“Deus ― até ele sofre o confinamento da forma,
é minimizado numa solidez qualquer, para que
a fé do homem possa percutir no coração.”
(O Cruzeiro. Ubiratan Lemos,
23-7-1974)
“Sentado à porta sobre dura pedra,
Folheia grossa Bíblia; de joelhos
Ao seu lado, Naida, atenta e muda,
Considera as gravuras primorosas
Do mais belo entre os livros conhecidos."
(Anchieta ou O Evangelho nas Selvas.
Canto II-IV. Fagundes Varella. 1875)
“Minhas primeiras lições de moral vieram,
além de meu pai, das aulas de catecismo,
e da convivência diária com as irmãs.”
(Maria Suzana de Stefano Menin, ouvidora
da Unesp – unespciência, mar. 2014)
além de meu pai, das aulas de catecismo,
e da convivência diária com as irmãs.”
(Maria Suzana de Stefano Menin, ouvidora
da Unesp – unespciência, mar. 2014)
Turmas de Catecismo da Usina em princípios da década de 1960 |
As primeiras aulas de Catecismo naquele
final de 1971... deixem-me suspirar... Este é o assunto de que tratarei agora.
Vale dizer que sempre nutri amor e afeto, e boa memória, por tudo que é herança de um passado feliz, por aquilo que “não é mais”, por coisas que são capazes de evocar ótimos e reconfortantes sentimentos, e que, por isso mesmo, me são caras, como o foram os primeiros rudimentos de religião. E é importante frisar que este é mais um daqueles casos a que os memorialistas definem como “experiências autobiográficas consequentes”, ou seja, as experiências marcantes e inesquecíveis de nossas vidas.
É chegada, então, a hora de varrermos a incômoda poeira acumulada pelo tempo e entregarmo-nos ao diálogo da saudade!
Agora, no exato instante em que redijo este texto e me ponho a pensar sobre tudo, do fundo de minha memória se insinuam rostos, cenários, vozes, músicas, objetos, cheiros... e até eu vejo a mim mesmo, menino ainda, naqueles idos... Mas, antes mesmo de dar início a este trabalho, bem sei que se as cenas e a imagem das pessoas são fugidias e querem se esvair, devo reajustar o foco da lembrança, buscando outro posicionamento, experimentando algo como novos ângulos de visão, outros vieses. Desse modo, noto que a uma probabilidade de algo acontecido, é possível inserir outra, não tão subjetiva, mas aquela que, com um pouco de mais alcance, poderia ser a mesma obtida com recursos típicos de um Nava, ou, quem me dera, de um Proust, mas, quem sou eu?!... Ainda assim, sigo adiante, se não com uma memória de elefante, muito menos com a de um incinerador...
Vale dizer que sempre nutri amor e afeto, e boa memória, por tudo que é herança de um passado feliz, por aquilo que “não é mais”, por coisas que são capazes de evocar ótimos e reconfortantes sentimentos, e que, por isso mesmo, me são caras, como o foram os primeiros rudimentos de religião. E é importante frisar que este é mais um daqueles casos a que os memorialistas definem como “experiências autobiográficas consequentes”, ou seja, as experiências marcantes e inesquecíveis de nossas vidas.
É chegada, então, a hora de varrermos a incômoda poeira acumulada pelo tempo e entregarmo-nos ao diálogo da saudade!
Agora, no exato instante em que redijo este texto e me ponho a pensar sobre tudo, do fundo de minha memória se insinuam rostos, cenários, vozes, músicas, objetos, cheiros... e até eu vejo a mim mesmo, menino ainda, naqueles idos... Mas, antes mesmo de dar início a este trabalho, bem sei que se as cenas e a imagem das pessoas são fugidias e querem se esvair, devo reajustar o foco da lembrança, buscando outro posicionamento, experimentando algo como novos ângulos de visão, outros vieses. Desse modo, noto que a uma probabilidade de algo acontecido, é possível inserir outra, não tão subjetiva, mas aquela que, com um pouco de mais alcance, poderia ser a mesma obtida com recursos típicos de um Nava, ou, quem me dera, de um Proust, mas, quem sou eu?!... Ainda assim, sigo adiante, se não com uma memória de elefante, muito menos com a de um incinerador...
John Lennon, Rolling Stone, 21-1-1971 |
Assim, relembrada deste meu vértice temporal,
convém esclarecer que a historia é daqueles bons tempos do início da
pré-adolescência, em que a vida fluía solta e despreocupada. E, para balizar a
história, naquela época pueril em que eu me entretinha rabiscando papéis e mais
papéis com desenhos e linhas tortuosas, mas tudo cheio de muito sentimento e
verdade.
Nesta idade ─ já com 10 anos (e 30 quilos) montado no lombo no planeta ─, tinha, porém, minhas naturais limitações. Lembro-me claramente ─ em alguma data deste mesmo ano ─, eu sozinho, à noite, à mesa da cozinha tentando a muito custo desenhar o rosto de meu pai a partir de uma foto 3 x 4 sua ─ eu me esmerava, rabiscava, apagava, tornava a riscar, mas nada conseguia; e, por mais que tentasse, nada saía, e recordo-me até ─ nunca me esqueço ─ de chorar de frustração... Lembro-me que, ainda que de modo chinfrim, reproduzindo o que via, eu já desenhava meus heróis: o Homem Aranha, o Capitão América, o Namor, o Thor, o Homem de Ferro, soldados da Segunda Guerra Mundial, dentre outros. Convém também não esquecer que, a partir desta época, desenhar rostos e bustos de pessoas era coisa muito comum nos trabalhos escolares, digo, os diversos personagens célebres relacionados à história antiga do Brasil, como Anchieta, Santos Dumont, Tiradentes, D. Pedro I, e outros tantos, mas eram desenhos sofríveis, feitos a muito custo, e, quando possível, copiados de livros por meio de papel seda transparente. Mas, amigos, desenhar o herói de minha vida ─ um personagem em carne e osso, real, e que todo dia eu via ─ me era coisa totalmente impossível!
Digo herói, amigos, porque como não admirar um homem que era um trabalhador incansável, que labutava dia e noite, mesmo aos finais de semana, só parando para dormir? Além de seu emprego na Usina como contador, nas horas vagas era técnico de futebol, vendedor de televisões e acessórios, bem como criador e negociante de pastores-alemães e curiós. Como se vê, um daqueles membros da nobre estirpe de que nos falava o John Lennon neste ano: a “herói da classe trabalhadora”. Aliás, no dia de meu aniversário neste ano ─ ou seja, 21 de janeiro ─, chegava à bancas o número mensal da afamada revista Rolling Stone, que publicava uma entrevista de John Lennon intitulada... "Working Class Hero”...
Nesta idade ─ já com 10 anos (e 30 quilos) montado no lombo no planeta ─, tinha, porém, minhas naturais limitações. Lembro-me claramente ─ em alguma data deste mesmo ano ─, eu sozinho, à noite, à mesa da cozinha tentando a muito custo desenhar o rosto de meu pai a partir de uma foto 3 x 4 sua ─ eu me esmerava, rabiscava, apagava, tornava a riscar, mas nada conseguia; e, por mais que tentasse, nada saía, e recordo-me até ─ nunca me esqueço ─ de chorar de frustração... Lembro-me que, ainda que de modo chinfrim, reproduzindo o que via, eu já desenhava meus heróis: o Homem Aranha, o Capitão América, o Namor, o Thor, o Homem de Ferro, soldados da Segunda Guerra Mundial, dentre outros. Convém também não esquecer que, a partir desta época, desenhar rostos e bustos de pessoas era coisa muito comum nos trabalhos escolares, digo, os diversos personagens célebres relacionados à história antiga do Brasil, como Anchieta, Santos Dumont, Tiradentes, D. Pedro I, e outros tantos, mas eram desenhos sofríveis, feitos a muito custo, e, quando possível, copiados de livros por meio de papel seda transparente. Mas, amigos, desenhar o herói de minha vida ─ um personagem em carne e osso, real, e que todo dia eu via ─ me era coisa totalmente impossível!
Digo herói, amigos, porque como não admirar um homem que era um trabalhador incansável, que labutava dia e noite, mesmo aos finais de semana, só parando para dormir? Além de seu emprego na Usina como contador, nas horas vagas era técnico de futebol, vendedor de televisões e acessórios, bem como criador e negociante de pastores-alemães e curiós. Como se vê, um daqueles membros da nobre estirpe de que nos falava o John Lennon neste ano: a “herói da classe trabalhadora”. Aliás, no dia de meu aniversário neste ano ─ ou seja, 21 de janeiro ─, chegava à bancas o número mensal da afamada revista Rolling Stone, que publicava uma entrevista de John Lennon intitulada... "Working Class Hero”...
Walter Daltro, 1971. |
Mas, enfim, sigamos em frente e deixemos este assunto de desenhos para mais adiante.
* * *
Transportermo-nos, pois, para os recantos
aprazíveis da velha e boa Usina Palmeiras desta significativa época!
Antes de mais nada, é oportuno lembrar que desde janeiro desse ano uma canção pop de teor religioso explodia nas rádios brasileiras! Está certo, não era uma canção ribombante como a “Aleluia” do Haendel, mas fez um sucesso que não ficou nada a dever, uma vez que até hoje ela ainda ela faz ponta nas rádios e ficou no imaginário da rapeize daquela época. Mas de que canção trato, amigos? É de “Superstar”, o principal tema da ópera rock “Jesus Christ Superstar”, de Andrew Lloyd Webber, um compositor e produtor musical britânico, considerado por muitos como um dos compositores teatrais de maior renome do fim do século 20. É tempo de ouvi-la, abrindo este capítulo!
Antes de mais nada, é oportuno lembrar que desde janeiro desse ano uma canção pop de teor religioso explodia nas rádios brasileiras! Está certo, não era uma canção ribombante como a “Aleluia” do Haendel, mas fez um sucesso que não ficou nada a dever, uma vez que até hoje ela ainda ela faz ponta nas rádios e ficou no imaginário da rapeize daquela época. Mas de que canção trato, amigos? É de “Superstar”, o principal tema da ópera rock “Jesus Christ Superstar”, de Andrew Lloyd Webber, um compositor e produtor musical britânico, considerado por muitos como um dos compositores teatrais de maior renome do fim do século 20. É tempo de ouvi-la, abrindo este capítulo!
À história, então!
Vendeiro
e catequista
A venda do Seu Laerte, vista dos altos do Restilo através de minha luneta |
Ao raiar das primeiras horas das manhãs
dominicais, a Usina banhada pelos oblíquos raios do Sol; e como se fosse início de
noite, a venda do Seu Laerte Borella, o campo de futebol e o Clube
Recreativo já começavam a atrair mariposas humanas feito um irresistível foco de
luz. Adultos e crianças pululavam por todos os lados.
