsa da mãe, é engraçado vê-los, pois andam
encarapitados no dorso da mãe ou dependuram-se em seu rabo.
* * *
─
...ah, Seu Paulo, eu não consigo dormir de noite mesmo!
─ E o
quê é dessa vez, Seu Anjo?
─ Sei
lá, Seu Paulo, acho que é um gambá andando no forro que me acorda!
─
Pára com isso, Seu Anjo! Gambá no Brasil! Onde já se viu! Gambá é no Estados
Unidos! Isso deve ser gato!
Dito isto, ele saiu do consultório, mas
antes disse:
─ Pera
um pouco aí, Seu Anjo, que eu vou buscar algo.
Ao voltar, disse:
─
Olha, este pózinho aqui vai dar resultado.
─
Como devo tomar?
─ Cê
tá louco, homem! Isto não é para você!
─
Para quem é então, caramba?!
─
Para o gato, oras! Ponha no leite dele...
* * *
Weber Daltro, Marcos Coutinho Pereira, David Nascimento e Wenilton Daltro, na época da presente história. |
─ Vai
tomar banho, Weber, que você está fedendo que nem um gambá!
─ Mas
tem gambá no Brasil, mãe?!
─
Tem: você!...
Porém, ele é diferente do gambá “Striped Skunk”
(Mephitis mephitis) que vemos em
filmes e no desenho da Warner Bros ― o
romântico gambá conhecido aqui no Brasil
como Pepe le Gambá ―, e, apesar de o Gambá-comum também viver nos EUA, ele não exala
um odor tão forte quanto o que o Skunk produz. Porém, este não é um marsupial, mas
sim um carnívoro da família Mephitidae. Daí, os norte-americanos usarem nomes
diferentes para ambos os animais, mas a fama de malcheiroso quem granjeia mesmo
é este, o Skunk. Aliás, o gambá tupiniquim, além de embalsamar os ares com seu
cheiro peculiar como defesa quando ameaçado, tem outra curiosa estratégia para se
safar dos perigos: o fingir-se de morto até que o atacante desista do intento...
O romântico Pepe le Gambá |
─ Só
falta, então, mãe, a senhora me chamar de Pepe le Gambá!
─
Quem é Pepe le Gambá?
─
Aquele do desenho da Turma do Pernalonga que a gente assiste na TV!
─ Garanhão
que nem ele você é, né?!...
─ Só
preciso, então, arrumar uma namoradinha mal-cheirosa como eu!...
─ Engraçadinho!...
─ Engraçadinho!...
Do Cerradinho
ao telhado
─ Mas
eu não estou puxando, Seu Walter!
─ Ah,
não é, moleque danado!
─ Não, Seu Walter: eu
estou só segurando ─ quem está puxando é o gato!
E por falar em moleque, exatamente neste mês
começaram os ensaios para a gravação do primeiro disco dos Secos &
Molhados; enquanto isso, o Gonzaguinha arrebentava nas rádios com a "rancorosa" (e belíssima) canção “Moleque”...
* * *
O Wagner e o Isnaldo, na época desta história |
— Até
que essa rapozinha é bonita, né, pai.
— Cê
tá brincando!...
—
Verdade, Walter, olha que pelo bonito ela tem.
— A
coisa pára por aí, Lourdes... A hora em que você sentir a catinga dela você vai
mudar de opinião!...
― O
que eu não entendo é porque essas rapozinhas começaram a aparecer por aqui agora,
Lourdes. Porque antes elas não vinham?
―
Será que não é porque cortaram a mata que tinha aí atrás da colônia, pai? ― indaguei.
― Bem
pensado, Wenilton, pode ser mesmo.
* * *
─
Pare de fazer careta para a Laika, Isnaldo!
─ Foi
ela quem começou, Seu Walter?!
“Muita
bala para pouco bicho...”
Ao fundo, as ruínas do galinheiro, também meu observatório... |
À fraca luz incandescente do quintal, a
molecada toda da colônia se reunia para ver a tal “rapozinha”, que, acuada,
rosnava e mostrava os dentes afiados. Como éramos
meninos, tínhamos receio dela, mas não nos agradava vê-la sendo morta, às vezes
com todos os filhotinhos na bolsa. Isso ocorria a partir do início do mês de
julho, que é quando ocorre a primeira das três ninhadas anuais.
― Não
mata, pai!
―
Porquê, Wagner?
―
Olha direito: ela está com filhotinhos!
― Pior ainda! Aí é que tem que matar mesmo!
― Pior ainda! Aí é que tem que matar mesmo!
―
Ahhhhh, pai!!!
― o Weber lamentou.
― Que
ah, que nada! A urina desse bicho é perigosa e pode transmitir doença, e as
fezes também, pois dá verminose! E se ela morder a Laika pode transmitir raiva
para ela!
