quinta-feira, 18 de julho de 2019

A PAIXÃO SEGUNDO SEU LAERTE


Deus ― até ele sofre o confinamento da forma,
é minimizado numa solidez qualquer, para que
a fé do homem possa percutir no coração.”
(O Cruzeiro. Ubiratan Lemos, 23-7-1974)

“Sentado à porta sobre dura pedra,
Folheia grossa Bíblia; de joelhos
Ao seu lado, Naida, atenta e muda,
Considera as gravuras primorosas
Do mais belo entre os livros conhecidos."
(Anchieta ou O Evangelho nas Selvas. 
Canto II-IV. Fagundes Varella. 1875)

“Minhas primeiras lições de moral vieram, 
além de meu pai, das aulas de catecismo, 
e da convivência diária com as irmãs.”
(Maria Suzana de Stefano Menin, ouvidora 
da Unesp – unespciência, mar. 2014)


Turmas de Catecismo da Usina em princípios da década de 1960
As primeiras aulas de Catecismo naquele final de 1971... deixem-me suspirar... Este é o assunto de que tratarei agora. 

Vale dizer que sempre nutri amor e afeto, e boa memória, por tudo que é herança de um passado feliz, por aquilo que “não é mais”, por coisas que são capazes de evocar ótimos e reconfortantes sentimentos, e que, por isso mesmo, me são caras, como o foram os primeiros rudimentos de religião. E é importante frisar que este é mais um daqueles casos a que os memorialistas definem como “experiências autobiográficas consequentes”, ou seja, as experiências marcantes e inesquecíveis de nossas vidas.

É chegada, então, a hora de varrermos a incômoda poeira acumulada pelo tempo e entregarmo-nos ao diálogo da saudade!

Agora, no exato instante em que redijo este texto e me ponho a pensar sobre tudo, do fundo de minha memória se insinuam rostos, cenários, vozes, músicas, objetos, cheiros... e até eu vejo a mim mesmo, menino ainda, naqueles idos... Mas, antes mesmo de dar início a este trabalho, bem sei que se as cenas e a imagem das pessoas são fugidias e querem se esvair, devo reajustar o foco da lembrança, buscando outro posicionamento, experimentando algo como novos ângulos de visão, outros vieses. Desse modo, noto que a uma probabilidade de algo acontecido, é possível inserir outra, não tão subjetiva, mas aquela que, com um pouco de mais alcance, poderia ser a mesma obtida com recursos típicos de um Nava, ou, quem me dera, de um Proust, mas, quem sou eu?!... Ainda assim, sigo adiante, se não com uma memória de elefante, muito menos com a de um incinerador...

John Lennon, Rolling Stone,  21-1-1971
Assim, relembrada deste meu vértice temporal, convém esclarecer que a historia é daqueles bons tempos do início da pré-adolescência, em que a vida fluía solta e despreocupada. E, para balizar a história, naquela época pueril em que eu me entretinha rabiscando papéis e mais papéis com desenhos e linhas tortuosas, mas tudo cheio de muito sentimento e verdade.

Nesta idade ─ já com 10 anos (e 30 quilos) montado no lombo no planeta ─, tinha, porém, minhas naturais limitações. Lembro-me claramente ─ em alguma data deste mesmo ano ─, eu sozinho, à noite, à mesa da cozinha tentando a muito custo desenhar o rosto de meu pai a partir de uma foto 3 x 4 sua ─ eu me esmerava, rabiscava, apagava, tornava a riscar, mas nada conseguia; e, por mais que tentasse, nada saía, e recordo-me até ─ nunca me esqueço ─ de chorar de frustração... Lembro-me que, ainda que de modo chinfrim, reproduzindo o que via, eu já desenhava meus heróis: o Homem Aranha, o Capitão América, o Namor, o Thor, o Homem de Ferro, soldados da Segunda Guerra Mundial, dentre outros. Convém também não esquecer que, a partir desta época, desenhar rostos e bustos de pessoas era coisa muito comum nos trabalhos escolares, digo, os diversos personagens célebres relacionados à história antiga do Brasil, como Anchieta, Santos Dumont, Tiradentes, D. Pedro I, e outros tantos, mas eram desenhos sofríveis, feitos a muito custo, e, quando possível, copiados de livros por meio de papel seda transparente. Mas, amigos, desenhar o herói de minha vida ─ um personagem em carne e osso, real, e que todo dia eu via ─ me era coisa totalmente impossível!