Porém, essa gente humilde parecia viver como se a vida girasse unicamente em torno da própria comunidade, em nome de uma causa comum, e não em função do mundo exterior, da cidade distante. E, na verdade, parece que isto lhes bastava se coisa melhor não houvesse. Que verdadeiro frenesi! ─ entre a profusão verde-canavial e marrom-tijolo à vista do lugar, havia a também a policromia de cores das roupas domingueiras, que, por esta época, sua gente ─ mesmo caipiras em grande parte ─, já se deixava ir submergindo aos poucos no caleidoscópio cromático da Contracultura e da inerente Psicodelia, cujo auge se daria dois anos depois no instigante e imbatível 1973: era então ─ me diz uma revista Geração Pop ─ aquele carnaval de roxo, laranja, verde-pistache, amarelo-limão, turquesa, dentre outras cores espalhafatosas.
* * *
Indo para a aula de Catecismo, parei na venda para comprar uns chicletes. Não foi fácil, cheio estava o lugar de agricultores das colônias, sítios e fazendas dos arrabaldes, além de forasteiros, funcionários da Usina, velhos, mulheres e crianças, todos num falatório que mais parecia um mercado persa...
O Mirão |
─ Vai um coqrete, Seu Jacinto?... ─ ironizou o Seu Laerte, que atendia o Dionísio.
Uns riram. Outros, sem entender a brincadeira, estranharam.
─
Quero um cabide grande, Seu Laerte! Quanto custa?
─
Oito cruzeiros, Mirão.
─
Nossa, que cabide mais caro! Não tem um mais barato?
─ Tem
prego... serve?
*
* *
“Open your eyes
Let it begin with me
Brand new day
Fresh new way to live
The mornin' is callin'
Walk with me into the sun
Let it begin with me
Brand new day
Fresh new way to live
The mornin' is callin'
Walk with me into the sun
Everything is comin' our way...”
─ Vê dois Plocs para mim, Seu Laerte, por favor.
─ É prá já, Wenilton! Indo para a aula?
─ Sim.
─ Me espere, que eu vou com você.
─ Mas a aula é só para crianças, Seu Laerte!
─ A-há! Sou eu quem vai dar a aula de Catecismo, Wenilton!
─ O senhor?!
─ Pois é...
─ Mas a aula é só para crianças, Seu Laerte!
─ A-há! Sou eu quem vai dar a aula de Catecismo, Wenilton!
─ O senhor?!
─ Pois é...
* * *
O
Leiteiro ia passando com sua carroça e seu burro em frente à venda, e o
Mirão, em o vendo, perguntou com malícia:
─ Aonde os dois burros vão a essa hora?
─ Cortar capim para nós três...
─ Cortar capim para nós três...
* * *
─ É a chamada “Volta ao Mundo”, da
Valisére! Afinal, tenho que ir bem vestido para dar uma aula de Catecismo, não é,
menino? O legal dela é que nunca precisa passar a ferro.
─ “Volta ao Mundo”: gostei desse nome!
Com ele empunhando uma bolsa capanga na mão direita, isto, com a alça devidamente passada no punho ─ como era costume ─, fomos para a aula.
Olhando para uma das notas de 1 Cruzeiro que ele me voltou ─ aquela verdinha que tinha a efígie da República ─, perguntei:
─ Parece um anjo esse rosto da figura, né, Seu Laerte.
─ Parece gente ─ um grego ou romano ─; mas você já viu um anjo alguma vez? Sabe se eles são parecidos com nós?
─ Vi anjos num livro de religião que minha mãe tem lá em casa...
─ “Volta ao Mundo”: gostei desse nome!
Com ele empunhando uma bolsa capanga na mão direita, isto, com a alça devidamente passada no punho ─ como era costume ─, fomos para a aula.
Olhando para uma das notas de 1 Cruzeiro que ele me voltou ─ aquela verdinha que tinha a efígie da República ─, perguntei:
─ Parece um anjo esse rosto da figura, né, Seu Laerte.
─ Parece gente ─ um grego ou romano ─; mas você já viu um anjo alguma vez? Sabe se eles são parecidos com nós?
─ Vi anjos num livro de religião que minha mãe tem lá em casa...
O
catecismo
Ilustração do livro "Na Escola de Jesus" |
Mas, esse mundo é insensato, amigos, pois enquanto para uns é licito e racional se cultuar e venerar um terrível instrumento mortal como a cruz, para outros é uma heresia fazer uma imagem de Cristo!... Muitos, rejeitam o Deus-ídolo, isto, mesmo que nunca tenham tido contato direto com o Deus-pessoa!... É fácil notar que os adoradores de imagens e outros ídolos religiosos ─ como a representação de Nossa Senhora, p. ex. ─, tratam seus santos com o mesmo carinho e inocência com que as crianças tratam seus brinquedos, seus super-heróis, artistas, ídolos musicais e bonecos. É mais ou menos por esse caminho e raciocínio que as histórias aqui irão se enveredar.
Convém abrir um parêntese aqui para lembrar que, ao longo do texto, Deus é grafado com inicial maiúscula, e o meu mestre Millôr que me desculpe, porque, ao contrário dele ─ mas, usando suas palavras ─, faço questão de potencializá-Lo assim mais por respeito que por imposição ortográfica. Assim seja!
Convém abrir um parêntese aqui para lembrar que, ao longo do texto, Deus é grafado com inicial maiúscula, e o meu mestre Millôr que me desculpe, porque, ao contrário dele ─ mas, usando suas palavras ─, faço questão de potencializá-Lo assim mais por respeito que por imposição ortográfica. Assim seja!
* * *
Naquele tempo, e naquela comunidade rural, naturalmente, as crianças não tinham fácil acesso à textos religiosos, além de que muitos não tinham televisor em casa, e mesmo o cinema da Usina não passava filmes do gênero. Quanto à missas transmitidas pelo rádio, não me recordo de existirem na época. A Bíblia era coisa de adultos, e, àquela idade, as crianças normalmente não se preocupavam com isso, de modo que o que as supria eram as aulas dominicais de catecismo, onde travavam contato com a História Sacra e os ensinamentos religiosos. Fora isso, só as imagens de santos, os folhetos e sermões nas raras missas que aconteciam no clube, lembrando que a primeira igreja da comunidade só foi construída 10 anos depois, por volta de 1981. Assim posto, temos que destacar o valor didático das imagens que eram apresentadas à molecada, seja nas missas, seja nas aulas, material que, com isso, surtia mais efeito na cabeça de crianças ainda não afeitas à leitura voluntária. Eram representações que, de certo modo, instruíam os novatos, assim como os vitrais, as pinturas no teto e paredes, as imagens dos santos, bem como a série de quadros da Via Sacra na igreja Matriz lá na cidade. Dentre estas imagens, uma me marcou para sempre, e que é o tema central desta história.
Convém esclarecer que essas aulas nem
sempre nos levavam a rezar em casa, mas não raro éramos obrigados a isso, que
era quando, por exemplo, nossa mãe dizia algo como: "Reza para encontrar
esse tênis novinho que você perdeu!"...
Já no início da aula, o Marcos disparou:
─
...e se Jesus voltar, seu Laerte, como saberemos que é Ele e não um farsante?
─ Taí, Marcos, uma boa pergunta! Mas farsante é uma palavra meio pesada, não?... Mas em se tratando Dele realmente, Sua volta será inconfundível e nada haverá de igual no planeta, tenha a certeza!
Dito isto, ele abriu a pagina de uma revista recente, e mostrou uma ilustração que estampava uma a imagem de uma mulher grávida, e acrescentou:
─ Vejam isto, meninos: a empresa Copersucar ─ que vocês bem conhecem, pois a Usina é filiada à ela ─ fez esta bonita reportagem de Natal, e aqui diz: “Antes de entregar Seu filho aos homens, Deus organizou uma família”. Ela representa Maria grávida de Jesus. É deste assunto que iremos falar hoje aqui em nossa aula de Catecismo.
Adesivo da Cristalsucar |
─ O açúcar cristal que usamos lá em casa é da Copersucar, seu Laerte!
─ É o Cristalsucar. Nós usamos também lá em casa. É aquele que vem num saquinho plástico transparente. Mas, criançada, eu vou deixar esta revista aqui na mesa depois da aula, e quem quiser dar uma olhadinha, tem uma reportagem sobre a arte de jogar pingue-pongue, onde há umas dicas de como jogar, fazer saques diferentes etc. Depois, vocês podem praticar lá no Clube com a molecada!
─ Uau!
Desenhando
o Todo-Poderoso
O Marcos C. Pereira, em sua 1ª Comunhão
|
Então o seu Laerte, para quebrar o gelo, iniciou a aula com uma simples
pergunta:
─ Meninada:
na casa de vocês, todos costumam rezar antes das refeições?
O Marcos Pereira se antecipou:
─
Não, Seu Laerte, em casa não precisamos: minha mãe é ótima cozinheira!
A molecada não entendeu nada da malícia do
Marcos, mas o catequista não se
conteve e riu a valer...
─
Isto é uma aula de religião, Marcos, e não momento para gracinhas!
─ Eu só abro a boca quando tenha certeza...
─ O quê que você disse, Marcos?
─ Nada, nada...
─ Eu só abro a boca quando tenha certeza...
─ O quê que você disse, Marcos?
─ Nada, nada...
* * *
─ Mas
o que é isso aí no seu braço, Wenilton? ─ perguntou o Marcos.
─ Uma
tatuagem.
─
Tatuagem de quê?
─ De
um touro.
─
Touro? Mas touro é animal do diabo, Wenilton!
O Zico intercedeu:
─ Tinha que ser um carneirinho, rapai, animal de religião!
─ Tinha que ser um carneirinho, rapai, animal de religião!
* * *
É sempre assim: cada criança é um caso ─ é
única e difere sensivelmente das outras em sua essência e, pessoalmente, vai
construir o seu conceito do mundo e o modo de encarar os ensinamentos da
religião. Normalmente, nesta idade, costumamos indagar sobre o mundo e a vida
sem medo de errar ─ o ego não entra na ponderação ─ elas aprendem sobre a vida
com inocência, mas com verdade.
Naturalmente, éramos mais cheios de uma contagiante alegria de viver e se divertir do que tomados por insaciáveis desejos de saber das histórias magníficas e lições que envolvem a religião, mas, eu, particularmente, primava por ambos os lados ─ como diria o Erico Verissimo ─ o mesmo “insaciável desejo de saber, indagar, alargar horizontes inteiros e exteriores que caracterizavam os gregos na antiguidade” (of course...).
Assim, permeado por este conceito, completo o meu pensamento acrescentando que o autor destas lembranças se vê tentado a declarar que, neste quesito, era uma criança assaz diferente das restantes, digo, “normais” (as usual...) ─ mais ainda que o próprio Marcos ─, mas não tão malicioso... Assim era o meu amigo, que, diante duma situação inesperada, saía sempre pela providencial tangente do humorismo...
Naturalmente, éramos mais cheios de uma contagiante alegria de viver e se divertir do que tomados por insaciáveis desejos de saber das histórias magníficas e lições que envolvem a religião, mas, eu, particularmente, primava por ambos os lados ─ como diria o Erico Verissimo ─ o mesmo “insaciável desejo de saber, indagar, alargar horizontes inteiros e exteriores que caracterizavam os gregos na antiguidade” (of course...).