―
Raiva, pai, aquela doença dos cachorros loucos que nós vimos quando a gente
morava lá na cidade?
―
Exatamente, Wenilton!
―
Noooossa!
― Não
é meu, mas de seu avô Francisco, e parece que ele o vendeu. Era uma Beretta.
― Ah,
era tão bonito, pai!
― Se
tivesse com ele ainda podia matar o gambazinho, né? ― acrescentou o
Wagner.
―
Muita bala para pouco bicho...
─ Vai
buscar aquele porrete para mim, Wenilton?
─ Ah,
pai, estou com preguiça!
─
Corre lá buscar! Quer moleza, vai empurrar minhoca na descida!
Amok ou
Sede de sangue
Como vimos, o que esse gambazinho gosta
mesmo é atacar galinheiros, e se diz que quando encontra muitas galinhas, como
que tomado por uma loucura repentina, mata mais do que pode comer, mas, mesmo
assim, come carne e bebe sangue até empanturrar-se, e assim, com a barriga estufada, mal pode sair do lugar. Daí que o bicho busca um canto qualquer onde ferra num sono profundo, que é quando pode ser facilmente
morto já que não oferece muita resistência. No entanto, na Usina, nunca
encontramos um nesta condição.
―
Onde o senhor vai enterrar a rapozinha, pai, se matar ela? ― perguntei.
― Que enterrar, que nada! Vou jogar ela lá atrás do muro e está de bom tamanho!
Diz a literatura regional que essa sede de sangue é
talqualzinho a das onças — talvez a tal da “amok”, aquela estranha condição de que falava o escritor Stephan Zweig, a das pessoas afetadas por um estado psíquico que beira a
loucura, uma paixão súbita que as acomete levando-as a atos impensados, onde chegam a praticar ataques de fúria cega.
Aliás, quiçá a expressão “bêbado como um gambá” derive também deste hábito, mas o consenso é de que o gambá gosta de cachaça e dela se embriaga se lhe oferecem...
Por outro lado, não são poucos os que têm
predileção pela carne desse gambazinho, como os índios e caipiras de nossa
terra. Cita-se que, após a retirada da tal glândula que produz a catinga, sua
carne se torna comestível e quem a provou diz que é muito saborosa, tão boa
quanto a de frango, aliás, nos EUA, onde é conhecido como “Opossum”, também é
iguaria das mais estimadas. A diferença desta espécie é que ele costuma se “fingir
de morto”... enquanto o nosso fica imóvel, com os olhos arregalados e a boca
aberta, mas, diz o povo, que quando ele espreita onça por perto, também costuma
fingir...
* * *
― Quem canta?
― É uma tal de Roberta... Roberta... ah, sei lá!
― Qual o título?
― "Killing me softly".
― E o que quer dizer?
― A Nilza me disse que é "Me matando suavemente".
― Que título estranho para uma música romântica!...
― À propósito, matar suavemente é coisa que você não faz com as rapozinhas, né, Walter?...
― Queria o que: que eu descesse o sarrafo nelas com amor e compaixão?...
― Há, há, há! Mas, Walter, esta música é linda mesmo! Ergue um pouco o rádio, vai!
― É pra já!... tá bom aqui em cima, perto da luz, Lourdes?...
― Engraçadinho!
“Filho
de gambá é raposa”
Coleção "Os Bichos" |
Quanto ao fato de as pessoas geralmente
confundir esse gambá com uma raposa, o escritor Amadeu Amaral, em seu livro “O Dialeto
Caipira” (1920), registra uma antiga pegadinha infantil: “Sabe de uma coisa?...
Filho de gambá é raposa”, e afirma que pode vir daí a confusão, isto, de modo semelhante
ao que se dá ao urubu o nome de “corvo”.
Mas, falando de outro grande escritor, quando releio aquela sonora página, devoto
que sou do santo Eurico, ─ digo, do meu mestre naturalista Eurico Santos ─, ele me garante que
um dia se deparou com 14 galinhas que foram mortas por um gambazinho desses, no
que o animal fora morto, e à pauladas, isto, após ser encontrado “embriagado”
de tanto se empanturrar do sangue das pobres aves. Esta nota mostra o quanto este
animalzinho pode trazer prejuízos aos criadores de aves.
“Após
a façanha, bêbado de sangue, ou, o que é mais certo, amolentado por uma
digestão trabalhosa, por sobrecarga, o bruto deita-se a dormir naquele
mesmo palco da tragédia, onde o Seu João, dono das galinhas, na manhã
seguinte, armado de cacete, dá-lhe cabo do canastro, jurando que de ora
avante matará todos os gambás que lhe aparecerem”.
