sexta-feira, 13 de setembro de 2013

VISITAS A SÍTIOS E FAZENDAS

Velhos hábitos rurais - O “liame forte que era o compadrio” - O homem que falava assoviando!... - Café e fartura - Um roubo abortado!... - O velho sítio “Santa Maria” - Extinção de hábitos e de animais - Terra de antepassados


“Visitávamos as fazendas nas
vizinhanças, almoçávamos e  lan-
chávamos em casa de todo mundo.”
 (Os Anos 40. Raquel Jardim. 1973)

“Quando a gente chega
numa terra estranha,
 numa casa estranha
a beira estrada,
como tantas por aí
O cachorro avisa,
a criança se esconde
 entre as pernas de seu pai,
e não quer mais sair”
 (Quando se chega.
Gonzaguinha. 1981)

"Do que diziam as matronas, dou pouca notícia.
Quase nunca me detinha a ouvi-las, pois, ou
praticavam doutrora, evocando o finado Cosme, a
finada Angélica e outros defuntos, só de mim
conhecidos nas fotografias do álbum de fecho
dourado e capa de veludo carmesim, ou se
entretinham em assuntos caseiros, de 
escasso interesse, para nós infantes."
(A Menina do Sobrado. Cyro dos Anjos. 1979)




Velhos hábitos rurais 

Maria de Lourdes e Weber, 1964
Após nossa mudança para a Usina, nos primeiros anos nossa família teve por hábito visitar os sítios e fazendas que se situavam nas redondezas. Estas visitas, feitas sempre após o almoço, eram entretenimentos que, à nós crianças, enchiam de satisfação e alegria. Não sei afirmar que eram visitas feitas sem aviso prévio — isso é pouco provável, porque estes sítios para os quais íamos não eram tão próximos da Usina.

Apesar das múltiplas ocupações domésticas, minha mãe Maria de Lourdes sempre encontrava tempo para cumprir esses “deveres” sociais, como rever parentes, retribuir visitas e cumprir convites para festas feitos por amigos moradores da região. Na verdade, naqueles tempos, mesmo com cinco filhos e muito trabalho caseiro, a vida seguia mansa, organizada e sem as correrias típicas da cidade, havendo tempo de sobra para tudo. É verdade que tinha a ajuda de uma empregada, mas mesmo assim procurava participar de tudo em casa, desde os serviços de cozinha e lavanderia, limpeza da casa, até as compras e idas ao médico na cidade quando adoecíamos. Além disso, costurava também e cuidava para que não faltassem pães caseiros, doces dos mais variados tipos, que fazia em formas e tachadas, como doce-de-leite, sagu, bolos, manjares, abóbora, laranja, figo, goiaba e mamão, além de curau e pamonha.


O "barracão de açúcar" na entrada da Usina
Estas visitas rurais, um hábito antigo e comuníssimo entre pessoas que vivem no campo em todo o Brasil, eram mais comuns no passado, obviamente. Por exemplo, no período em questão, cerca de 50% das pessoas viviam no campo, de modo que além das visitas entre sitiantes, ainda haviam muitas visitas entre estes e gente da cidade. Era quando se davam os encontros no cumprimento das promessas e convites entre familiares, comadres e compadres, madrinhas e padrinhos, ou mesmo de novos amigos. Portanto, conosco não fora diferente.

Nestas visitas aos sítios e fazendas, às vezes um ou outro parente da cidade vinha se reunir à nós. À tarde, com sua chegada, vindo com o ônibus após o almoço, arrumávamos bolsas e  cestas e partíamos todos empolgados em busca do sítio da família que nos convidara. Nós crianças, de pés no chão (se assim desejássemos), mal deixávamos nossa casa e já íamos pela estrada à frente das mães explorando as novidades da paisagem, todos descuidados, arrancando flores selvagens, bagas de mamona e flechas de capim, catando maços de cigarros usados, ou, o melhor, comendo goiabas que encontrávamos pelo caminho. Às vezes, uns meninos escalavam barrancos; outros arremessavam pedregulhos e paus em postes, cercas e passarinhos, mas não nas andorinhas que veraneavam nos fios elétricos na estrada, que as mães diziam serem elas aves sagradas e apedrejá-las era pecado. 