Assim, permeado por este conceito, completo o meu pensamento acrescentando que o autor destas lembranças se vê tentado a declarar que, neste quesito, era uma criança assaz diferente das restantes, digo, “normais” (as usual...) ─ mais ainda que o próprio Marcos ─, mas não tão malicioso... Assim era o meu amigo, que, diante duma situação inesperada, saía sempre pela providencial tangente do humorismo...
* * *
De volta à trama, digo que, naqueles tempos da Usina, ao contrário de hoje, o Brasil ainda tinha a cara do Catolicismo. Oh, estes modernos tempos incompreensíveis, era de inversão de valores, em que há pessoas que consideram que o ensinar religião nas escolas para as crianças é quase como praticar atos de abuso infantil! A propósito, convém não esquecermos do escritor Alex Nascimento que, certa vez, falou sobre o estudar religião, que, para ele, “é um saco, ninguém pode fazer pergunta, tudo é dogma da fé”. Felizmente, não é o que veremos neste caso, em que, aliás, há muito falatório (e contestação...).
* * *
Antes de começar a aula, o seu Laerte
resolveu pregar uma das madeiras da borda da lousa, pois ela estava se
soltando. O Marcos, sentado logo atrás, observava tudo atentamente, fato que
não passou despercebido do catequista.
─
Você está vendo como é que se conserta uma lousa, não é Marcos?
─ Não, não seu Laerte ─
respondeu o Marcos ─ Estou só esperando
para ouvir o que o senhor vai dizer a hora em que der uma martelada no dedo...
* * *
Vale lembrar que, por esses tempos, eu já me encontrava batizado ─ indivíduo já integrado à comunidade de
fiéis ─, porém, para sacramentar este processo, faltava-me apenas a tal de
Primeira Comunhão, assunto de que tratarei no capítulo seguinte.
— Na
aula de hoje, crianças, vamos falar de Deus, o Pai de Jesus!
─
Uau!
─
Nossa, não sei quase nada Dele, Wenilton!
─ Eu
também, Zico!
Dito isto, o catequista tomou de um giz
branco e no quadro negro traçou uma linha com três curvas, sendo que a porção
central dela era mais alta, assim como uma pequena montanha, e ambas as bordas
se curvando para baixo. No entorno dessa montanhinha, fez pequenos traços
centrífugos, assim como raios de luz partindo de um sol. Depois, para ficar mais vistoso, engrossou os traços.
Ninguém entendeu nada (eu, mais ainda...)
─ O
quê é isso?! ─ alguém murmurou.
Em seguida, com uma expressão de encanto
nos lábios, o vendeiro ─ que de vendilhão do templo nada tinha (como se verá) ─
explicou:
─
Este aqui é Deus, meninos! (oh, sancta simplicitas!...)
─
Deus?! ─ alguém murmurou (era eu...).
Parte de nossa turma |
Notem, amigos, que, em vez de uma figura que deveria primar pelo superlativo, o comedido catequista relegou-a a um plano quase abstrato, minimalista mesmo: um traçado curvo e uns rabisquinhos acima que, à primeira vista, nada sugeriam. Aquele Deus que deveria “estar em todas as coisas”, parecia não fazer morada ali... (Hoje, diria, que, curiosamente, num mesmo traço, o Seu Laerte claramente me remetia a dois famosos arquitetos: Antoni Gaudí e Oscar Niemeyer: daquele ─ astuto observador da natureza ─, parecia seguir o bordão de que “A linha reta é do homem, a curva pertence a Deus”, e deste ─ que acreditava no universo curvo de Einstein ─, seguia a “curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”)
─
Nossa, será que ele tomou uns vinhos antes de vir para cá? ─ murmurou o Marcos maliciosamente...
O Zico o repreendeu entredentes:
─ Que
maldade, Marcos! Você não vai para o céu, rapai!
─ Ué, mas padre não toma vinho?
─ Ele é catequista, e não padre... ─ acrescentou o Paulinho.
Distante da conversa de meu amigos, e fitando atentamente o desenho do catequista, pensei comigo: “Mas... por acaso esse desenho não seria o Sol nascendo atrás de uma montanha?”. Depois, enquanto o seu Laerte estava entretido com
o Franchi, outra besteira me passou pela cabeça, e resolvi murmurar algo para o amigo Zico ─ algo meio herético, reconheça-se ─, e apontando discretamente para o
estranho desenho representado na lousa (antes fosse o “Sol nascendo atrás de
uma montanha”...):
─ Ué, mas padre não toma vinho?
─ Ele é catequista, e não padre... ─ acrescentou o Paulinho.
Distante da conversa de meu amigos, e fitando atentamente o desenho do catequista, pensei comigo: “Mas... por acaso esse desenho não seria o Sol nascendo atrás de uma montanha?”.
─ Zico, ô, Zico, olha bem: não parece a cabeça e o
ombro do Mancha Negra?
─ O
Mancha Negra das historinhas de gibi?
─
Sim.
─
Como é que pode, Wenilton, seu boko moko, comparar Deus com o Mancha Negra!
Você não vai para o céu, rapai!
* * *
|
Lembro-me muito bem dessa ensolarada manhã
do derradeiro mês do ano da graça de 1971, em que o evangelizador falava de
Deus e Jesus como poucos. Não posso garantir que esse pormenor vai por
conta do ficcionista, mas, do contrário, como já o disse, vai por conta da
probabilidade...
Obviamente, desde que me dei por gente, sabia quem era Jesus, pois conhecia Sua imagem, aquela que via num quadro na sala de minha casa, e que está até hoje com a família ─ assunto a que retornarei adiante. Porém, quando ele se referia ao “Pai de Jesus”, a maioria dos amiguinhos de catecismo tinham pouca ou nenhuma referência, e aquela imagem figurativa que o catequista passou para nós era muito estranha. Convém lembrar que, nisto, eu já conhecia a imagem de Deus, que vira num livro, também comentado adiante, livro este que era meio tipo jornal, que, feito criança, numa bela tarde chuvosa dentro do quarto, a gente abre suas páginas no chão e, estendido sobre elas de barriga, se põe a examiná-las curioso e pedalando as pernas no ar.
─ Mas Deus é assim mesmo?! ─ desabafou baixinho o Paulinho para o Marcos.
─ Mas Deus é assim mesmo?! ─ desabafou baixinho o Paulinho para o Marcos.
Mas acontece quer isto era coisa que não importava ao teor da aula; porém, mesmo assim, fomos
obrigados a reproduzi-Lo. Mas oras, era superfácil desenhar aquele Deus esboçado com traços simples! Então, que problema havia?
Em filmagem por drone da FPV em 2019, a Escola, a casa de Catecismo e o Clube Recreativo ao fundo. |
─ “Nuvem Cumulo!” Que é isso?! ─ se espantou o Paulinho.
Como eu era um menino que gostava e entendia um pouco de nuvens, expliquei-lhe:
─
Nuvens cumulos são aquelas nuvens branquinhas de bordas arredondadas, e dizem que
são nuvens de bom tempo.
─
Hummm...
─ É
nuvem de Deus
─ emendou o Marcos... ─, pois se fosse
nuvem do capeta, seria essas nuvens escuras que soltam raios e trovões!
─ O
quê que você está falando aí, Marcos?
─
Nada, nada, Seu Laerte...
Sim, sim, amigos, eram nada menos que aquelas mesmas nuvens que foram citadas e me chamaram a atenção, três anos depois, no disco "The Journey to The Center of the Earth” (1974), do tecladista Rick Wakeman, na Narração Nº 6, pela belíssima voz do ator David Hemmings, onde ele diz: “Cumulus clouds formed heavily in the south, like huge wool packs heaped up in picturesque disorder.”
* * *
O Clube Recreativo, no início da década de 70, visto a partir da casa onde se ministrava o Catecismo |
Àquela altura ─ entre cismas gerais dentro
da classe ─, um sinal de interrogação brotou em minha mente: “Mas, desenhar um Deus de modo meio igual ao que eu
desenhava um sol entre duas montanhas até poucos anos atrás nas aulas aí do
Grupo?! Será isto mesmo?!”
Como se viu, fomos “obrigados” a desenhá-Lo
assim mesmo, uma vez que, como dizia o catequista, ao contrário do “humano”
Jesus, não tínhamos imagem concreta alguma de Deus em que se fiar.
Não posso afiançar se eu, assim como os meninos
europeus, já aos 5 anos fazia perguntas sobre Deus, mas, aos 10, já não havia
como fugir duma situação dessas ─ de contestações... Bem sei que, desde os 7
anos ─ quando se inicia a tal da “idade da razão” ─, já estava eu sujeito ao
pecado, à confissão e ao medo inerente, e como se verá, à
contestação também (e põe contestação nisso!...).
― Mas,
seu Laerte, todo filho não puxa para o pai?
―
Sim, mas...
Eu insistia...
—
...mas ninguém sabe como é a cara de Deus, Seu Laerte?
— Não
é cara que se fala, Wenilton é face, face de Deus! E face, só de Jesus, e olhe
lá!...
Entre minhas perguntas que não queriam calar e mudezes que nada perguntavam, o catequista foi incisivo:
— Aliás, o rosto de Jesus está lá impresso no Santo Sudário, para quem duvidar!
Entre minhas perguntas que não queriam calar e mudezes que nada perguntavam, o catequista foi incisivo:
— Aliás, o rosto de Jesus está lá impresso no Santo Sudário, para quem duvidar!
─
“Santo Sudário”! O que é isso?! ─ perguntei curiosíssimo.
─ É
um pano em que Jesus foi enrolado após ser retirado da cruz, também chamado
mortalha. O sangue e o suor Dele ficaram marcados no tecido , o que causou uma impressão total de Seu corpo!
─ Essa mortalha tem
a ver com aquela coruja branca que passa voando de noite por aqui, não é, Seu Laerte?
A coruja Suindara, ou Rasga-mortalha |
─ A
Suindara, aquela que vem lá do oco da paineira da entrada da fazenda Santa
Clementina?
─ Não sei, mas meu amigo, o Machado, disse que lá na fazenda Capitólio, em Leme, tem umas num galpão.
─ Não sei, mas meu amigo, o Machado, disse que lá na fazenda Capitólio, em Leme, tem umas num galpão.
─
Isso mesmo, Wenilton! Mas isso é folclore, porque dizem que quando ela canta ela imita o sudário
sendo rasgado. Ela também é chamada de Rasga-mortalha.
─ Que
legal! Já tinha ouvido falar!
─
Legal?!
─ Ah,
Seu Laerte, quando a gente está de noite lá perto do casarão abandonado, e ela
passa voando e cantando por ali, a gente arrepia com aquele ruído estranho que ela faz!
─ Mas
chega desse papo, meninada! Vamos voltar ao assunto da aula!
―
Mas, então, Seu Laerte, o homem não foi feito igual à Deus, como diz a Bíblia?
―
Sim, Wenilton, mas não quer dizer que somos a cara Dele, pois...
─ Mas
não é face, Seu Laerte?
Com um sorriso amarelo, ele completou:
─
Sim... então, cada um tem a sua própria face. Isto quer dizer que o homem se
parece com Deus, mas não com um animal. Entenderam?