* * *
Uns três anos após estas ocorrências ―
pois vários gambazinhos que se aninharam nesse forro foram mortos ― vim, finalmente, descobrir de que animal se tratava: na segunda semana de setembro de 1974, chegava às bancas
a coleção Os Bichos, da Abril
Cultural ― que eu colecionei ―, e num dos fascículos do primeiro volume, no caderno Campo e Cerrados Brasileiros, lá estava
o “Gambá”, que, por pura falta de conhecimento, eu (também) imaginava ser animal não
existente no Brasil.
―
...nossa, parece que eu conheço esse bicho!
Num texto curto, porém bem explicativo, vim
a saber um pouco das características desse curioso animalzinho. As ilustrações
estavam à cargo de um desenhista que eu já conhecia e admirava, um velho desenhista
da revista Combate, o grande Jayme Cortez, que na parte concernente aos animais
brasileiros, era o encarregado de ilustrá-los.
—
Nossa! Então não é uma raposa, mas um gambá! — e fui correndo mostrar para meus
pais e irmãos.
─
Esse bichinho confunde a gente mesmo: é meio raposa, meio rato, meio gato ― menos gambá! E, cheira mal...
* * *
Coleção "Os Bichos" |
Registra a história que o príncipe Francois Ferdinand Philippe Louis Marie d’Orleans (1818-1900), que desembarcou no Brasil em 1838, quando deixou nosso país levou consigo, dentre outros animais, "uma sarigueia com seus filhotes no bolso", no entanto, uma preguiça com um filhote foi o animal que mais o surpreendeu: "O animal mais incrível que jamais vi".
Enfim, amigos, esse simpático marsupial
merece maior respeito entre os homens, já que, além deste “feito”, ele é um nato caçador
de cupins, ratos, gafanhotos e cobras por excelência, sendo resistente ao
veneno da jararaca, o que o levou a ser utilizado em estudos sobre soros
antiofídicos. E mais, lembrando de sua bela pelagem, o bichinho é domesticável.
―
Mãe, e se a gente pegar um filhotinho, será que não dá para criá-lo? A gente
coloca ele lá no viveiro junto com os preazinhos! ― perguntou o Weber
ingenuamente.
― Se
você fizer isso, a rapozinha não vai comer os preazinhos, Weber?
― É meeemo, mãe!
Paura
de raposas, digo, de cães...
Coleção Geoturismo Nº 1. Filhote da Laika, sede da fazenda Bom Jesus, em 1970 |
Nos quatro anos em que aí moramos, quatro
ninhadas foram obtidas, e a última ─ ou as duas últimas ─, creio que vieram da
Barka, uma bela filhota da Laika, escolhida a dedo por meu pai. Realmente era linda a Barka, a principal cachorra de minha
vida, e que por isto mesmo mereceu um capítulo só seu nesta obra memorial. Um
de seus irmãos foi comprado pelo proprietário da fazenda Bom Jesus, e nunca me esqueço o dia em
que nosso pai chegou todo orgulhoso em casa com um folheto à cores documentando
a cidade ─ que era o fascículo número 1 da coleção Geoturismo ─, e numa das fotos, lá estava ele, todo bonachão,
deitado num gramado em frente a sede ─ belo cão cujo nome se perdeu.
* * *
Enquanto isso, meu irmão lá na escola...
─
Weber, esta redação sobre sua cachorra Laika você fez sozinho?
─
Não, professora?
─
Então, quem mais participou?
─ A
Laika, professora.
─ !!!
─ !!!
* * *
Pois bem. O pedreiro que ia trabalhar na reforma
era familiar ─ velho conhecido ─, o humilde e bonachão Roberto, que era irmão
de nosso tio Augusto Paura, outro funcionário da Usina.
─
Mas, Walter, essas rapozinhas não atacam e não mordem não?!
─
Fica, tranquilo, Roberto, que se tiver alguma na casinha, ela fica no forro,
escondida, pois só sai à noite.
─ Hummm...
Mas esta tua cachorra aí morde, né, Walter!
—
Fica tranquilo, Roberto: ele só gosta de carne de primeira...
—
Hãnnn?!
— Brincadeira, Roberto!
— Brincadeira, Roberto!
* * *
— Wenilton, saberia me dizer qual é o
masculino desses três animais: vaca, égua e raposa?
─
Raposa, professora.
─
Muito bem, Wenilton!
─
Mas, professora, eu já li uma história com o nome raposo. Eu
tenho uns livros que eram de meu pai, do escritor Cretella Jr., e num deles tem
um conto chamado “As calças do raposo”.
─ Ah,
sim, Wenilton, eu conheço esse conto! É do Medeiros e Albuquerque; conto muito
bonito, por sinal. Esse conto quase sempre está presente nessas seletas de livros
de Português. Mas esse raposo aí, se não me engano, é o nome de uma personagem do
conto, acho que um inspetor.
─ Não me lembro, professora.
─ Não me lembro, professora.
Uma cachorra da Era Espacial!