Digo herói, amigos, porque como não admirar um homem que era um trabalhador incansável, que labutava dia e noite, mesmo aos finais de semana, só parando para dormir? Além de seu emprego na Usina como contador, nas horas vagas era técnico de futebol, vendedor de televisões e acessórios, bem como criador e negociante de pastores-alemães e curiós. Como se vê, um daqueles membros da nobre estirpe de que nos falava o John Lennon neste ano: a “herói da classe trabalhadora”. Aliás, no dia de meu aniversário neste ano ─ ou seja, 21 de janeiro ─, chegava à bancas o número mensal da afamada revista Rolling Stone, que publicava uma entrevista de John Lennon intitulada... "Working Class Hero”...



Walter Daltro, 1971.
Pela citada foto 3 x 4, nota-se que seus traços faciais eram enxutos, equilibrados, com quase perfeita simetria bilateral; o cabelo arredondado, as partes triangulares do conjunto bem definidas ─ tudo facilitando um esboço limpo e rápido, mas... desenhá-lo que era bom, nada! Para a minha tristeza, levaria ainda pelo menos mais uns cinco anos para que eu pudesse conseguir isso, porém, estranhamente, foi algo a que eu nunca mais retornei... 

Mas, enfim, sigamos em frente e deixemos este assunto de desenhos para mais adiante.


*   *   *


Transportermo-nos, pois, para os recantos aprazíveis da velha e boa Usina Palmeiras desta significativa época!

Antes de mais nada, é oportuno lembrar que desde janeiro desse ano uma canção pop de teor religioso explodia nas rádios brasileiras! Está certo, não era uma canção ribombante como a “Aleluia” do Haendel, mas fez um sucesso que não ficou nada a dever, uma vez que até hoje ela ainda ela faz ponta nas rádios e ficou no imaginário da rapeize daquela época. Mas de que canção trato, amigos? É de “Superstar”, o principal tema da ópera rock “Jesus Christ Superstar”, de Andrew Lloyd Webber, um compositor e produtor musical britânico, considerado por muitos como um dos compositores teatrais de maior renome do fim do século 20. É tempo de ouvi-la, abrindo este capítulo!



À história, então!


Vendeiro e catequista

A venda do Seu Laerte, vista dos altos do Restilo através de minha luneta
Ao raiar das primeiras horas das manhãs dominicais, a Usina banhada pelos oblíquos raios do Sol; e como se fosse início de noite, a venda do Seu Laerte Borella, o campo de futebol e o Clube Recreativo já começavam a atrair mariposas humanas feito um irresistível foco de luz. Adultos e crianças pululavam por todos os lados.

Era o tradicional domingo de Catecismo na Usina, domingo imenso e pulsante como só lá parecia existir. Poucas coisas se podia ver neste lugar de mais despreocupado, feliz e buliçoso que um bando de crianças a se reunir para as aulas de catecismo. Como já o disse em outro capítulo, a chegada do ônibus vindo da cidade trazendo as irmãs, catequistas, assistentes e o músico era um advento ─ veja, ali, a “perpétua alegria”, de que nos falava Graça Aranha!

Porém, essa gente humilde parecia viver como se a vida girasse unicamente em torno da própria comunidade, em nome de uma causa comum, e não em função do mundo exterior, da cidade distante. E, na verdade, parece que isto lhes bastava se coisa melhor não houvesse. Que verdadeiro frenesi! ─ entre a profusão verde-canavial e marrom-tijolo à vista do lugar, havia a também a policromia de cores das roupas domingueiras, que, por esta época, sua gente ─ mesmo caipiras em grande parte ─, já se deixava ir submergindo aos poucos no caleidoscópio cromático da Contracultura e da inerente Psicodelia, cujo auge se daria dois anos depois no instigante e imbatível 1973: era então  me diz uma revista Geração Pop  aquele carnaval de roxo, laranja, verde-pistache, amarelo-limão, turquesa, dentre outras cores espalhafatosas.