― Sim ─ concordei, não convencido de todo...
*
* *
Da direita para a esquerda, Binão Mathias,
Celso e Gustão Domingues e Paulo Caetano
|
”Jesus Cristo
Jesus Cristo
Jesus Cristo
Eu estou aqui!”
─ Não sei o que está
acontecendo com essa juventude, com esses chamados rockeiros?! ─ indignou-se o Seu Laerte. Primeiro veio a tal de “Jesus Cristo
Superstar”; depois aquela ruivinha cantando “Meu bom José”; quase junto veio o
Roberto Carlos com “Jesus Cristo”, e, por fim, aquele cabeludo e barbudo do
Beatles com a tal de “My Sweet Lord”! O que eles pensam? Que podem competir com
os compositores religiosos?!
─ Mas são músicas bonitas,
Seu Laerte! ─ acrescentei. Ele meneou a cabeça e virou-se
para a lousa sem falar nada. Mas... voltou-se e acrescentou:
─ Sinceramente: espero que
o Joaquim Gouveia não esteja tocando essas músicas lá no clube, enchendo a
cabeça de vocês!
Muitos se entreolharam ali dentro, prestes a rir...
Muitos se entreolharam ali dentro, prestes a rir...
Antropomorfizando Deus...
O famoso Deus pintado por Michelangelo na Capela Sistina
|
É curioso que, já em 325 d. C., o Concílio
de Nicéia estabeleceu as bases da Igreja Católica e... Deus passou a não ter
mais forma!... Muito depois, a humanidade foi exposta ao chamado “Deus de
Spinoza” ─ o ente despersonalizado e geométrico do famoso filósofo, que ia na
contramão de todas as formas de se conceber Deus como uma espécie de entidade. Segundo
este filósofo, “o nosso destino está marcado”, “Deus é o Universo, e o ser
humano é uma partícula ínfima desse mesmo Universo”.
Porém, já por esta época, havia muitos artistas que retratavam-No como um senhor de barbas brancas sentado sobre um trono. Oras, Deus criou o homem à sua imagem, mas Deus teria a feição ariana como as imagens feitas Dele por humanos que nunca O viram?! Pelo menos, não no desenho do Seu Laerte, que ia totalmente na contramão...
Porém, já por esta época, havia muitos artistas que retratavam-No como um senhor de barbas brancas sentado sobre um trono. Oras, Deus criou o homem à sua imagem, mas Deus teria a feição ariana como as imagens feitas Dele por humanos que nunca O viram?! Pelo menos, não no desenho do Seu Laerte, que ia totalmente na contramão...
Ah, antes o nosso bondoso evangelizador fizesse um deus à imagem
do homem; antes fosse ele um desses neitzchenianos e criasse seu deus à imagem
e semelhança do homem!... Mas não: o Seu
Laerte ― certamente sem o saber ― parecia retratar naquela lousa o Deus de
Spinoza ─ nada daqueles simples traços remetia à patriarcal figura de longas
barbas, o Supremo de poderes sobrenaturais, o ser etéreo dos afrescos de Michelangelo
na Capela Sistina (sim, sim, caro leitor, eu sei: aí já era querer demais!...).
Obviamente, não era o caso do nosso querido
catequista, mas, naqueles tempos se dizia que havia os que formavam uma ideia
tão imperfeita de Deus, que O desfiguravam!... À propósito, cinco anos antes de
nosso catecismo, ou seja, 1966, um tal de rabino Marshal Meyer fora da opinião
que a Igreja não pesquisava novos símbolos para falar de Deus.
─ Me
desculpem, meninada, mas, por mais estranho que pareça, meu modo de representar
Deus é assim!
Daí, que éramos lembrados do sentido oculto daquela representação:
─ Ah, meus meninos, não se
esqueçam do que Jesus disse: “Felizes o que não precisam ver para crer”!
─ Mas São Tomé era um
infeliz, hein... ─ murmurou o Marcos...
─ Você disse alguma coisa,
Marcos?
─ Nada não, Seu Laerte...
estava só pensando alto...
─ Sei...
Era mister que naquele traço simprão deveríamos entrever a
luminosa figura de Deus, mas, estranhamente, acreditem, é que mesmo em sua economia de traços, o tal deus de pouco mais de uma linha numa canetada tinha a imponência de quem está nas alturas
— por assim dizer, alturas de rei que não perdia a majestade! Parecia sim
estar acima de nós, a nos comandar, olhando-nos, velando-nos, ou punindo-nos...
─ Marcos, pára de
cochichar, ou vou te pôr de castigo! (Nunca vi, ou soube, de algum menino ir de castigo numa aula de
catecismo!...)
"Deus e a criação dos animais", pintura de Rafael
|
Enfim, que fosse o Deus de Nicéia, que fosse o Deus de
Spinoza, quiçá o
Deus alado de Rafael — cabeludo e barbudo, de manto esvoaçante —, ou mesmo o Deus
sem rosto do Menotti Del Picchia, mas era Deus, o teu, o meu, o nosso
Deus!...
Mas,
curioso notar que se, hoje, fossemos analisar o caso pelas teorias dos estudos
do desenho infantil, veríamos que entre os 8 e 10 anos as crianças desenham
árvores onde o tronco e a copa são simbolizados por um única linha contínua, de
modo que o desenho do Laerte mais ou menos se adaptava à nossa idade: ele “descia” ao nosso nível de compreensão para poder representar figurativamente
Deus de acordo com a sua concepção. Aliás, dizem os entendidos do ramo que
crianças facilmente impressionáveis ─ como eu (of course...) ─ desenham com traços ligeiros, utilizando sobretudo curvas,
porém, veremos que não foi bem assim o meu caso...
*
* *
Madre Emília Bizzi |
─ Podem ir beber água na escola, se quiserem! ─ orientou o catequista.
Essa madre, cujo semblante um quase nada resta nos sótãos de
minha memória, perguntou:
─ E os alunos, estão indo
bem?
─ Ah, essa criançada de
hoje fazem cada pergunta! Tem cada ideia!
─ Tem que levar na rédea
curta, Laerte!
Desnecessário dizer que as irmãs e catequistas eram o alento moral na Usina nesta conturbada e ousada fase da Contracultura. E as crianças as adoravam, mesmo aquelas irmãs mais rígidas, de cenho fechado, que nunca riam e só repreendiam.
Súbito, no alto-falante do Clube começou a tocar uma canção,
o novo sucesso do Bread, a belíssima “If”...
Nisto, duas meninas se aproximaram. Eram a Tuca Petruz e a
Silvana Godoy, que, cada qual com suas cestas, levavam o almoço de seus pais lá na Balança. O Marcos, na maior cara
de pau, tascou:
Desnecessário dizer que as irmãs e catequistas eram o alento moral na Usina nesta conturbada e ousada fase da Contracultura. E as crianças as adoravam, mesmo aquelas irmãs mais rígidas, de cenho fechado, que nunca riam e só repreendiam.
A Silvana Godoy e a Tuca Petruz na Balança da Usina
|
─ Mas são lindas mesmo
estas duas, hein!
─ São, Marcos! ─ concordei. O amigo emendou:
─ São Marcos?! Eu não sou
santo não, Wenilton!
As duas beldades passaram e deram um sorrizinho.
As duas beldades passaram e deram um sorrizinho.
─ Vamos convidar elas para
assistir Aristogatas com a gente lá no cine Araruna, Wenilton?
─ É uma boa ideia, Marcos!
Meus amigos lá do grupo Zurita falaram que o desenho é demais! Mas, você tem
dinheiro para pagar para todos nós?...
─ Ih, rapai, nóis semo
humirde!...
─ Há, há, há!...
─ Mas a minha irmã Valéria tem o disquinho dos Aristogatas! Vamos convidar elas, então para ouvir o disco lá em casa...
─ Há, há, há!...
─ Mas a minha irmã Valéria tem o disquinho dos Aristogatas! Vamos convidar elas, então para ouvir o disco lá em casa...
Depois, um menininho em trajes sumários ia passando na
estrada acima. Era o irmão do Zico, o Mineiro.
Daí que o Zico resolveu fazer um teste com ele, que era uma
criança que a mãe não tinha pudor algum em deixá-lo pelos passeios da colônia
só de camisa, sem as devidas vestes da parte de baixo!... Na verdade, naqueles
tempos inocentes, isto era a coisa mais comum nas zonas rurais, e até mesmo nas perifirias das cidades.
─ Que foi, Zico?
─ Me diz uma coisa: você
sabe quem é Deus?
O Mineiro tirou a chupeta da boca, fez um inacreditável ar de
esnobe, e, se fiando no
balão psicodélico de sua fantasia, disse:
─ Ô se sei: Deus é o amor
com cabelão grande e superpoderes!
Rachamos o bico... E o Mineiro, coçando as traseiras partes de
baixo, saiu correndo pelo passeio.
─ Esse meu irmão tem cada
uma!...
─ Mas, Zico, mudando de
pato para ganso, me diz uma coisa: tua mãe se inspirou no Pato Donald para
deixar teu irmão vestido assim?...
─ Há, há, há!... Você não
vai pro céu, rapai!...
Resolvemos fazer a mesma pergunta para o Nelsinho:
─ Me diz uma coisa, Nelsinho: você sabe quem é Deus?
─ Claro que sei! Deus é uma pessoa que não é pessoa, mas é como se fosse, só que é muito mais do que gente! Deus sabe tudo, tudo, tira 10 em tudo! Deus é o bom!
─ Então você acredita em Deus? ─ o Paulinho perguntou.
─ Nossa, Deus me livre de não acreditar!
Ao lado do Mineiro estava o Neguinho, e ele não escapou de uma pergunta nossa:
─ Fala aí, Neguinho, o que é o Inferno!
─ Inferno é um lugar onde a gente morre muito mais.
Rimos da colocação.
Desta vez a pergunta foi para o Picolo.
─ Você sabe o que é milagre, Picolo?
─ Milagre é mágica de Deus!
Desta vez, ficamos bestas..., mas o Picool não parou por aí...
─ Tem de ser muito corajoso para morar no céu, oceis sabia?!
─ Porque, Picolo?
─ Porque o céu é muito alto!
Gargalhadas gerais...
Deus ex machina
Mas acontece que mesmo que todos, invariavelmente, tivessem que
reproduzir aquele econômico e simples traço, eu, ainda assim, desenhista que
era, não estava contente nem conformado com aquela simplicidade toda: não
queria mesmo representá-Lo de maneira tão prosaica. Como desde os 5 anos eu já
vinha garatujando figuras com lápis e canetas, resolvi, então, fazer do meu
jeito... Nisto, uma vez livre de uma certa hesitação, convém perguntar que
processos seguiram os meus pensamentos. Assim, revirei a memória, e, conectando
fatos, reportei à coisas passadas, uma imagem chamando outra... e eis que
atinei com algo! E assim se deu.
*
* *
—
Todos já desenharam, criançada?
Um uníssono de afirmações invadiu a pequena
sala, mas alguém disse:
— Nããão!... (era eu...)
O catequista, que estava ao meu lado,
perguntou:
— Mas
o quê que é que você está rabiscando aí, Wenilton?