O “liame forte que era o compadrio

Sítio “São Dionísio”, 2011
Relembro com detalhes daquela que foi a primeira vista que fizemos a um sítio já morando na Usina. Era o sítio “São Dionísio”, do proprietário homônimo, o velho “Seu” Dionísio Mendes Garcia, situado, para quem vinha da cidade, logo após a ponte sobre o córrego Araruna — a velha “ponte do Pelegrini”. 

Fora a devoção, o nosso Dionysio usineiro nada tinha daquele santo, tampouco de outro Dionísio secular, o Pequeno Dionísio, aquele que fixou a data em que Jesus teria vindo à Terra, e que permanece até hoje. Tinha, porém, um pouco do Dionísio Nascimento ─ um tio meu, que foi um segundo pai para mim ─, o qual ostentava um cabelo vigoroso, grosso e rígido que calvície alguma ousara passar perto: uma cabelama ─ pouca testa e muito topete , ao que parece, também exibida pelo Pequeno Dionísio e mesmo pelo citado santo, um mártir do catolicismo que, mesmo decapitado, diz a tradição, havia carregado a própria cabeça decepada até o local onde deveria ser enterrado!...

Mal chegando à entrada do sítio, com a animação e o vozerio crescente de nós crianças, cães latiam e vinham prontamente em nossa direção. Estes cães criados em sítios geralmente são animais que vivem à solta, acostumados com visitas mesmo de estranhos, e, por isso mesmo, mansos, embora os cães mais novos possam ficar hesitantes entre serem agressivos ou hospitaleiros, mas quase sempre basta uma cheirada discreta em nossas pernas, seguida de um afago nosso em suas cabeças, e tudo corre tranqüilo.


Ponte do Pelegrini, década de 1970
Os sitiantes, alertado pelos dos cães, saíam para o terreiro e vinham nos receber e, em nossa aproximação, se havia crianças pequenas na casa, estas, naturalmente, se aproximavam junto de seus pais e ao lado deles ficavam até que o medo fosse suplantado pela curiosidade incontrolável de se relacionar conosco. Aquele que parecia ser o dono do sítio assoviou, e os cães prontamente se acercaram dele e ficaram quietos.

Os adultos, mal se achegavam, se cumprimentavam em apertos de mão, abraços e beijos. E a gente chegava como quem bota o pé na soleira de uma casa há muito frequentada. Às crianças cobrava-se o então respeitoso hábito oriundo dos tempos coloniais o singelo “beija-mão” , o que fazíamos com certo receio, já que lá na cidade não estávamos tão acostumados a isso — no máximo cumprimentávamos nossos avós maternos e padrinhos de batismo assim. Aliás, vale dizer que esse hábito morreu em Araras na virada das décadas de 1960/70, e hoje, relembrando, sinto uma certa nostalgia, pois era algo muito bonito, resquício do “liame forte que era o compadrio” de que nos falava o grande folclorista Câmara Cascudo.

Adentrando o compartimento escolhido para receber nos receber — um rancho na lateral da casa (foto ao lado) —, cadeiras, bancos e tambores eram prontamente providenciados.

— Vamos, se assentá, pessoal. Que bom ocêis tê vindo!

O Wagner olhou para cima e perguntou ao Waltinho:

— Que jóça é aquela pendurada lá em cima?

O irmão respondeu:

— Fica quieto que a conversa ainda não chegou no chiqueiro?

Sítio “São Dionísio”, 2011
Os adultos riram...