*   *   *

Indo para a aula de Catecismo, parei na venda para comprar uns chicletes. Não foi fácil, cheio estava o lugar de agricultores das colônias, sítios e fazendas dos arrabaldes, além de forasteiros, funcionários da Usina, velhos, mulheres e crianças, todos num falatório que mais parecia um mercado persa... 
O Mirão

─ Vai um coqrete, Seu Jacinto?...  ─ ironizou o Seu Laerte, que atendia o Dionísio.

Uns riram. Outros, sem entender a brincadeira, estranharam.

─ Quero um cabide grande, Seu Laerte! Quanto custa?

─ Oito cruzeiros, Mirão.

─ Nossa, que cabide mais caro! Não tem um mais barato?

─ Tem prego... serve?

*   *   *

Do rádio valvulado no alto de uma prateleira vinha uma belíssima música, na verdade, uma nova canção do Santana, “Everything's Coming Our Way”, canção que, por sinal, eu conhecia, de ouvi-la lá na cidade num compacto de meu primo Gil Nascimento:

“Open your eyes
Let it begin with me
Brand new day
Fresh new way to live
The mornin' is callin'
Walk with me into the sun
Everything is comin' our way...”



Me aproximei do baleiro, e, girando-o, me pus a escolher o doce que ia comprar. O vendeiro se aproximou:

─ Vê dois Plocs para mim, Seu Laerte, por favor. 

─ É prá já, Wenilton! Indo para a aula?

─ Sim.

─ Me espere, que eu vou com você.

─ Mas a aula é só para crianças, Seu Laerte!

─ A-há! Sou eu quem vai dar a aula de Catecismo, Wenilton!

─ O senhor?!

─ Pois é...

*   *   *

O Leiteiro ia passando com sua carroça e seu burro em frente à venda, e o Mirão, em o vendo, perguntou com malícia:

 ─ Aonde os dois burros vão a essa hora?

─ Cortar capim para nós três...

*   *   *

Ilustração do livro "Na Escola de Jesus"
─ Que camisa bonita esta, hein, Seu Laerte! ─ elogiei.

─ É a chamada “Volta ao Mundo”, da Valisére! Afinal, tenho que ir bem vestido para dar uma aula de Catecismo, não é, menino? O legal dela é que nunca precisa passar a ferro. 

─ “Volta ao Mundo”: gostei desse nome!

Com ele empunhando uma bolsa capanga na mão direita, isto, com a alça devidamente passada no punho ─ como era costume ─, fomos para a aula.

Olhando para uma das notas de 1 Cruzeiro que ele me voltou ─ aquela verdinha que tinha a efígie da República ─, perguntei: 

─ Parece um anjo esse rosto da figura, né, Seu Laerte. 

─ Parece gente  um grego ou romano ─; mas você já viu um anjo alguma vez? Sabe se eles são parecidos com nós?

─ Vi anjos num livro de religião que minha mãe tem lá em casa...


O vendeiro e catequista Laerte Borella em pé, em palestra no clube da Usina Palmeiras. À esquerda, eu (de braços cruzados) e o amigo Zico.


O catecismo

Ilustração do livro "Na Escola de Jesus"
Relembrando minha distante formação religiosa, penso às vezes que, para os adultos crentes nem sempre é necessário se ver algo para que se tenha uma noção de referência e seguir adiante com sua fé; já para as crianças em processo de catequização, se faz necessário que se se lhes dê alguma baliza ─ as crianças, via de regra, feito São Tomés mirins, querem ver, e elas precisam ver para crer ─ é natural da idade...