Meio que encobrindo o papel com o braço em
“v”, retruquei:
—
Espera um pouquinho, Seu Laerte, que eu já-já mostro para o senhor.
─
Pode me chamar de Senhor, Wenilton, mas não espere de mim nenhum milagre...
─
Ãhnnn?!
─
Nada, nada, Wenilton, estava brincando... quis dizer que o Senhor está no
céu...
─ Ué,
mas Ele não está em todas as coisas, Seu Laerte?!
─
Sim, sim, mas...
Meio sem jeito, o catequista desconversou e
tentou checar meu desenho na marra...
— Mas
uma coisa tão simples assim, e você ainda não acabou, Wenilton?!
—
Calma, que eu estou bem no finalzinho, seu Laerte!
— “Finalzinho”!...
Me dê esse caderno aqui, menino! Deixa-me ver o que você está rabiscando aí!
Criança ñ identif., Giacomo, Angelina e Márcia Petrus no clube, 1975. |
— Mas
o quê é isto, menino?! Não foi isso que eu desenhei na lousa!
— Eu
sei, seu Laerte, mas eu acho que Deus é desse jeito.
O catequista não conseguiu esconder uma certa irritação, e elevou o tom...
─ Mas
o quê que você não entendeu em meu desenho, Wenilton?!
─
Oras, seu Laerte: não é que eu não gostei, mas Deus não é assim...
─
Vocês crianças modernas são complicadas! A gente tem de explicar, desenhar;
depois, explicar o desenho e, se bobear, tem de desenhar a explicação também!
Mais vermelho que a massa do extrato de
tomate Etty, desabafei:
─ Me
desculpa, seu Laerte!
Com o cotovelo apoiado na mesa, mantendo o
dedo polegar abaixo do queixo e o indicador apoiado na lateral do rosto feito
um esquadro “zero grau” de pedreiro, ele arrematou:
─ Se
as crianças podem desenhar o Sol com olhos, nariz e boca, porque eu, adulto,
não posso desenhar para vocês Deus com um traço só?!
* * *
Lá fora, próximo à janela, duas meninas conversavam:
─ Nossa, que soluço, Tuca! Acho que vou molhar o lóbulo da orelha com água. Dizem que é bom.
─ Mas não vai enferrujar o brinco, Márcia? ─ ironizou a amiga...
─ Meu brinco é de ouro, sua tonta, e não bijuteria!
*
* *
Eu, no ano em que se passa a história |
O catequista, certamente indignado, devia
pensar lá com os seus botões: “Mas quem é esse menininho ─ um coisica de nada,
um verme que mal aprendeu a ler e mal desenha ─, para contestar a forma do Deus
imensurável, onisciente, onipresente e onipotente?!”
Ah, fosse hoje, eu perguntaria: “Mas onde
nesta lousa, Seu Laerte, o Deus de misericórdia, vestido de branco, sentado num
trono dourado, ou o ser transcendente flutuando pelo céu com sua bata
esvoaçante?!”...
Mas, neste dia, só faltou ele dizer: "O
Deus mais próximo e fiel do Deus invisível, e ainda sim onipresente, é o meu,
feito apenas com meia dúzia de traços!"
Pensado bem, menor que Deus, acho que só mesmo a assimetria de ideias
entre eu e o Seu Laerte...
*
* *
O Gustão voltou e passou pela janela novamente...
─ Aí, eu não estou
falando! ─ exclamou inconformado o Seu Laerte...
E no rádio rolava a belíssima “My Sweet Lord”!...
Na
Escola de Jesus
Mas acontece que eu havia caprichado nos
traços me fiando nas belas ilustrações que havia visto num livro de minha mãe ―
o belíssimo “Na Escola de Jesus” ―, livro este em que ela me passou os
primeiros rudimentos da História Sagrada, livro que quando fora lançado, eu já
habitava há cerca de cincos meses o ventre materno, ou seja, 10 de outubro de
1960 (haja precisão!...).
Passei a segunda metade de minha primeira
década de vida com esse lindo livro em meu colo (ainda o tenho!); folhe-ei-o à
exaustão naqueles dias de descobertas; debrucei-me sobre suas ricas e
sugestivas ilustrações ― e algumas delas funcionavam como um breve, uma
advertência aos pecados que eu poderia vir a cometer, pois eram imagens
chocantes: o inferno, aqueles demônios, a expulsão do Paraíso, morte de
crianças, os apedrejamentos... Eram cenas que me impingiam aquilo que o Erico
Verissimo expressou como o “temor reverente diante do invisível”.
À propósito, vale lembrar que, antes deste,
eu me interessei por outro livro do gênero, na verdade, um livreto de Nossa
Senhora Aparecida, que, aos 4 anos, “roubei” de minha tia Naide e fui ler em
baixo de uma ponte de madeira que existia entre nossas casas. Ele percebeu, me
seguiu, e ficou encantada com aquilo, fato que ela veio me revelar umas quatro
décadas depois ─ aí, quem ficou encantado, fui eu...
* * *
Vejo-me aqui, forçado a entrar em detalhes que, é muito provável que o leitor não esteja minimamente interessado em sabê-los, mas, de qualquer modo, terá de lê-los para se certificar disto...Já na primeira página de textos desse livro, lá estava Deus, numa ilustração denominada “O paraíso terrestre”, de autoria de Benvenuti, onde se vê Deus, enorme, barbas patriarcais, cabelos longos e revoltos, forte, robusto, cercado por dois jovens querubins que mais pareciam crianças ao seu lado. Mais adiante, outra cena: uma ilustração de Frei Bartolomeo, onde imagem parece se repetir, mostrando-o, porém, mais velho, mas com a aparência virilmente bíblica. É visto novamente nas três páginas seguintes, em outras belas ilustrações: a segunda, de Schnnor, com o nome “Deus Criador”, onde o Todo Poderoso viaja pelo Universo criando o Sol, a Lua e as estrelas; a seguinte, de mesmo autor, lá está Ele novamente, advertindo Adão e Eva... Na última, a clássica cena onde Ele aparece à la Moisés pairando em meio a uma sarça de fogo. Outras há no livro, mas basta, que o estereótipo se repete nas seguintes.
Vale dizer que estas imagens de Deus que eu conheci através deste livro, tinham as mesmas barbas brancas e longas como as de Papai Noel, mas nada tinham de seu ar bonachão, carismático e ridente ─ eram sempre sisudas e imponentes, impondo respeito e reverência. É certo que, no mundo do pensamento mágico das crianças, o mito é aceito em toda a sua plenitude, de modo que os psicólogos são unânimes:
Eram estas representações de Deus mais ou
menos como aquela de que falara o Raul Seixas, em que se referindo à sua
infância, se recordando de um teatrinho doméstico onde um dos personagens
mostrava Deus como ”um velhinho todo de branco”. O futuro Deus do Raul seria
mais performático e impactante, o Deus que ele cantou a pleno pulmões numa
impactante canção da qual trataremos adiante.
“O peso emocional de um conceito propicia à criança uma fonte de satisfação que ela não deseja perder. mas quando a criança pergunta se ele existe mesmo é porque já tem suas dúvidas. O melhor é contar a verdade não adianta mentir. À medida que o pensamento lógico for chegando, a figura mágica de Papai Noel será eliminada”.
* * *
Perdoai-me o leitor se divaguei em excesso,
mas, prossigamos; moderadamente, porém.
A
Inês é morta
Santa Inês, do livro Na Escola de Jesus |
─ Sabe quem é esta santa aqui, Wenilton?
─ Não, mãe.
─ É a Santa Inês. Foi uma menina cristã
que, mesmo inocente, foi martirizada!
─ O quê é marti... marti...?
─ O quê é marti... marti...?
─ Mar-ti-ri-za-da, Wenilton. Ser
martirizada é ser sacrificada, judiada e morta.
─ Nossa, mãe, e o quê tanto ela fez para
sofrer isso?!
─ É uma história triste, mas também tem
coisas bonitas, milagres incríveis.
─ Conta, mãe, conta!
─ Nossa, mãe, que judiação!
─ Então, quando colocaram ela ali, uma luz vinda
do céu a protegeu e ninguém conseguiu tocar em seu corpo. Em seguida, coisas
incríveis aconteceram!
─ O quê, mãe?! Conta!
─ Daí que seus cabelos cresceram e cobriram toda a nudez de seu corpo. Quando uma rapaz tentou agarrá-la, surgiu um anjo guardião, e o rapaz caiu morto, mas Inês, cheio de piedade, orou a Deus e o rapaz ressuscitou.
─ O quê, mãe?! Conta!
─ Daí que seus cabelos cresceram e cobriram toda a nudez de seu corpo. Quando uma rapaz tentou agarrá-la, surgiu um anjo guardião, e o rapaz caiu morto, mas Inês, cheio de piedade, orou a Deus e o rapaz ressuscitou.
E arrematando sobre a pior maldade cometida
contra a indefesa menina, pontuou com um fundo de suspirosa queixa:
─ Depois, o prefeito, assustado com tudo,
entregou Inês ao seu substituto, que decidiu condená-la à fogueira!...
Imagem de Santa Inês, na igreja Matriz de Araras |
─ Deca o que, mãe?
─ De-ca-pi-ta-da: ele teve seu cabeça cortada!
─ Nossa, mãe, que horror!
─ De-ca-pi-ta-da: ele teve seu cabeça cortada!
─ Nossa, mãe, que horror!
─ Mas os milagres não acabaram aí, Wenilton!
─
Porquê?
─
Quando sua cabeça rolou pelo chão, ela ainda conseguiu pronunciar algo: que, naquele
momento, ela passava a pertencer a Jesus Cristo!
─
Nossa, mãe, que história incrível!
─ Mas
sabe que tem uma feliz coincidência nisto tudo, e que interessa a você!
─ O
quê é mãe?
─ Ela
é a santa do seu dia!
─
Como assim?
─ Ela
morreu no mesmo dia em que você faz aniversário: 21 de janeiro! Então, ela é tua
santa protetora!
─
Nossa, mãe, não acredito!
─ Tem
mais: a história conta que uma semana depois de sua morte, ela apareceu aos seus
pais que, no momento, estava rezando em seu túmulo. Ela segurava um cordeirinho
branco em seu colo, e estava cercada de muitas virgens e anjos, dizendo para
eles ficarem tranquilos, pois estava muito feliz no reino dos céus.
─ Nossa, mãe, que lindo! Mas o que é cordeirinho branco?!
─ Nossa, mãe, que lindo! Mas o que é cordeirinho branco?!
O Duca, carneirinho da Estrela, 1955. |
─
Sim.
─ Um
dos três bonequinhos não era um carneirinho branco?
─
Sim, o Duca, da brinquedos Estrela!
─
Este mesmo! Pois, então, era um cordeirinho. Um carneirinho é um cordeirinho!
─
Mas, mãe, então eu tinha um cordeirinho branco quando morava lá na cidade!
─ É mesmo!
─
Conta, mãe
─ A
tua avó Ana disse que lá na igreja Matriz tem uma imagem da Santa Inês.
─ A
senhora me leva lá um dia para ver ela?!
─
Sim.