─
Uau, Miltinho, que rock é esse rolando aí em teu rádio!
─ É “Crocodile
rock”, do Elton John!
─
Elton John?! Nunca ouvi falar!
─ Este ótimo cantor, Weber, começou
a fazer sucesso aqui no Brasil faz uns dois anos, quando muito.
* * *
Laika e o Sputnik II |
E alguém aí deve estar se perguntando: “De
onde seu pai tirou esse nome, Wenilton?”. Pois bem: o pomposo batismo adveio do
advento da Era Espacial, não da ala norte-americana, mas da soviética, do
célebre Sputnik II, aquele belíssimo
satélite, ou nave, que no distante 3 de novembro de 1957 levou o primeiro ser
vivo ao espaço, ser vivo este que era nada mais nada menos que uma nobre cadela, que atendia
pelo pomposo nome de Laika, cachorra que, por sinal, era educada e não mordia
ninguém...
─ A
Laika do Sputnik, pai, era uma cosmonauta, e não uma astronauta.
─ Mas
qual a diferença, Wenilton?
─
Cosmonauta é soviético, e astronauta é norte-americano.
─
Hummm... E como você sabe disso, Wenilton?
─ Mas como você não sabe, pai?!
─ !!!
─ Mas como você não sabe, pai?!
─ !!!
* * *
E o Weber voltou da escola...
─
Mãe, a senhora acredita que a minha professora nunca viu uma rapozinha?!
─ Gambazinho, Weber!
─ Sim, gambazinho!
─ Gambazinho, Weber!
─ Sim, gambazinho!
─ Mas
isso é bastante difícil, hein, Weber!
─
Pois é, mãe: eu desenhei um e mostrei para ela, e ela perguntou o que era.
─ Ah,
mas se fosse o Wenilton que tivesse desenhado ela ia falar que conhecia sim,
ô, se ia!...
* *
*
A pastora Barka, filha da Laika, diante do portão do quintal |
Entre soluços, descontrolado e nervoso que estava, ele perguntou?
─
É-ela é va-vacinada, Se-Seu Walter? Na-não vou pe-pegar raiva?
─
Fique tranquilo, Roberto! De raiva já basta o temperamento dela...
─ Hu-hummm...
Nós, crianças, rimos disfarçadamente na hora... Horas depois, rimos a valer!... No dia seguinte, pintou o remorso, doeu em nós todos... sentimos pena e compaixão...
─ Ele
olhou por cima, ela atacou por baixo!... ─ explicou o Weber.
─ O
Roberto não tem boca para nada! ─ disse o Waltinho.
Afinal, era uma boa e humilde pessoa, o
Roberto!
* * *
Os caninos da Laika não descansaram por aí.
Meu irmão Weber se recordou de outras vítimas:
“Acho que a Laika
mordeu vários. Vira e mexe eu encontro um da Usina falando que foi mordido por
ela: a Silvana, o Teschinha... Acho que o Gumercindo da marcenaria também ─
esse merecia porque era chato!.... Isso, fora o pau que ela deu em outros
cachorros...”
* * *
─
Não, Wenilton.
─
Nunca?!
─
Pensando bem, até hoje só aquela mordida da tua cachorra, a Laika, mas, para
mim, aquilo não foi acidente.
─ Mas
porquê você acha que não foi um acidente?
─ Oras,
Wenilton, ela mordeu de propósito!...
* * *
A Laika... bela, mas, meio brava...
─
Muito brava, Wenilton!
─
Hummm...
* * *
Minha mãe estava irritada.
─
Você já tomou banho, Weber?
─
Ainda não.
Ela se irritou mais ainda...
─ E
está esperando quê, seu molequinho desobediente?! Vai já tomar banho!
─ Já
vou, mãe! E não grita comigo, que eu não sou o teu marido!!
─ O quê?! Ah,
mas é agora eu vou bater em você que nem seu pai bate nas rapozinhas!
─ Não
mããããe!
O azar do Weber foi que nosso pai viu a
cena!...
— Deixa que eu vou
dar uma surra nele com esse porrete, Lourdes!
—
Isso vai machucá-lo seriamente, Walter: é madeira muito dura!
—
Esta desculpa é porque você não quer que eu bata nele?
—
Não, não... toma esta vara aqui, que é de Santa Bárbara, madeira leve e macia
que usam para fazer palito de fósforo!...
—
Você só pode estar brincando, Lourdes!...
— Então bate nele com doçura!
— Bater com doçura! Com assim?!
— Com uma cana-de-açúcar... meio que Killing me softly...
— Engraçadinha!...
— Então bate nele com doçura!
— Bater com doçura! Com assim?!
— Com uma cana-de-açúcar... meio que Killing me softly...
— Engraçadinha!...