Mas, esse mundo é insensato, amigos, pois enquanto para uns é licito e racional se cultuar e venerar um terrível instrumento mortal como a cruz, para outros é uma heresia fazer uma imagem de Cristo!... Muitos, rejeitam o Deus-ídolo, isto, mesmo que nunca tenham tido contato direto com o Deus-pessoa!... É fácil notar que os adoradores de imagens e outros ídolos religiosos ─ como a representação de Nossa Senhora, p. ex. ─, tratam seus santos com o mesmo carinho e inocência com que as crianças tratam seus brinquedos, seus super-heróis, artistas, ídolos musicais e bonecos. É mais ou menos por esse caminho e raciocínio que as histórias aqui irão se enveredar.

Convém abrir um parêntese aqui para lembrar que, ao longo do texto, Deus é grafado com inicial maiúscula, e o meu mestre Millôr que me desculpe, porque, ao contrário dele ─ mas, usando suas palavras ─, faço questão de potencializá-Lo assim mais por respeito que por imposição ortográfica. Assim seja!

*   *   *

Naquelas aulas de Catecismo ─ sempre aos domingos de manhã e uma vez por semana ─, piedosas histórias nos foram contadas e fomos expostos pela primeira vez às coisas do espírito e à disciplina religiosa, ensinamentos que, naquela época, ainda se valorizava tanto ─ ou, pelo menos, me parece que se valorizava mais que hoje... O objetivo destas aulas era preparar a molecada para a chamada Primeira Eucaristia, ou seja, a Primeira Comunhão, onde tínhamos rudimentos de alguns princípios da Igreja Católica, como por exemplo, aprender os 10 Mandamentos, os sete sacramentos (a Primeira Eucaristia era um deles), bem como decorar as primeiras orações, como o “Pai Nosso” e a “Ave Maria”; mas não me lembro se nos ensinaram também outras como “Salve Rainha” e o “Credo” ─ destas duas últimas, não me recordo de um dia ter orado a primeira, porém, a segunda era normalmente rezada nas missas comuns, sendo que só consegui decorá-la após ter participado de muitas missas, já que era mais “complexa” que o “Pai Nosso”.

Naquele tempo, e naquela comunidade rural, naturalmente, as crianças não tinham fácil acesso à textos religiosos, além de que muitos não tinham televisor em casa, e mesmo o cinema da Usina não passava filmes do gênero. Quanto à missas transmitidas pelo rádio, não me recordo de existirem na época. A Bíblia era coisa de adultos, e, àquela idade, as crianças normalmente não se preocupavam com isso, de modo que o que as supria eram as aulas dominicais de catecismo, onde travavam contato com a História Sacra e os ensinamentos religiosos. Fora isso, só as imagens de santos, os folhetos e sermões nas raras missas que aconteciam no clube, lembrando que a primeira igreja da comunidade só foi construída 10 anos depois, por volta de 1981. Assim posto, temos que destacar o valor didático das imagens que eram apresentadas à molecada, seja nas missas, seja nas aulas, material que, com isso, surtia mais efeito na cabeça de crianças ainda não afeitas à leitura voluntária. Eram representações que, de certo modo, instruíam os novatos, assim como os vitrais, as pinturas no teto e paredes, as imagens dos santos, bem como a série de quadros da Via Sacra na igreja Matriz lá na cidade. Dentre estas imagens, uma me marcou para sempre, e que é o tema central desta história.


Convém esclarecer que essas aulas nem sempre nos levavam a rezar em casa, mas não raro éramos obrigados a isso, que era quando, por exemplo, nossa mãe dizia algo como: "Reza para encontrar esse tênis novinho que você perdeu!"...

Já no início da aula, o Marcos disparou:

─ ...e se Jesus voltar, seu Laerte, como saberemos que é Ele e não um farsante?

─ Taí, Marcos, uma boa pergunta! Mas farsante é uma palavra meio pesada, não?... Mas em se tratando Dele realmente, Sua volta será inconfundível e nada haverá de igual no planeta, tenha a certeza!