Os que viram Deus
Jesus Cristo e seu pai, Deus |
─ Não
estou conseguindo desenhar igual ao senhor, Seu Laerte...
─ Mas
uma coisinha tão simples como essa, Viel?!
* * *
Lê-se lá no versículo 26 do primeiro
capítulo do Gênesis um passagem que indica que temos uma identidade que
corresponde a do Criador: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” Mas os
teólogos afirmam que essa “imagem e semelhança” diz respeito à parte imaterial
do ser, ou seja, a alma e o espírito, e não à carne e ao sangue. Muitos, se
fiando nisto, dizem que Deus é um ser onipresente, onipotente e onisciente, e
que isto tem a ver com a citada parte imaterial; e mais, Ele é eterno e
infinito, o que sugere que Sua aparência se mantém intacta, sem alterações pela
eternidade afora; mas, fica a pergunta: que aparência?
─ Tá
bom assim o meu desenhinho, Seu Laerte?
─
Está ótimo, Teschinha!
* * *
Sabe-se que os islamitas não têm essa mesma
curiosidade que nós cristãos, pois não se sentem tentados a representá-Lo com
ilustrações de qualquer espécie ─ Ele existe sem um corpo, e ponto final. Na
verdade, a representação de Alah é terminantemente proibida, já que isto
poderia levar à idolatria. Sabe-se que nos velhos tempos bíblicos muitos
personagens lançaram mão de linguagem figurada para poder conseguir expressar
aquilo para o qual não se encontrava palavras. E a conversa do catequista foi
nesta linha:
─
Coincidentemente, meus meninos, eu estive estudando esse assunto dias atrás, e
soube que muitos personagens da Bíblia se encontraram com Deus ─ vamos ver se
eu me lembro deles...
E, enumerando-os na ponta dos dedos, ia dizendo com fluência:
─ Olha: teve o apóstolo João, Jó, Abraão, Daniel, Ezequiel, Jacó e Elias, Isaías... humm... Micaías também... e, como não podia deixar de ser, o famoso Moisés, mas nenhum deles pode ver Deus de modo a poder descrever Seu rosto com detalhes. Quem mais se aproximou disso foi João, que descreveu os cabelos, os olhos e a boca, porém, de maneira simbólica.
E, enumerando-os na ponta dos dedos, ia dizendo com fluência:
─ Olha: teve o apóstolo João, Jó, Abraão, Daniel, Ezequiel, Jacó e Elias, Isaías... humm... Micaías também... e, como não podia deixar de ser, o famoso Moisés, mas nenhum deles pode ver Deus de modo a poder descrever Seu rosto com detalhes. Quem mais se aproximou disso foi João, que descreveu os cabelos, os olhos e a boca, porém, de maneira simbólica.
─ Sim
o quê, Seu Laerte?
─
Sim-bó-li-ca: de maneira artística e não realmente como é, mesmo porque a gente
não sabe como é...
─
Hummm... ─ exclamou o Paulinho, não muito convencido da
explicação.
Resolvi intervir...
O profeta Ezequiel e a suposta visão de um UFO. |
─ O
senhor falou do Ezequiel, né, seu Laerte, mas lá na vitrine da gráfica São Paulo
tem um livro à venda chamado “Eram os Deus Astronautas?”, e um amigo meu que
leu, o Natal, disse que tem uma parte do livro que fala que o profeta Ezequiel
viu Deus, mas ele estava a bordo de um disco voador!
─ Que
besteira, Wenilton! Deus num disco voador?! O
fato de Jesus dizer que Seu reino não é deste mundo e está no céu, não quer
dizer que Ele é marciano, Wenilton! Mas, voltemos ao assunto: lembro de mais um
caso, o de Felipe, que ao se encontrar com Jesus, pediu para que Ele lhe
mostrasse o Pai, e Jesus disse que quem O fitasse, via o próprio Deus.
Portanto, Deus é semelhante a Jesus.
─
Dias atrás, a gente estava assistindo programa “Pinga Fogo”, e eles estavam
entrevistando aquele médium famoso, o Chico Xavier. Lembro que fizeram uma
pergunta pra ele, e minha mãe ficou impressionada porque ele disse que existia
vida nos outros planetas, que existiam extraterrestres. Ela e meu pai ficaram
um tempão falando disso. Eu nem sabia o que era extraterrestre, mas depois eles
me explicaram.
─ Eu
não tenho nada contra o Chico Xavier, que é um santo, um amor de pessoa, mas eu
não acredito em Espiritismo nem em extraterrestres, Wenilton.
─ E
eu nem sei o que é Espiritismo, Seu Laerte.
─
Deixa pra lá.
Desde junho, as rádios tocavam uma canção
do Caetano gravada em seu exílio na Inglaterra: “London, London”...
* * *
E, relembrando de um quadro tão familiar: o “Coração de
Jesus das estampas devotas” de que nos falava o Gilberto Freyre, exultei:
─ Nós
temos um quadro de Jesus lá na sala de casa, Seu Laerte, aquele em que ele
mostra seu coração preso por espinhos e sangrando!
─ É o
famoso quadro do Sagrado Coração de Jesus! Belíssimo quadro, aliás, Wenilton!
─
Sim!
─
Pois, então, Wenilton, quando olhar este quadro, imagine estar vendo o próprio
Deus.
─ Só
que imaginando Ele bem mais velho, né, Seu Laerte?
─ Ah,
meu Deus!...
─
Mas, Seu Laerte, me diga uma coisa: porque em todas as pinturas de Dom Pedro I
e Dom Pedro II, o filho é sempre mais velho que o pai: o pai moço e magro e o
filho gordinho e de barbona branca?
─
Verdade! Eu notei isso nos livros de História do Brasil! ─ exultou o Nivaldo Franchi.
─
Wenilton, não foge do assunto de novo: aqui estamos numa aula de Religião, e
não de História! Chega dessas conversinhas!
─ Me
desculpa...
─ murmurei constrangido.
* * *
Ainda temos em casa esse quadro mais que
cinquentenário, certamente comprado de algum mascate que passara por nossa
chácara naqueles tempos recuados ─ um exemplar de uma daquelas velhas e
consagradas oleogravuras com o Cristo “exibindo” seu coração ferido por uma
coroa de espinhos, fitando-nos com um olhar terno e compassivo, imagem que se
tornou icônica com o passar do tempo. Há muita história por detrás desta
simples imagem, pois ela representa, como se viu, o chamado “Sagrado Coração de
Jesus”, o símbolo de um movimento resgatado na primeira metade do século 19,
cuja intenção era lembrar ao mundo que os severos ataques contra a fé cristã
faziam sangrar o coração de Cristo, ataques estes desferidos, dizem, pelo
Protestantismo.
─ Mas
que Deus é representado mais velho que Jesus, ah, isso Ele é, Seu Laerte!
Aulas
de desenho através de gibis
A uma certa altura, pensei comigo se o Seu Laerte conhecia aquelas imagens de Deus no livro “Na Escola de Jesus”. Então, baseado na lembrança das ilustrações deste livro foi que desenhei um Deus lembrando Jesus, mas com cabelos e barbas longas, porém, mais portentoso. Na verdade, acreditem, eu já era meio tarimbado para desenhar corpos humanos, isto, depois das “lições” que vinha aprendendo não só nos gibis dos citados super-heróis, mas também com os mestres Jayme Cortez e o Eugênio Colonnese, que eu conhecia de gibis de histórias de guerra da editora Taika, o célebre Combate. Em novembro passado eu havia comprado o Nº 7 desta revista, cuja capa ─ a cargo do grande Salatiel de Holanda ─, eu achei o máximo na época, em que havia uma bela ilustração de um avião Spitfire numa cena de batalha mergulhando no céu sendo perseguido por um Zero, gibi que, recordo-me, fui ler na barbearia do Gervásio enquanto esperava minha vez.
A esta altura, é bem provável que o leitor
venha a contestar minhas capacidades como desenhista, duvidando que, já nesta
idade, eu era capaz de reproduzir tais desenhos... Pois bem. Convém esclarecer
que, já em 1969, além de aviões, eu estava desenhando naves espaciais, como, p.
ex., houve um desenho de que não me esqueço, que era uma reprodução minha da
ilustração “A True Gateway” ─ uma estação espacial ─ feita por Robert Gilruth,
engenheiro da Nasa, em junho de 1968, ilustração esta que meu pai guardou com o
maior carinho numa pasta sua por mais de 30 anos, desenho que, infelizmente, se
perdeu. Para finalizar este parágrafo, gostaria de lembrar o leitor, isto, sem comparações pretensiosas, que o pintor francês impressionista Toulouse-Lautrec aos 9 anos já enchia cadernos e mais cadernos escolares com belos desenhos, e cita-se que, aos 15, seus retratos da mãe, do pai e dos criados eram primorosos.
Neste mesmo ano, em junho, comprei o meu primeiro gibi, o Nº 3 do Homem
Aranha, numa história em que ele duela pela primeira vez com o vilão Dr.
Octopus (e que acabou indo para a tela dos cinemas em 2002), de modo que passei
a travar contato com super-heróis a partir deste gibi da editora Ebal. Depois,
vieram Capitão América, Thor, Homem de Ferro, Hulk e Namor, e deste, desde
1970, eu vinha acompanhando suas histórias do também chamado Príncipe dos Mares
─ personagem desenhado pelo grande John Buscema ─, e gostava de tentar
reproduzir aquele que para mim é o maior vilão de todos ─ o temível Tubarão
Tigre ─, isto, mais especificamente a partir de setembro, quando ele surgiu.
Vale lembrar que neles, assim como nos gibis do Thor, havia muitos figurantes
atlantes e asgardianos, que, de imediato, me remetiam à personagens bíblicos,
de modo que eu convivia com frequência com estes notáveis tipos rústicos e
antigos, a maioria corpulentos, fortes,
cabeludos e barbudos.
O vilão Tubarão Tigre entre personagens da Atlântida. Gibi Namor e Hulk - Nº 39 - Novembro de 1970 |
Namor e Tubarão Tigre, Nº 40, dez. 1970. |
─ Nem o Joe Weider tem um corpo assim!
─
Podes crer!
─ Mas
o Namor não fica atrás, não, Wenilton! Meu irmão está se matando para ser
musculoso assim, mas não sei se ele vai conseguir não...
─ O
Fio?
─
Sim.
─ Já
pensou se fizessem um filme com os dois?
─ Um filme com meu irmão?!
─ Não, seu tonto: com o Tubarão Tigre e o Namor duelando?
─ Um filme com meu irmão?!
─ Não, seu tonto: com o Tubarão Tigre e o Namor duelando?
─
Nossa, ia ser demais!
* * *
O Fio e o Teschinha |
— ...está
certo, Wenilton, o teu desenho está lindo, mas eu já não falei aqui que ninguém
neste mundo sabe como Deus realmente é?!
Mais por ingenuidade que por pretensão,
obviamente (que seria querer demais para o menino que eu era), emendei:
—
Bom, seu Laerte, então se não sabem como Deus é, agora vão ficar sabendo...
― Eu
te chamaria de herético, se você não fosse tão convencido, menino!...