O primeiro item a ser providenciado era água, e água fresca, de boa qualidade colhida na mesma hora no poço, que todo sítio tinha o seu nestes tempos e que água boa era! Em instantes a esposa do “Seu” Dionysio surgia no rancho com uma jarra e canecas para nos servir. Em todos os sítios era assim: senhoras com ares de humildade, amáveis criaturas, polidíssimas, sempre com um olhar tranquilo para receber as visitas. Éramos recebidos como se há muito nos conhecêssemos e fôssemos da casa: “Demoraro pra aparecê, hein, comadre!”; “Pois é, ‘Seu’ Dionysio, já era tempo para cumprir o convite que o senhor fez para o meu marido lá no escritório!".

Curiosamente, mais de quatro décadas depois, retornando ali para fotografar o sítio, quase não reconheci este rancho, tão pequeno era, e que me parecia enorme naqueles velhos dias!... 

A conversa animada rolava solta — para usar uma expressão de Mark Twain: "havia tagarelice de recepções cordiais". Nós crianças, limitávamos a ficar sentados nos tambores ou em pé, todos curiosos olhando os dos objetos dependurados pelo rancho, como torradores de café (a tal "jóça" do Wagner...), facões, instrumentos para lavoura, garrafões, peneiras, funis, apetrechos de pesca e... nenhum brinquedo!... Com o tédio crescente e a falta de interesse na conversa dos adultos, alguém se arriscava a ir para o quintal, no que era acompanhado pelas outras crianças era quando todos começavam a se conhecer melhor, e mal o faziam já iam engendrando possíveis brincadeiras. As árvores frutíferas eram sempre as escolhidas, e, ao contrário de nós, os meninos do sítio subiam por elas com a ligeireza de macacos, habilidades que, em breve, também teríamos. .



O homem que falava assoviando!... 


Dionísio Mendes Garcia
Nesta visita, ocorreu algo que pelo menos nós meninos nunca mais esquecemos, assunto que, vira e meche, vem à baila nas reuniões de de família nas festas de final de ano. Ocorre que o “Seu” Dionysio tinha um defeito na fala talvez algum problema periodontal , e sempre que acabava de pronunciar uma frase, vinha ela acompanhada de um pequeno assovio!... Quando um de nós meninos, atento à conversa notou essa particularidade, a novidade correu de boca a boca, contada com a mão em concha nas orelhas. À princípio, ficamos intrigados com aquele curioso cecear no final de cada palavra, mas, depois, achamos graça e tínhamos de morder os lábios para não rir, pois cada vez que o velho abria a boca, lá vinha o sonzinho sibilante no final!... 

Lembro-me que na volta da visita, vínhamos tentando imitar a fala do velho Dionysio, mas mesmo na imperfeição de nossos arremedos, ríamos gostosamente, pois achávamos aquilo realmente engraçado. Pode ser até que ele sofria de asma, o que faz o peito chiar, mas, segundo os mais velhos, a coisa era muito diferente, afinal, mal ele terminava uma palavra, lá vinha o tal de assoviozinho como um estribilho musical!


Ainda que o seu linguajar sibilante lembrasse o Tenente Porfírio do Machado de Assis — segundo algumas senhoras, sujeito "mais perigoso do que uma lata de nitroglicerina" —,  o “Seu” Dionysio era a bondade em pessoa, gente de mansa conversa, caipira de uma humildade infinita, gestos comedidos, homem com brandura de painas do dente-de-leão. Como o hortelão “Seu” Anjo, o “Seu” Dionysio compunha uma interessante figura, com a diferença de que era um sertanejo da mais pura cepa! 

Dionysio, nascido no distante 11 de outubro de 1915, faleceu à vésperas de completar redondos 80 anos, em Araras em 25 de setembro de 1995, quando já não mais morava em seu velho  e aprazível sítio.




Café e fartura

Após os assuntos e as novidades serem colocados na ordem do dia, o café era o segundo item a ser providenciado. Digo café, mas por trás desse “café” havia um mundo gêneros de gêneros alimentícios! A mesa da sala era arrumada pela dona da casa enquanto se passava o café e esquentava o leite. 