Dito isto, ele abriu a pagina de uma revista recente, e mostrou uma ilustração que estampava uma a imagem de uma mulher grávida, e acrescentou:

─ Vejam isto, meninos: a empresa Copersucar ─ que vocês bem conhecem, pois a Usina é filiada à ela ─ fez esta bonita reportagem de Natal, e aqui diz: “Antes de entregar Seu filho aos homens, Deus organizou uma família”. Ela representa Maria grávida de Jesus. É deste assunto que iremos falar hoje aqui em nossa aula de Catecismo. 
Adesivo da Cristalsucar


─ O açúcar cristal que usamos lá em casa é da Copersucar, seu Laerte! 

─ É o Cristalsucar. Nós usamos também lá em casa. É aquele que vem num saquinho plástico transparente. Mas, criançada, eu vou deixar esta revista aqui na mesa depois da aula, e quem quiser dar uma olhadinha, tem uma reportagem sobre a arte de jogar pingue-pongue, onde há umas dicas de como jogar, fazer saques diferentes etc. Depois, vocês podem praticar lá no Clube com a molecada!

─ Uau! 

Desenhando o Todo-Poderoso

O Marcos C. Pereira, em sua 1ª Comunhão
Então o seu Laerte, para quebrar o gelo, iniciou a aula com uma simples pergunta:

─ Meninada: na casa de vocês, todos costumam rezar antes das refeições?

O Marcos Pereira se antecipou:

─ Não, Seu Laerte, em casa não precisamos: minha mãe é ótima cozinheira!

A molecada não entendeu nada da malícia do Marcos, mas o catequista não se conteve e riu a valer...

─ Isto é uma aula de religião, Marcos, e não momento para gracinhas!

─ Eu só abro a boca quando tenha certeza...

─ O quê que você disse, Marcos?

─ Nada, nada...


*   *   *

─ Mas o que é isso aí no seu braço, Wenilton? ─ perguntou o Marcos.

─ Uma tatuagem.

─ Tatuagem de quê?

─ De um touro.

─ Touro? Mas touro é animal do diabo, Wenilton!

O Zico intercedeu:

─ Tinha que ser um carneirinho, rapai, animal de religião!

*   *   *

É sempre assim: cada criança é um caso ─ é única e difere sensivelmente das outras em sua essência e, pessoalmente, vai construir o seu conceito do mundo e o modo de encarar os ensinamentos da religião. Normalmente, nesta idade, costumamos indagar sobre o mundo e a vida sem medo de errar ─ o ego não entra na ponderação ─ elas aprendem sobre a vida com inocência, mas com verdade.

Naturalmente, éramos mais cheios de uma contagiante alegria de viver e se divertir do que tomados por insaciáveis desejos de saber das histórias magníficas e lições que envolvem a religião, mas, eu, particularmente, primava por ambos os lados ─ como diria o Erico Verissimo ─ o mesmo “insaciável desejo de saber, indagar, alargar horizontes inteiros e exteriores que caracterizavam os gregos na antiguidade” (of course...).

Assim, permeado por este conceito, completo o meu pensamento acrescentando que o autor destas lembranças se vê tentado a declarar que, neste quesito, era uma criança assaz diferente das restantes, digo, “normais” (as usual...) ─ mais ainda que o próprio Marcos ─, mas não tão malicioso... Assim era o meu amigo, que, diante duma situação inesperada, saía sempre pela providencial tangente do humorismo...

*   *   *

De volta à trama, digo que, naqueles tempos da Usina, ao contrário de hoje, o Brasil ainda tinha a cara do Catolicismo. Oh, estes modernos tempos incompreensíveis, era de inversão de valores, em que há pessoas que consideram que o ensinar religião nas escolas para as crianças é quase como praticar atos de abuso infantil! A propósito, convém não esquecermos do escritor Alex Nascimento que, certa vez, falou sobre o estudar religião, que, para ele, “é um saco, ninguém pode fazer pergunta, tudo é dogma da fé”. Felizmente, não é o que veremos neste caso, em que, aliás, há muito falatório (e contestação...).