* * *
─ Seu Walter, eu falei para o senhor da música que o Gilberto Gil fez para o Afonsinho, mas sabia que no disco novo do Sergio Sampaio lançado agora tem uma música chamada “Dona Maria de Lourdes”?!
─ Sério, Miltinho?! Uma música com o nome de minha esposa! É aquele cantor novo da música “Eu quero botar meu bloco na rua”?
─ Sim, ele mesmo!
─ E de que ela fala?
─ É uma letra muito louca, difícil de entender... mas a música até que é bonita!
─ Vou querer ouvir!
Caçando
morcegos
Vinho Cave D'Aubigny |
Dias depois, numa certa noite, um velho
amigo de meu pai, o bonachão Hugo Campos Martins, nos visitou. Vamos, então, travar
contato com este ilustre cidadão, que, assim como outros amigos de nosso pai, era
um habitué de nossa casa. De saída, para descrevê-lo numa síntese, poupo minhas próprias palavras e tomo emprestado uma fala de Erico Verissimo em que ele descreve seu avô:
“sua
prosódia, a cadência de sua voz, sua sabedoria da vida, seus ditos, seu gosto
em matéria de comida, os 'causos' que ele contava, a maneira como se vestia, a
opinião que manifestava sobre política, instituições, pessoas, bichos,
coisas...”
Perfeito, Erico!
─ ...mas esse Opala SS é lindo, hein, Hugo!
* * *
─ ...mas esse Opala SS é lindo, hein, Hugo!
─ Um
senhor carro, Walter: freio a disco, ar condicionado, vidro ray-ban, faróis de
neblina e... vai de 0 a 100 quilômetros em 1 segundo! O problema é que bebe que nem um gambá!...
─ Bebe que nem um gambá! Há, há, há! Boa essa, Hugo! Mas, uau,
que fera esse carro, hein! Mas, Hugo, eu estou louco para sair dessas Decavês ultrapassadas e
comprar um Ford Belina 73.
─ É
um carrinho econômico, é ótimo para quem tem uma família como a sua, com essa meninada toda.
─
Vamos entrar, Hugo!
─ Ah,
olha, Walter, trouxe um vinhozinho prá gente tomar! Manda a Lourdes por na
geladeira!
─
Cave D’Aubigny... hummm... belo rótulo! É importado, francês pelo jeito?
─ Parece, mas não é. É vinho brasileiro mesmo, mas acho que esse é o primeiro grande vinho brasileiro! Uma delícia!
─ Parece, mas não é. É vinho brasileiro mesmo, mas acho que esse é o primeiro grande vinho brasileiro! Uma delícia!
─ E como se pronuncia isto, Hugo?
─ Sei lá, Walter! Não manjo nada de francês!...
Ambos foram para a sala, e minha mãe se
encarregou de um providencial cafezinho.
─
Criançada, trouxe chocolate para vocês!
─
Ebaaaaa!
─
Dessert... bonito rótulo!
─
Recheado com passas e castanhas de caju!
─ Hummm!...
─ Dessert... e como se pronuncia isto, Hugo?
─ Sei lá, Lourdes! E não manjo nada de francês...
─ Mas é francês, Hugo? Pensei que fosse inglês.
─ Se é francês ou inglês, Lourdes, não importa: eu não manjo nada de nenhuma das duas línguas mesmo!...
─ Nem eu...
─ Posso fumar um cigarro, Walter?
─ Sim
Hugo, sem problema.
─
Obrigado!
─ Mas
que isqueiro chique esse, hein, amigo!
─ É o
Dupont, mas este é francês mesmo, e banhado a ouro 18 quilates!
─
Uau!
─
Nossa, que gritaria é essa, Walter?
─ São
os meninos jogando bola no quintal... Com crianças dessa idade em casa, parece
que a gente nunca vive em paz!...
─ Na
minha casa, eu fiz um acordo com meus meninos!
─
Qual?
─ Eu
nunca digo à eles o que devem fazer...
─ E
então, Hugo?
─ Daí
que eles não fazem nada!...
─ Há,
há, há!...
─ É
pra rir mesmo, né, Walter, mas quem está rindo mesmo são seus filhos!
─ Mas
o que será que estão aprontando esses danados?!
* *
*
Enganou-se o meu pai: não jogávamos bola, mas... caçávamos morcegos... ou melhor, tentávamos... Ah, o inesquecível o guinchar daqueles
morcegos naquelas velhas noites: sons que, ainda hoje, ecoam nostálgicos nos
desvãos da memória e ressoam lá dentro feito caverna profunda.
O Wagner disse:
─ Um
amigo lá do Grupo Zurita que a gente agitar fortemente uma vara de bambu, ela solta sons agudos de alta frequência, e essa frequência é bem
parecida com a que o morcego solta quando canta.
─
Sério?! ─
me exultei.