─ Gente, o café está pronto!

Era assim, com essa transnominação caipira, que as visitas eram convidadas à uma “pequena” refeição vesperal, sendo que o café era apenas um dos muitos itens... Quando todos adentravam a sala, se assustavam com a quantidade de alimentos colocada para se fazer um simples desjejum vespertino: café, leite, suco de laranja, bolo de fubá, pão caseiro, bolachas de maisena, broas de milho, queijo fresco, manteiga, doces de compota, e até mesmo um caldo de cana, curau ou pamonha, se era época de safra. Era uma verdadeira fartura, para não dizer orgia gastronômica, coisas que, hoje, a gente só se depara em pousadas beira-mar no café da manhã, à preços nada módicos.

Curioso notar hoje, que, quando era criança, a impressão que tinha é que para se passar um café para as visitas se levava por volta de meia hora e esse era o ritmo da infância. Hoje, adulto, vejo que um café é passado em meroscinco minutos e esse é o ritmo dos adultos!...

Nestas horas, nenhum dos sitiantes pensava em ligar o rádio, ou mesmo a TV, mesmo porque, neste final de década, a TV ainda era um luxo não acessível à maioria. Por outro lado, a verdadeira vida estava ali naquele saudável compadrio, nas conversas animadas, nas relembranças e novidades, na fartura do café, nas predições sobre o futuro dos filhos, na esperança de melhores dias. As horas pareciam não passar – era o compadrio a serviço da amizade selada sob fortes laços, a simplicidade, a alegria, a camaradagem.

Enquanto de um lado, sob a sombra do telheiro do rancho, os adultos conversavam, serenos e com risos comedidos, do outro lado, ao ar livre, a criançada se divertia com o que houvesse, rindo gostosamente. Nestas horas, já afagávamos sem medo algum os cães da casa, que a amizade havia sido conquistada num simples pedaço do pão, que eles comiam depois de nos mirarem como que hipnotizados, a língua para fora minando saliva...

No final da tarde, pela altura do Sol, nossa mãe comunicava o desejo de pôr o pé na estrada. Na despedida, os sitiantes tinham a gentileza de nos acompanhar até a porteira da fazenda. Novos apertos de mãos, abraços e beijos, e partíamos com a alegria ainda enchendo-nos de satisfação, prometendo voltar quando pudéssemos. Alguém se virava para trás, e lá ainda estavam eles, voltando a nos acenar fraternalmente. 


Terreiro do sítio “São Dionísio”, 2011
Nas mãos, nossas mães traziam cestas cheias de frutas variadas presenteadas por eles. Voltávamos cansados para casa, mas na compensação de ter nossos corações aquecidos pela sincera e afetuosa acolhida dos amáveis anfitriões. 

Estas visitas não eram de surpresa, mas “agendadas”, seja com os sitiantes que iam ao escritório da Usina e contatavam meu pai, seja nos encontros de minha mãe no ônibus com os sitiantes amigos, ou conhecidos no calor da hora. Relembro, no entanto, que meu pai nestas visitas diurnas não nos acompanhava, que, durante o dia, obviamente ele se encontrava no trabalho. Estando com meu pai e os sitiantes nestas horas, talvez  se ouvisse convites singelos como: “Seu Vart, dá um pulinho lá no meu sítio em Elihu Root prá busca umas laranja e maracujá, que tá perdeno”; “Aparece lá no sítio quarqué hora fazê uma visita, cumpadre!”; “Seu Vart, sábado agora tem festa junina lá no meu sítio! Conto com sua família lá!”, no que meu pai respondia: “Iremos sim, seu Bicatú, com prazer!” 


Um roubo abortado!...


O sítio “Sinhá Moça”, em outubro de 2011.
Outro sítio que visitamos certa vez, se situava pouco adiante do sítio do Dionysio, do lado leste da Usina, o sítio “Sinhá Moça”. Tinha este nome este sítio, pois, perto dali, numa extinta fazenda, fora filmado o célebre filme homônimo, isto em 1951. 