*   *   *

Antes de começar a aula, o seu Laerte resolveu pregar uma das madeiras da borda da lousa, pois ela estava se soltando. O Marcos, sentado logo atrás, observava tudo atentamente, fato que não passou despercebido do catequista.

─ Você está vendo como é que se conserta uma lousa, não é Marcos?

─ Não, não seu Laerte ─ respondeu o Marcos ─ Estou só esperando para ouvir o que o senhor vai dizer a hora em que der uma martelada no dedo...


*   *   *

Vale lembrar que, por esses tempos, eu já me encontrava batizado ─ indivíduo já integrado à comunidade de fiéis ─, porém, para sacramentar este processo, faltava-me apenas a tal de Primeira Comunhão, assunto de que tratarei no capítulo seguinte.

— Na aula de hoje, crianças, vamos falar de Deus, o Pai de Jesus!

─ Uau!

─ Nossa, não sei quase nada Dele, Wenilton!

─ Eu também, Zico!

Dito isto, o catequista tomou de um giz branco e no quadro negro traçou uma linha com três curvas, sendo que a porção central dela era mais alta, assim como uma pequena montanha, e ambas as bordas se curvando para baixo. No entorno dessa montanhinha, fez pequenos traços centrífugos, assim como raios de luz partindo de um sol. Depois, para ficar mais vistoso, engrossou os traços.


Ninguém entendeu nada (eu, mais ainda...)

─ O quê é isso?!  ─ alguém murmurou.

Em seguida, com uma expressão de encanto nos lábios, o vendeiro ─ que de vendilhão do templo nada tinha (como se verá) ─ explicou:

─ Este aqui é Deus, meninos! (oh, sancta simplicitas!...)

─ Deus?!  ─ alguém murmurou (era eu...).

Parte de nossa turma
E a molecada ficou ali, não perplexa, mas confusa, tentando entender o que havia de Deus naqueles traços primários.

Notem, amigos, que, em vez de uma figura que deveria primar pelo superlativo, o comedido catequista relegou-a a um plano quase abstrato, minimalista mesmo: um traçado curvo e uns rabisquinhos acima que, à primeira vista, nada sugeriam. Aquele Deus que deveria “estar em todas as coisas”, parecia não fazer morada ali... (Hoje, diria, que, curiosamente, num mesmo traço, o Seu Laerte claramente me remetia a dois famosos arquitetos: Antoni Gaudí e Oscar Niemeyer: daquele ─ astuto observador da natureza ─, parecia seguir o bordão de que “A linha reta é do homem, a curva pertence a Deus”, e deste ─ que acreditava no universo curvo de Einstein ─, seguia a “curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”)

─ Nossa, será que ele tomou uns vinhos antes de vir para cá?  ─ murmurou o Marcos maliciosamente...

O Zico o repreendeu entredentes:

─ Que maldade, Marcos! Você não vai para o céu, rapai!

─ Ué, mas padre não toma vinho?

─ Ele é catequista, e não padre... ─  acrescentou o Paulinho.

Distante da conversa de meu amigos, e fitando atentamente o desenho do catequista, pensei comigo: “Mas... por acaso esse desenho não seria o Sol nascendo atrás de uma montanha?”. Depois, enquanto o seu Laerte estava entretido com o Franchi, outra besteira me passou pela cabeça, e resolvi murmurar algo para o amigo Zico  algo meio herético, reconheça-se ─, e apontando discretamente para o estranho desenho representado na lousa (antes fosse o “Sol nascendo atrás de uma montanha”...):

─ Zico, ô, Zico, olha bem: não parece a cabeça e o ombro do Mancha Negra?

─ O Mancha Negra das historinhas de gibi?

─ Sim.

─ Como é que pode, Wenilton, seu boko moko, comparar Deus com o Mancha Negra! Você não vai para o céu, rapai!