─ E
daí que o morcego ouve este som e pensa que está vindo de um inseto, e ele vem
de encontro à vara.
─
Caramba! ─
exclamou o Weber.
─ Na
verdade, os sons que saem da vara confundem o bicho: as ondas da vara colidem com
as ondas emitidas pelo morcego mudando a trajetória e confundindo ele,
e, quando ele vem em cima, acaba levando uma varada!
─
Nossa, que louco!
─
Vamos tentar caçar um, então, com esse bambu do varal!
─
Esse do varal não é flexível. Vamos pegar uma vara de pescar! ─ opinou o
Waltinho.
De vara à mão, o Wagner começou a agitá-la
em círculos em direção ao céu. Nós em
volta ficávamos gritando, cada qual louco para caçar um também, mas nada de um
morcego se aproximar...
─ Fiquem quietos, se não o morcego não escuta!!
E a vara era agitada para lá e para cá, mas nada!
─ Fiquem quietos, se não o morcego não escuta!!
E a vara era agitada para lá e para cá, mas nada!
─
Caramba, os morcegos parece que estão de greve hoje!
Meu pai, que tinha ido lá fora ver o que estávamos fazendo, ao voltar para dentro disse ao Hugo:
─ Eles estão caçando morcegos com uma vara de bambu! Dá para acreditar?
─ Ah, Walter, eu já fiz isso quando era menino! Uma brincadeira muito excitante! Mas, amigo, nós adultos somos diferentes das crianças: somos atores, estamos sempre interpretando. E não tem outra alternativa, pois, do contrário, nós não poderíamos viver socialmente.
─ Como assim, Hugo?
─ No fundo, Walter, penso que nenhum comportamento social é natural (disse isto fazendo no ar um sinal de parênteses com dois dedos de cada mão). Natural mesmo seria correr e pegar tudo aquilo que desejamos, assim como seus filhos lá fora caçando morcegos. Natural seria batermos o pé no chão e gritarmos quando, querendo algo, somos contrariados. A maneira como nos comportamos socialmente é toda regrada, e não podemos, como as crianças, ser sinceros; por isso, a gente está sempre atuando, fingindo comportamentos, sendo antinaturais. Mas a vida é assim mesmo, e essa maneira de se portar socialmente a gente só consegue após longa vivência e aprendizado. E é por isso que tenho tanta inveja das crianças, de serem naturais, sinceras, verdadeiras, de não guardarem o que pensam, apesar que a toda uma carga de ingenuidade e inocência por detrás disso.
Minha mãe desabafou:
─ Interessante esse ponto de vista, Seu Hugo. Nunca me passaram pela cabeça esses pensamentos.
* * *
Cansamos em nossas tentativas de tentar derrubar um morcego. Daí, resolvemos brincar de equilibrista com o bambu. Vem dessa época a minha habilidade de equilibrar objetos, e eu costumava tentar equilibrar o pesado bambu do varal na palma das mãos. Com o tempo, consegui equilibrá-los não só na palma da mão, mas também nos dedos do pé, na ponta do dedo indicador, e até mesmo na ponta do nariz...
─
Vocês conhecem a piada do rato e do morcego?! ─ perguntou o Weber, tentando
quebrar o gelo.
─ Conta
aí!
─
Então o ratinho estava passeando um dia de noite com a mãe dele, e, de repente,
passou um morcego voando, e ele gritou: “Alá, mãe, um anjo!”
O Wagner, fazendo cócegas em seu próprio
sovaco, soltou uma risada forçada...
─ Não
tem uma piadinha mais sem graça para contar, Weber?! ─ ironizei.
─ Ah, e morcego não é rato com asas não, viu, seu
tonto!
─ Ah, vai caçar sapo, Waltinho!
* * *
O sapo Cururu (Bufo marinus) |
Pela mais incrível das coincidências, um
enorme cururu surgiu do orifício de saída d’água do muro e foi se colocar abaixo
da luz da quina do telhado.
─
Olha um sapo ali! Vamos brincar com ele!
─
Vamos, mas como? ─
perguntou o Wagner.
Nisto, o Weber lembrou-se de algo:
─ O
China, meu amigo lá do Zurita, disse que ele e o irmão dele de vez em quando caçam
um marimbondo e depois jogam ele dentro do congelador, e deixam ele lá por um
10 minutos.
─ Mas
o que isso tem a ver com o sapo?
─
Calma, que eu chego lá! Daí que eles tiram o bicho meio congelado lá de dentro
e amarram uma linha na cintura dele. Logo depois, quando que ele volta à vida,
ele quer fugir voando, mas não pode, pois está preso pela linha. Assim eles
ficam passeando pelo quintal com o marimbondo voando preso na linha...
─ Há,
há, há!... que barato!
─ Mas
diga aí, Weber, como vamos fazer o sapo voar!... ─ ironizou o Waltinho.