Fora justamente no "Sinhá Moça, o lugar onde eu vim a cometer um dos meus inúmeros pecadilhos de infância, deslize que vale a pena relembrar, pois o ato demonstrava uma paixão nascente minha.

Já na entrada do sítio, um pouco distante da sede, havia um paiol e passando por ele, curioso como toda criança, quis ver o que ali havia, e observando seu interior pelo vão inferior da porta, vi ao alcance de minha mão três punhais dispostos no chão de tijolos. Os três eram lindos, com afiadas lâminas e ricos desenhos coloridos no cabo. Uma misto de tentação e cobiça me subiu à cabeça, pois e fiquei completamente maluco ao ver aqueles objetos. Vale dizer que, àquela idade, facas e punhais já eram um dos meus sonhos de consumo, objetos muito úteis na confecção das armas que fazíamos em nossa brincadeiras, como arapucas, estilingues, lanças, flechas e arcos, bem como um objeto indispensável nas pescarias. 


Punhal fabricado na Bahia
É aí que entra o meu pecadilho venial: enquanto minha mãe e minha tia eram recebidas na cozinha e nós meninos batíamos pernas pelo sítio, eu desgarrei de todos e, sorrateiramente, subi até o paiol. Chegando à porta, por debaixo dela subtraí um dos punhais... Realmente, era um lindo objeto: lâmina comprida, afiada e pontiaguda, o cabo trabalhado em anéis de plástico, nas cores vermelho e preto, lembrando um pouco o desenho de uma cobra coral. Esse pequeno punhal, muito provavelmente deveria ser originário da Bahia, estado onde eram fabricados estes artigos naquela época (foto), e distribuídos por todo o Brasil. Rapidamente, antes que alguém aparecesse, eu o ocultei cuidadosamente no meio do capim que havia em frente ao paiol, de modo que quando por ali passássemos na volta, eu finalmente o tomaria para mim... Em seguida, como se nada houvesse acontecido, voltei à companhia dos meninos...


Celeiro do sítio “Sinhá Moça”, outubro de 2011.
No final da tarde, após as despedidas, quando finalmente passamos por ali eu disse à minha mãe que havia visto um punhal caído ali perto, mas não tive coragem de pegá-lo, e pedi que fôssemos todos procurá-lo. Eu, meus irmãos e primos, minha mãe e minha tia Cida. As buscas foram infrutíferas, e eu voltei para casa frustrado...

No caminho, encafifado, pensava comigo: “Mas o quê aconteceu com o punhal?!”, “Porque ele não estava mais ali onde eu o ocultei?!”, até que uma luz iluminou minha cabecinha: alguém havia me visto ali, furtando e escondendo o punhal no capinzal! Só podia ser isso! Pelo resto do caminho, envergonhado, experimentei um arrependimento profundo, medo até, por ter quase a certeza de que alguém oculto me viu ali em pleno delito!...

Hoje, adulto, compreendo perfeitamente o que é esta espécie de tentação , e que toda criança, por melhor que seja sua criação, não está imune à ela. À propósito, o escritor Nelson Lustosa Cabral, em seu livro de memórias, o saboroso Paisagens do Nordeste (1962), explicou este infantil sentimento de cobiça: 
 
como a alma infantil do sertanejo se 
deixa seduzir e dominar pela fantasia
de posse de uma arma de fogo, de 
um punhal bem trabalhado ou de uma 
faca de ponta de bainha bem vistosa!

Poucos anos depois eu vi um punhal desses na oficina de meu avô Francisco Rocha, e disse-lhe que sempre sonhei possuir um, e usei como argumento que ele seria muito útil em minhas pescarias nos tanques da Usina. Para minha alegria, fui presenteado com o cobiçado objeto! Porém, como eu era criança, ele teve o cuidado de aparar a extremidade pontiaguda da lâmina, ante a minha vontade de gritar para que não o fizesse. 