─
Heré o quê, Seu Laerte?
─
He-ré-ti-co! Herético é quem desafia a religião, que vai contra ela!
─
Nossa, eu fiz isso?!
─
Quando você for pro Céu, Wenilton, finalmente vai ver Deus como Ele é ─ se é
que você vai para lá, né... ─
ironizou o Marcos.
─ Sem
gracinhas, Marcos! Isto é coisa que não se brinca, menino!
─ Me
desculpa, Seu Laerte!!...
─ Se
continuar a dizer estas coisas, quem vai para o inferno é você, e vai arder nas
chamas que nem aquele estúdio da Rede Globo a semana passada, quando acabou a novela
Bandeira 2!
─
Deus me livre, Seu Laerte!!...
─
Estou brincando, menino...
Nisto ─ era por volta das 9 horas ─ se
ouviu o apito do trem passando lá na encruzilhada perto do sítio do Marião.
─
Olha o trem da Fepasa!
─
Fepasa? Que nome é esse? Não é o trem da Companhia Paulista, Seu Laerte?
─
Era, Marcos. Desde outubro passado é Fepasa,
a Ferrovia Paulista Sociedade Anônima.
A Companhia Paulista foi
extinta e incorporada à Fepasa.
─
Olha só!
─
Para mim, essa empresa vai durar mais uns cinco ou seis anos, quando muito!
─
Nossa, Seu Laerte!
* * *
E assim, amigos, eu fui “repreendido” pelo catequista, e só
não fiquei de castigo porque isto era coisa que não existia em aulas de
catecismo... As vezes, fico a pensar de ele me punindo, me obrigando a confessar
o meu deslize quando fosse debulhar o rosário de meus pecados pela
primeira vez com o padre Lanza no dia de minha Primeira Comunhão... No fundo, ele
sabia que eu não havia cometido pecado algum, sequer um pecadilho, por venial
que fosse.
─ Você aí, Zico, que fica
conversando com o Wenilton toda hora, me responda uma pergunta: quantas pessoas
formam a Santíssima Trindade?
E o Zico, após fazer
rapidamente o “Pelo Sinal” murmurando baixinho os dizeres que o acompanham,
disse convicto:
─ Quatro, Seu Laerte.
─ Quatro, Zico?! São três,
menino: Pai, Filho e Espirito Santo!
─ Mas e o Amém, não conta?
─ É claro que não, que Amém
não é pessoa! Amém significa: “Assim seja”!
─ Hammm...
─ Então me responda Zico,
o que Deus fez depois de Adão?
─ Depois que Ele viu que
Adão era muito feio, fez a Eva.
─ Olha, Zico, e eu aqui
pensando que o Wenilton era o problema!...
*
* *
Walter Daltro com a Veraneio da Usina, e, ao fundo, os sítios do Narciso e do Marião |
─ É meu pai! ─ gritei.
─ Essa é a que tem três
bancos, Wenilton? ─ perguntou o Teschinha.
─ Essa mesmo, espaçosa pra
caramba!
─ Três bancos! ─ exclamou o Zico. Três bancos dá certinho...
─ “Dá Certinho” pra quê, Zico? ─ perguntei curioso.
─ Certinho para as três Pessoas:
Pai, Filho e Espírito Santo...
─ Ah, seu malandro! Depois
é eu e o Marcos que não vamos pro céu, né, rapai?!
Rimos à beça...
─ Mas é linda mesmo essa
tal de Veraneio, hein!
Nisto, passou um sorveteiro.
─ Olha o sorveeete! Hoje criança não paga!
─ Ooooba!
─ Quem paga é o pai!...
* * *
O padeiro Pretti e sua Kombi |
─ Ô,
menino, uma informação, por favor!
─
Pois não, meu senhor.
─
Esta estrada aqui vai para a fazenda São Bento?
─ Se vai eu num sei não, senhor, mas se for vai fazer muita falta!
─ Se vai eu num sei não, senhor, mas se for vai fazer muita falta!
Daí que o Isnaldo viu o padeiro Pretti jogando uma água na sua Kombi com uma mangueira emprestada do clube, e perguntou alheadamente:
─ Tá
lavando o carro, Seu Pretti?
─ Não,
não, tô regando pra ver se ele cresce e vira um ônibus...
Rachamos o bico...
Rachamos o bico...
─ Alá, Isnaldo, o ônibus do Lima, aquele que antes era uma Kombi!!...
O Neto Baggio, que havia acabado de chegar de bicicleta, também riu da piada.
Não houve quem dentre o meninos
que não tivesse babado com essa "magrela", com seu banco comprido revestido de
napa lembrando a pele de um tigre, e aquele incrível santo antonio atrás, tal como as motos do tipo chopper ─ sim,
igualzinho ao da moto do Peter Fonda.
O Neto Baggio, que havia acabado de chegar de bicicleta, também riu da piada.
─ Mas que monareta mais linda
essa, Neto! ― elogiou o Pretti.
─ É a Tigrão, a nova
monareta da Caloi! Presente de meu pai!
─ Mas nem chegou o Natal ainda,
menino!
─ Ah, eu vi a propaganda na TV,
e já fui falando: não esqueça da minha Caloi!...
─ Tigrão? Ficaria melhor Tubarão Tigre... ─ ironizei...
─ Tigrão? Ficaria melhor Tubarão Tigre... ─ ironizei...
A famosa Tigrão |
─ Ela tem um visual muito
louco: parece uma moto, Neto! ─
elogiou o Isnaldo.
─ Meu pai me queria dar uma
berlineta Dobramatic, aquela que tem uma mochila do lado, mas achei ela muito
caretona.
─ Se eu tivesse uma Barra
Circular da Monark, para mim já estava de bom tamanho! ─ desabafou o Pretti.
* * *
Como meu pai não me viu, fui embora a pé eu, o Marcos e o Paulinho, e ao passar
novamente pela venda, lá dentro rolava uma nova e belíssima
música: "Don't let it die", do Hurricane Smith:
“The mounta inside, the flower grows
The riverside where the water flows forever
The jungle life of mystery
The wide and graceful history of life
The riverside where the water flows forever
The jungle life of mystery
The wide and graceful history of life
Don't let it die...”
─ Que música linda, hein,
Marcos?!
─ Demais!
─ E de que fala essa
música? ─ perguntou o Paulinho.
─ Sei lá!
Fato criticado pelos mais velhos, não ligávamos por não entendermos as letras em inglês, afinal, como bem colocara o Cyro dos Anjos em seu “A Menina do Sobrado”, a música era uma “linguagem universal, não tolhida pela fronteira das línguas” e que “se transfundiam o pensamento e o sentimento, apurado na essência das essências”...
Fato criticado pelos mais velhos, não ligávamos por não entendermos as letras em inglês, afinal, como bem colocara o Cyro dos Anjos em seu “A Menina do Sobrado”, a música era uma “linguagem universal, não tolhida pela fronteira das línguas” e que “se transfundiam o pensamento e o sentimento, apurado na essência das essências”...
* * *
─ Que legal! Então eu quero dar uma
volta! Eu
nunca andei num cavalo na vida!
─ Ôôô, mentiroooso!
─ É verdade, Leiteiro!
─ Ôôô, mentiroooso!
─ É verdade, Leiteiro!
─ Bom, então monta neste: como ele também nunca foi montado, você aprendem juntos!...
─ "Nunca foi montado"? Ôôô, mentiroooso!
─ "Nunca foi montado"? Ôôô, mentiroooso!
─ Mas, ô, Mirão: acho bom você
pagar adiantado...
─ Que é isso, Leiteiro?! Tá com
medo que eu volte sem o cavalo?!
─ Não, meu amigo: eu estou com medo é que o cavalo volte sem você!...
─ Não, meu amigo: eu estou com medo é que o cavalo volte sem você!...
Música no clube
─ Eu toco essa aqui também ─ e emendei no bordão algo semelhante.
─ Meu primo Gil tem esse disco, e eu conheço essa
música, de ouvir lá na casa dele.
Versículo versus versículo...
O abandonado Clube Recreativo da Usina Palmeiras, em 17-11-1998 |
A velha Guitarra Celio |
Dentro do Clube Recreativo, a Fio Tesche
perguntou para o guitarrista Joaquim Gouveia, músico que acompanhava a comitiva das irmãs:
─ Ô,
Joaquim, por acaso você não toca “Jesus Cristo Superstar” na guitarra?
─ É
uma música orquestral e com muitas vozes, Fio, mas posso tocar uma outra mais
simples, uma daquela cantora dos Mutantes, que começou a fazer sucesso agora depois do
carnaval.
─
Qual?
─
“José”, com a Rita Lee.
─
Pois manda brasa, Joaquim!
Ao final, perguntei ao Joaquim se podia mostrar para ele um pequeno solo que eu havia tirado no violão de meu primo Gil Nascimento. Ele consentiu. O Joaquim era um cara legal, e sempre deixava a gente dar uma fuçada em sua guitarra, uma Celio, nacional, relíquia hoje. Após ouvir, ele matou a pau:
* * *
Ao final, perguntei ao Joaquim se podia mostrar para ele um pequeno solo que eu havia tirado no violão de meu primo Gil Nascimento. Ele consentiu. O Joaquim era um cara legal, e sempre deixava a gente dar uma fuçada em sua guitarra, uma Celio, nacional, relíquia hoje. Após ouvir, ele matou a pau:
─ Ah,
é o solinho final de “Guajira”, do Santana!
─
Isso!
─ Grande guitarrista, o Santana!
Não pensem vocês que, às vésperas de
completar 11 anos, eu já conseguia tirar solos do grande Santana, que eu não
era nenhum um geniozinho precoce. Era apenas o trechinho final do primeiro solo
de guitarra desta canção, que parece um pouco solo de música nordestina feita
numa única corda, a chamada “Mizinho”...
Joaquim Gouveia, em 1971 |
─ Eu toco essa aqui também ─ e emendei no bordão algo semelhante.
─ Ah, o tema do Batman!
─ Você não toca o tema do Mancha Negra
também, Wenilton?... ─ ironizou o Zico...
Ao final, executei de maneira
meio capenga o solinho de “Menina da Ladeira”.
─ Ah, o solinho da música do João Só! Linda, esta música!
─ Uma das que eu mais gosto, ultimamente, Joaquim!
─ Todos esses solinhos são um bom começo para quem quer aprender guitarra! E você leva jeito pra coisa, Wenilton.
─ Sério, Joaquim?!
─ Ah, o solinho da música do João Só! Linda, esta música!
─ Uma das que eu mais gosto, ultimamente, Joaquim!
─ Todos esses solinhos são um bom começo para quem quer aprender guitarra! E você leva jeito pra coisa, Wenilton.
─ Sério, Joaquim?!
* * *
O Giacomo repreendeu o Isnaldo:
─ Ô,
Isnaldo, não sabe que é feio cuspir no chão?!
─ Eu
sei, Seu Giacomo! E até já tentei cuspir no teto, mas ele cai na cara...
─ !!!
E o Isnaldo, cuja família havia há pouco se
mudado para a Usina, conversando depois com o negrinho Julião, perguntou alheadamente:
─
Aonde você mora, Julião?