─ Só
se for aquele sapo com asas que o Wenilton sonhou lá na cidade aquela vez...
─ Ah,
vai caçar sapo, Wagner! ─ respondi enfezado.
O
Weber opinou.
─ Já
sei: vamos colocar uma bolinha de papel na ponta de uma linha e tentar caçar o
sapo! Acho que ele vai pensar que é um besouro e vai tentar comê-la!
─ Boa
ideia!
Daí que quando o sapo botava aquela língua
enorme para fora, erguíamos a bolinha num rápido puxão, enganando-o. Uma
certa hora, o Waltinho notou que o sapo atacou a sombra da bolinha refletida no
chão. Foi um festival de risadas. Com a descoberta, a brincadeira rolou em
torno disto: fazendo a sombra da bolinha se aproximar diante do sapo, ele,
iludido, ficava ali feito tonto na vã tentativa de caçá-la esticando sua língua
flexível...
O quintal frontal, e, ao fundo, o pé de Gabiroba. |
─ Há,
há, há!... que barato!
Uma hora, sem querer, numa distração o
pobre sapo engoliu a bolinha verdadeira!...
─
Nooossa, meu, ele engoliu a bolinha e a linha ficou para fora!
─ Que
judiação isso! ─
esbravejou nossa mãe que tinha vindo ver o porque de tantas risadas.
─ E
agora, mãe: como vamos tirar a bolinha de dentro dele?! ─ perguntou o Weber.
─ Vai
buscar uma tesoura para mim.
Ele voltou com a tesoura. Nossa mãe esticou
a linha que ia até a sapo, e rapidamente cortou-a próximo à boca dele.
─ Fica
tranquilo, Weber, que a bolinha de papel não vai fazer mal à ele.
─ Para
quem come esses besouros cascudos, acho que não vai mesmo!... ─ acrescentei.
Velhas
piadas
Hugo Campos Martins |
─ Foi
o Wenilton que descobriu que era gambá, e não raposinhas como pensávamos.
─ E esses gambazinhos bebem que nem meu carro? ─ ironizou o Hugo.
─ O que elas gostam mesmo é de sangue de galinha, Hugo!
─ E esses gambazinhos bebem que nem meu carro? ─ ironizou o Hugo.
─ O que elas gostam mesmo é de sangue de galinha, Hugo!
─ Lembra daquele caso engraçado envolvendo o Adhemar de Barros e o Jânio Quadros, grandes inimigos políticos?
─ Que caso, Hugo?
─ Certa vez, o Jânio anunciou num comício que trouxera seu adversário com ele, e mostrou para a multidão uma gaiola com um rato dentro... O Adhemar deu um troco para o Jânio, e num comício seu disse que também trouxera adversário e exibiu uma gaiola com um gambá dentro...
─ Há, há, há!... Boa esta, Hugo!
A lembrança
do episódio espicaçou a natural veia piadística do Hugo:
─ Ah,
Walter, conhece aquela velha piada do casal de português e o gambá?
─
Não. Conta aí!
Imitando com perfeição o sotaque lusitano,
o amigo deu dois traguinhos, um no café, outro no cigarro, e deu iniciou à sua anedota.
─
Pois bem, Walter, lá vai! Um certo dia, o Manuel e a Maria resolveram viajar de
avião, mas a esposa insistia que queria levar seu gambazinho de estimação. O
problema é que não havia como embarcar com um animal daqueles, pois era terminantemente
proibido.
─ E
como eles contornaram isso, Hugo?
─ A
Maria, que costumava usar aquelas saias rodadas típicas de Portugal, perguntou
ao marido: “Mas Manuel, e o gambá?! Eu não vou viajar sem o meu bichinho, não!
Mas, onde vamos escondê-lo para poder entrar no avião?!”. Na maior serenidade, o Manuel respondeu:
“Oras pois, Maria, coloque ele debaixo da saia!”. A esposa, encafifada,
perguntou: “Mas Manuel, e o cheiro? E o Manuel , sem pestanejar, respondeu: “Oras, Maria, o gambá que se
foda, raios!”
Enquanto o velho Hugo matava o restinho de
café após dar um giro na xícara, meu pai se esborrachava de rir. Rimos com ele, mais por seu riso que
por entender a piada...
─ O
que é "que se foda", pai? ─
Perguntei.
─
Nada, Wenilton, e vai lá na cozinha agora e manda sua mãe trazer o vinho.
─ Aí,
pai, viu: então dá para a gente criar uma rapozinha como bichinho de estimação!
─ Não
é rapozinha, Weber, mas gambá! O Wenilton não te disse, não?
Eis que adentro a sala trazendo às mãos o
volume 4 da Coleção Vovô Felício, e
mostro a todos uma belíssima ilustração do Joselito, aquela que ilustra a singela
história “O franguinho desobediente”.