A estrada que levava ao Sítio "Sinhá Moça"
Na verdade, os próprios pais evitavam que seus filhos portassem objetos cortantes, perfurantes e potencialmente incendiários, mas que menino dispensava um canivete e uma caixa de fósforo?... Ainda assim, há pais conscientes e que sabem que a educação de uma criança pode ser construtiva com a utilização de determinadas práticas rudes, viris e com uma certa dose de perigo, perigo este que, aliás, está longe da violência virtual e inconsequente dos modernos jogos de vídeogames.

O que eu sei dizer, é que com a "mutilação" do punhal, o presente perdeu seu encanto naquele exato momento. Aceitei-o, mas já não era mais o mesmo punhal para mim: era uma faca acéfala, com seu belo desenho comprometido. Tanto o é, que, anos depois, quando nos mudamos para a cidade, eu o vi um dia caído no quintal de terra no terreno lateral de nossa casa e não dei importância alguma – ele ficou ali esquecido, e deve ter sido consumido pela terra.



O velho sítio “Santa Maria”

Fazenda Santa Maria, julho de 1995
Outra localidade rural que visitamos na época a última dentre todas as visitas , foi a fazenda Santa Maria, situada entre as fazendas Montevidéu e São Bento. Sua proprietária era irmã de minha avó, a senhora Francisca Alves, mãe de Bárbara Curtulo, que mora atualmente no bairro rural Elihu Root. Inicialmente, a Santa Maria, fazenda antiga que era, situada no então Bairro Gabirobas, pertencera ao senhor Arthur Piquerobí Aguiar Whitaker (1882-1947), e sua esposa dona Leopoldina Viana. Whitaker, era figura importante nos meios paulistanos, fora deputado na capital por quinze anos seguidos, além de secretário da justiça do Estado de São Paulo em 1946.


Pôr-do-sol visto à partir da Usina.
Na companhia desta minha avó e minha tia Cida, numa tarde ensolarada, como previamente combinado, fomos visitar esta fazenda. Tarde de sol, nuvens cúmulos em todos os quadrantes, lá fomos nós estrada afora. Nesta visita, porém, meu pai esteve presente, pois como ficava ela distante da Usina uns três quilômetros, tivemos de ir de carro. Lá chegando e recebidos pelos parentes até então desconhecidos para nós crianças, o ritual, como noutras fazendas e sítios anteriormente visitados, se repetiu tal e qual o velho costume. No reencontro, éramos recebidos com o coração em festa, uma alegria saudável de quem tivesse recebido em casa a visita de uma comitiva de artistas: “Há quanto tempo a gente não se vê dona Nica!”; “Como você está bonita, comadre!” “E olha essas criança, como crescêro!” Havia sinceras manifestações de contentamento, tanto era a saudade e a alegria de se reencontrar.


Capela de Santa Maria
A mesa posta como no costume, a mesma fartura das recepções rurais, e nós crianças novamente a se fartar com a grande variedade de guloseimas. A impressão que se tinha é que nossos parentes não tinham limite e concessões para agradar os familiares que há tempos não viam; e mesmo com toda essa cordialidade e sobejo, pareciam não estar satisfeitos.

Todos inteirados das novidades e assuntos principais ocorridos entre uma visita e outra, íamos todos conhecer as dependências da fazenda. Vimos a velha capelinha logo na entrada da fazenda, que mais parecia uma santa cruz de beira de estrada (foto), percorremos as plantações, terreiros, oficinas, estábulos, comemos frutas colhidas no pé e outras maravilhas.  E, assim, a tarde seguiu tranquila como que no ritmo arrastado de um velho caramujo – “as cumadre em conversa prum lado, os cumpadre pra outro”, e nós crianças eufóricos com os novos e desconhecidos ambientes para se brincar, até que o Sol já baixo no horizonte veio sinalizar que já era hora de partir.