─ Na
casa de meu pai, Isnaldo.
─ E
onde mora o seu pai?
─ Ele
mora comigo, Isnaldo.
─
Disso eu já sei, caramba! Eu quero é saber onde vocês moram?
─ Moramos junto, caramba!...
─ Moramos junto, caramba!...
─ !!!
* * *
Era ser “descolado” nesta época conseguir
tocar de músicas famosas de MPB que tivessem introduções usando riffs puxando para o rock.
─ Faz aí, Joaquim, a introdução daquela
música do Paulo Diniz que ele fala da Bahia! ─ opinou
o Nino.
─ “I
Want to Go Back to Bahia”? Faço sim!!
E o
danado fez igualzinho!
Mas
ouve esta aqui, Nino, meio parecida, mas é mais difícil : “Criola”, do Jorge Bem”.
Tocava demais o Joaquim! Numa palavra:
perfeccionista! Ele arrematou:
─ Essas aberturas de rock samba são um barato!
Um pouco antes de tomar o ônibus, o Joaquim fechou com "Goin’ back to Indiana", do Jackson Five, da trilha sonora da novela Bandeira 2.
─ Essas aberturas de rock samba são um barato!
Um pouco antes de tomar o ônibus, o Joaquim fechou com "Goin’ back to Indiana", do Jackson Five, da trilha sonora da novela Bandeira 2.
─ Demais essa, Joaquim!
Parabéns! Elogiou
o Gustão.
─ Bom amigos, goin’ back to
city!
* * *
─
Mas, ô Gustão, linda esta música rolando aí no rádio, hein!
─
Sim, Marcos! Um sucessão no Brasil! É do novo disco do Paul MacCartney! Ela se
chama “Uncle Albert/Admiral Halsey”!
Entrei na
conversa:
O RAM, do Paul McCartney.
|
─ O Big Boy disse que ele fez essa música em
homenagem a um tio dele, chamado Albert, e que esse tio tinha a mania de
declamar versículos da Bíblia quando estava bêbado!
─ Há, há, há!... Que barato!
O catequista, que se aproximava, ouviu a
conversa...
─ Que barato daonde, Wenilton! Não é nada bonito
declamar versículos da Bíblia quando se está embriagado! Onde já se viu!
─ Me desculpa, Seu Laerte...
Outro dia, pretendendo botar um ponto final no assunto da
imagem de Deus, o Seu Laerte me abordou antes da aula, e com uma Bíblia nas
mãos, foi logo dizendo:
― Wenilton, quanto àquele
assunto da aparência de Deus, vamos deixar que Ele próprio nos diga através de
Sua palavra de “como” Ele é. E, abrindo uma página marcada com um papelzinho, apontou com
o dedo um determinado versículo e o leu:
― “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. ―
E completou, fazendo
questão de soletrar: ― “Gê-ne-sis,
Ca-pí-tu-lo 1, Ver-sí-cu-lo vin-te e seis”. Então, estamos conversados, senhor Wenilton?
Meio constrangido, murmurei-lhe:
― Sim, Seu Laerte, mas
acontece que eu também trouxe algo para lhe mostrar...
― O quê?
Puxei um papelzinho do bolso e li em alto e bom som...
― Conversando com minha
mãe sobre esse assunto, ela se lembrou de um capítulo do Velho Testamento, e
procurou um trecho no livro. Depois que ela encontrou, anotou neste papelzinho
aqui uma passagem que fala da aparência de Deus, e mandou mostrar para o
senhor.
― Deixe-me ver.
Antes que entregasse o papelzinho, notei algo nos escritos:
― Olha só que
coincidência, Seu Laerte!
― Que coincidência?
Fiz questão de soletrar:
― “E-ze-qui-el,
Ca-pí-tu-lo 1, Ver-sí-cu-lo vin-te e seis”...
― Nossa, que coincidência! ― Ele exclamou, e tomando o papel de minha
mão, foi lendo:
― “E sobre o firmamento,
que estava por cima das suas cabeças, havia uma semelhança de trono, como a
aparência duma safira; e sobre a semelhança do trono havia como que a
semelhança dum homem, no alto, sobre ele.”
Meio constrangido, ele murmurou:
― Hummm... “como que a
semelhança dum homem”...
E acrescentou:
― É a mesma coisa,
Wenilton!
Como havia falado de minha mãe, resolvi fazer uma pergunta:
― Seu Laerte, me diga uma
coisa: vamos supor que eu fosse para o céu e a minha mãe para o inferno.
― Sim.
― Então, será que eu ia
conseguir ser feliz, mesmo sabendo que a minha mãe está naquela danação sem
fim, já que a religião diz que quem vai pra lá vai sofrer no fogo eterno, sem
chance de se salvar?
Ele entregou os
pontos...
― Agora você me pegou, seu
menino danado! Vou ficar te devendo essa...
Pobre Seu Laerte... nem ele, nem a sua religião dele souberam
me esclarecer sobre essa antiga dúvida atroz que atormenta as crianças de todo
o mundo...
O Zico e o Fio na Balança da Usina, anos depois da presente história. Notar, à direita do Fio, a cestinha de almoço, de bambu, muito comum naquela época. |
─
Nunca esqueçam de partilhar o seu pão com o próximo, meus meninos! Farão bonito
aos olhos de Deus! Bom, enfim, criançada, por hoje é só, e vamos almoçar porque
─ como alguém, já disse, e eu não me lembro quem ─ “ninguém, aguenta ser bom
cristão quando se está com muita fome”, não é?! E eu estou morrendo de fome!
Uma boa tarde para todos!
Saímos da aula e fomos, eu e o Zico, chupar
balas no clube. Açucólatra que era, devorei minhas balas em instantes... O
Zico, mal abrira o seu saquinho, pedi uma bala a ele...
─
Mas, Wenilton, você tem as suas!
─ Já
acabou, Zico!...
─ Ô,
loco, meu! Você mal ganhou o saquinho!
─
Vamos, Zico, vamos logo! Não vai partilhar, como o Seu Laerte mandou?!
─ Não
é sua mãe que não vai para o céu, Wenilton, mas você!...
Rimos satisfeitos.
“Ói,
lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons!”
Dois anos depois, ao ouvir o Raul Seixas cantando
a belíssima “Ói, lá vem Deus / Deslizando no céu entre brumas de mil megatons!”, não
sei porque, mas eu me lembrei de você, meu velho e bom Seu Laerte, e, como não,
do seu Deus minimalista...
Sim, mestre, sim, logicamente, eu não queria um Deus em carne e osso para poder tocá-Lo com minhas mãos e certificar-me de Sua existência física, sequer um Deus para poder apenas olhá-Lo diante de mim, mas sim, um Deus que eu pudesse livremente imaginá-Lo em minha pobre mente como um homem feito nós. Jamais desejaria vê-Lo numa entidade tátil ─ como uma imagem de gesso ― coisa que nunca vi e penso que nem existe, mas algo onde eu pudesse ver e identificar semelhanças conosco ― que esse deus seria mais lógico para mim se, como seu filho, tivesse semelhança com os humanos. Seu Laerte, seu Laerte, me perdoe, mas aquela abstração geométrica de uma linha curva proposta por ti ― aquele Não-ser visual me inquietava, que minha razão pedia sim as meras três dimensões... Afinal, meu mestre, as coisas não formais que transcendem as dimensões comuns complicam o nosso ver e o sentir! Concorda, amigo? Ou não?!...
─ Acorda, Wenilton! Presta atenção na aula! Parece que está no mundo da lua, menino?!
─ Seu Laerte, me diga uma coisa: o senhor qual a diferença entre o Mar Morto, o Mar Negro e o Mar Vermelho?
─
Mas, por que você me pergunta isso, Wenilton?
─ É
que eu não sei distinguir os três! Para mim é tudo a mesma coisa!
─ Mas
não é.
─ É
que nem Judas e Pilatos: eu não sei quem é quem, e acho que os dois são o
mesmo!
─ Nossa,
Wenilton, pior ainda!
─ E
tem mais, seu Laerte: e Lúcifer e Satanás ─ não são o mesmo?
─ Pelo amor de Deus, Wenilton! O que você tem nesta
cabeça?!
─ E papiro com
pergaminho?
─ Cheeeega, menino!
* * *
Ao final de uma aula de catecismo em que o tema era a vida após a morte, o seu Laerte falou para a criançada:
─ Quem quer ir para o Céu, levante o braço.
Todas as crianças concordaram, com exceção de uma...
Cismado, ele perguntou novamente:
─ E quem quer ir para o Inferno, também levante o braço.
Novamente, ninguém se manifestou, com exceção da mesma criança... O catequista, surpreso, resolveu interrogá-la:
─ E você, Marcos, não sabe para onde quer ir? Ou será que quer ficar no Purgatório?
E ele, na maior tranquilidade, respondeu:
─ Não quero ir para lugar nenhum. Está muito bom aqui onde estou.
Mea culpa...
Hoje, às vezes eu me pergunto: Se, na atual
conjuntura, Jesus voltasse à Terra, como os crentes ─ e mesmo os iconoclastas ─
o reconheceriam? Voltaria Ele jovem, com os 33 anos que tinha ao ser morto,
ou com mais de dois mil anos nas costas, envelhecido como Matusalém? Não
encarariam Ele como um hippie maluco, ou um dos muitos Gentilezas da vida que
pregam por aí? Ou então, voltaria “moderno”, de cabelos e barbas feitos, com
roupa da moda (que moda?)? Voltaria, quiçá, na pátria Terra Santa ─ a região
mais crítica e belicista do Planeta ─, ou desceria em frente ao Congresso dos
Estados Unidos, como sempre preconizam os pretensiosos filmes norte-americanos
de ficção? E que argumentos e artefatos Jesus deveria lançar mão em sua volta
para que Se fizesse crer e O reconhecessem como tal? Abusaria de efeitos
pirotécnicos tipo “brumas de mil megatons”? Deveria criar admiração ou impor
medo? Surgiria triunfante “empunhando o saltério da esperança” (como diria o
Varella), resoluto e amparado por chusmas e legiões de anjos, arcanjos e querubins,
e acima de tudo, junto de Maria e de seu Pai, isto, ao som da retumbante
“Aleluia” do Haendel, cantada a pleno pulmões por mil vozes tonitroantes?
Findemos pois, amigos, com algo mais brando, como
essa pérola do Marvin Gaye, que nestas alturas da Contracultura, perguntava ao
mundo: “What’s Going On”?...
“You know we've got
to find a way
To bring some lovin' here to stay
Picket lines won't block our way”
To bring some lovin' here to stay
Picket lines won't block our way”
Mas, basta: passemos ao próximo capítulo,
capítulo este onde eu deveria me redimir de certos assuntos que falei aqui...
─
He-ré-ti-cos, Wenilton, heréticos!
* * *
Antes, porém, de pingar o derradeiro ponto
final deste capítulo, permitam-me fazer um comentário:
* Este capítulo faz parte da série de 11 livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO
11 ─ OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA ─ Vol. 3 ─ A Space
in Time ─ jan. a dez. 1971”. Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.