─
Gostei deste teu boné, hein menino! (ao ir ao quarto buscar o livro, aproveitei
e vesti o boné que havia ganho, um boné com uma linda estampa quadriculada em azul e
amarelo, que foi o primeiro que tive em minha vida)
─ Foi
o Aércio
Zangerolamo que deu prá molecada. É lá da
nova loja de autopeças dele, a Asamade.
─ Ah,
eu dei um pulinho lá, esses dias.
Coleção Vovô Felício, vol. 4,“O franguinho desobediente” |
O senhor Hugo diz:
─
Deixa-me ver, Wenilton... hummm... Coleção Vovô Felício, não conheço... Que escritor é esse, Lourdes? Sabe?
Nossa mãe, que havia acabado de entrar na
sala trazendo o vinho, explicou:
─
Essa coleção de livros compramos para os meninos anos atrás, mas parece que só
o Wenilton lê, não é, Wenilton?
─ É,
mãe.
─ Esse
tal do Vovô Felício me parece que é meio que uma espécie de Monteiro Lobato,
pois também escreve para crianças.
─ Hummm...
mas que desenho é esse que você queria mostrar, Wenilton?
─ É
um franguinho prestes a cair nas garras de um gambá, Seu Hugo!
Nosso pai intercedeu...
─
Taí, Weber! Tem certeza de que você quer mesmo ter um gambá de estimação?...
─ Humm...
─ Hum, é?! Nem um nem dois, moleque! "Gambá de estimação"!...Não sei de onde você saiu com essas ideias de
Pedro Bó, moleque!
O Seu Hugo interrompeu a repreensão de meu pai:
O Seu Hugo interrompeu a repreensão de meu pai:
─ Weber, vem cá, menino: você conhece a piadinha do gambá!
─ Não, Seu Hugo! Conta, por favor!
─ Pois bem. Uma gambazinha estava andando para lá e para cá, quando parou para coçar a bolsa! Andou mais um pouco e, novamente, sentiu coceira na bolsa. Na terceira vez, ela ficou brava, e tirando um filhote de dentro da bolsa, bateu nele, dizendo: "Eu já falei para você não comer bolacha na cama!"
─ Hi, hi, hi! Piadinha legal, Seu Hugo!
Por esta época, eu gostava de deitar no chão e ficar ouvindo a conversa dos adultos. E lá veio mais uma do inspirado Hugo!
─ Meu avô me disse que, lá na Paraíba, eles chamam esse bichinho aí de Timbu, e disse também que o rabo de gambá pisado e bebido com água é um ótimo estimulante.
─ Deus me livre! ─ exclamou minha mãe.
─ E tem mais, Lourdes: ele é ótimo para acabar com escorpiões!
─ Mas não é a galinha que come escorpião, Seu Hugo?
─ Às vezes, mas como o escorpião tem hábitos noturnos, é à noite que o gambazinho pega eles.
─ Olha só! Quem diria!
* * *
─
Lourdes, desliga esse rádio! Isso é hora de ouvir música caipira?! Música
caipira se ouve de manhã!
─ Mas
essa é a Gal Costa que regravou índia, o sucesso de Cascatinha e Inhana!
─ É
mesmo?! ─
Exclamou o senhor Hugo ─ A Inhana é
cantora aqui da nossa terra!
Nossa mãe desligou o rádio.
─ Já
que não é hora de ouvir música caipira, vamos ouvir outro tipo legal de música!
─
gritou o Weber. E daí que ele foi lá na rádio-vitrola na copa e colocou para
rolar em som bem alto um dos compactos que havíamos ganhado de presente da
Daisy Dadona: nada menos que “Son of My Father”, com o cibernético Giorgio!...
─
Nossa, Lourdes, até aqui vocês estão ouvindo isso! Lá em casa os meus filhos
não tiram esse disco da vitrola!
─
Aqui também, Hugo!...
Súbito, a Luciana fez uma pergunta à nossa mãe:
Súbito, a Luciana fez uma pergunta à nossa mãe:
─ Mãe,
quem ama é amoroso, quem sabe é saboroso, e o feminino de rapaz é raposa. É isso, mãe?
Meus pais e o Hugo riram a valer; a Lu riu também, mas sem entender o por quê...
─ Criança
diz cada uma, hein, Lourdes!
─ De
quando em quando ela solta umas pérolas dessas, Hugo! ─ acrescentou meu pai.
─ Então, Walter, um brinde às nossas crianças maravilhosas!
─ Então, Walter, um brinde às nossas crianças maravilhosas!
* Este capítulo faz parte da série de 11
livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 ─ OS DEVANEIOS
DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA ─ Vol. 5 ─ The watcher of the skies ─
dez. 1972 a mar. 1973”. Os livros estão em processo de confecção sem
prazo para lançamento.
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