Extinção de hábitos e de animais

Gavião-caramujeiro (Rostrhamus sociabilis)
Situado em terras baixas, os entornos da fazenda Santa Maria eram uma região ótima para as aves lacustres, pois aí, até hoje, se encontram brejais e banhados de grandes proporções, habitat ideal do gavião-caramujeiro, que, por isso, é visto também em grande número nestas paragens. Além disso, a fazenda tinha e ainda tem por toda a sua volta imensos laranjais, de modo que se estar aí numa noite de Lua cheia de agosto era uma verdadeira experiência sensorial: o perfume inebriante dos laranjais que florescem neste mês invadindo tudo, a luz de magnésio da Lua a pratear a água dos banhados e a folhagem das plantações, as saracuras três-potes cantando nas matas ciliares, o sem-fim e seu canto enigmático assoviando pela noite afora, como já pude experimentar em meus atuais safáris fotográficos por ali!





Terra de antepassados

Hoje, constato que nossos parentes moravam num lugar invejável, bonito, saudável e até mesmo poético; além disso, a fazenda conserva ainda o isolamento e a tranquilidade daqueles velhos dias, e acredito que por várias décadas ela ainda se manterá assim, no doce e sossegado retiro daquelas paragens esquecidas...

Todo esse pedaço do norte de Araras é região sagrada para mim, pois aí, em boa parte de suas vidas, meus avós paternos e maternos trabalharam, se amaram, tiveram filhos, e progrediram. Quando nos mudamos para aí, passávamos simplesmente a pisar no mesmo chão dos entes queridos que nos antecederam.

Memórias de um tempo em que as pessoas se visitavam e eram bem recebidas, os laços afetivos eram mais bem atados e existia um sentido em se dar valor à amizade e ao nome da família, o que irmanava parentes, vizinhos e moradores de sítios e fazendas, e mantinha todos na mais perfeita cordialidade. Tempos tão serenos e despreocupados estes, que custa crer que passaram tão rápido, já que inúmeras passagens parecem ter acontecido há tão pouco tempo! Ah, eu ainda posso ouvir o “Seu” Dionysio e sua fala terminada pelo estribilho de um engraçado assovio! Cobiço ainda, debaixo da porta daquele velho paiol, a pequena peixeira de cabo coral! Revejo com os olhos da memória aqueles mesas cheias de fartura! E a mesma estranha sensação que me passam as santas cruzes de beira de estrada (de que me falava minha avó Ana), sempre me invade toda vez que revejo a foto da velha capelinha da Santa Maria!...

Sim, a velha fazenda Santa Maria e a maioria dos sítios citados ainda existem, mas lá já não mais estão as mesmas pessoas amáveis que nos recebiam que os mais velhos já se foram , e se encontramos alguém, são apenas descendentes que não chegamos a conhecer, ou mesmo novos e inacessíveis proprietários. Amargamente, tudo passa, tudo muda; assim, até revisitar estes locais hoje é difícil, pois, como já disse aqui, o acesso livre já não é mais permitido, encontrando muitos deles delimitados por cercas de alambrado e porteiras.

E pensando nestas coisas todas, me vem à mente agora um pensamento, e fico a cismar sobre até quando os bandos de caramujeiros ainda passarão por ali em seus voos serenos aos finais de tarde em busca de pernoite, para depois retornar à rotina de um novo amanhecer. Chegarão, talvez, os dias tristes em que eles, assim como nós, não mais poderão voltar para estas paragens tranquilas que nos são tão caras? Quem garantirá sua perpetuidade, quem?!... 

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Chegando em casa, ao ver o Lobo, nosso pastor alemão, tive um estalo e perguntei ao Waltinho:

─ Será que o Seu Dionysio assovia enquanto está dormindo?

─ Porque você pergunta isso?

─ Já pensou se isso acontecer, e quando ele assoviar na cama e todos os cachorros correm para o quarto!...
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* Este capítulo faz parte da série de oito livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 — OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA. Volume 2 — Those were the days, i will never forget janeiro de 1969 a dezembro de 1971". Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.

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