*   *   *

Outros alunos e, ao fundo, a casa de Catequismo e o Grupo.
Notar um traje típico da época, a blusa conhecida como "japona".
Lembro-me muito bem dessa ensolarada manhã do derradeiro mês do ano da graça de 1971, em que o evangelizador falava de Deus e Jesus como poucos. Não posso garantir que esse pormenor vai por conta do ficcionista, mas, do contrário, como já o disse, vai por conta da probabilidade...

Obviamente, desde que me dei por gente, sabia quem era Jesus, pois conhecia Sua imagem, aquela que via num quadro na sala de minha casa, e que está até hoje com a família ─ assunto a que retornarei adiante. Porém, quando ele se referia ao “Pai de Jesus”, a maioria dos amiguinhos de catecismo tinham pouca ou nenhuma referência, e aquela imagem figurativa que o catequista passou para nós era muito estranha. Convém lembrar que, nisto, eu já conhecia a imagem de Deus, que vira num livro, também comentado adiante, livro este que era meio tipo jornal, que, feito criança, numa bela tarde chuvosa dentro do quarto, a gente abre suas páginas no chão e, estendido sobre elas de barriga, se põe a examiná-las curioso e pedalando as pernas no ar.

─ Mas Deus é assim mesmo?! ─ desabafou baixinho o Paulinho para o Marcos.

Mas acontece quer isto era coisa que não importava ao teor da aula; porém, mesmo assim, fomos obrigados a reproduzi-Lo. Mas oras, era superfácil desenhar aquele Deus esboçado com traços simples! Então, que problema havia?

Em filmagem por drone da FPV em 2019, a Escola,
a casa de Catecismo e o Clube Recreativo ao fundo.
─ Ninguém vai ter dificuldades para desenhar, não é, meninada?! E não precisam nem saber desenhar! É como desenhar um pedacinho de nuvem Cumulo!

“Nuvem Cumulo!” Que é isso?! ─ se espantou o Paulinho.

Como eu era um menino que gostava e entendia um pouco de nuvens, expliquei-lhe:

─ Nuvens cumulos são aquelas nuvens branquinhas de bordas arredondadas, e dizem que são nuvens de bom tempo.

─ Hummm...

─ É nuvem de Deus ─ emendou o Marcos... ─, pois se fosse nuvem do capeta, seria essas nuvens escuras que soltam raios e trovões!

─ O quê que você está falando aí, Marcos?

─ Nada, nada, Seu Laerte...

Sim, sim, amigos, eram nada menos que aquelas mesmas nuvens que foram citadas e me chamaram a atenção, três anos depois, no disco  "The Journey to The Center of the Earth” (1974), do tecladista Rick Wakeman, na Narração Nº 6, pela belíssima voz do ator David Hemmings, onde ele diz: “Cumulus clouds formed heavily in the south, like huge wool packs heaped up in picturesque disorder.”

*   *   *

O Clube Recreativo, no início da década de 70, visto
a partir da casa onde se ministrava o Catecismo
O que eu sei dizer é que esse simples desenho mexeu deveras com minha imaginação, de modo que ele ficou guardado em minha memória afetiva pela vida afora, e hoje, finalmente, ele estrela e se sacramenta aqui nesta singela história.

Àquela altura ─ entre cismas gerais dentro da classe ─, um sinal de interrogação brotou em minha mente: “Mas, desenhar um Deus de modo meio igual ao que eu desenhava um sol entre duas montanhas até poucos anos atrás nas aulas aí do Grupo?! Será isto mesmo?!”

Como se viu, fomos “obrigados” a desenhá-Lo assim mesmo, uma vez que, como dizia o catequista, ao contrário do “humano” Jesus, não tínhamos imagem concreta alguma de Deus em que se fiar.

Não posso afiançar se eu, assim como os meninos europeus, já aos 5 anos fazia perguntas sobre Deus, mas, aos 10, já não havia como fugir duma situação dessas ─ de contestações... Bem sei que, desde os 7 anos ─ quando se inicia a tal da “idade da razão” ─, já estava eu sujeito ao pecado, à confissão e ao medo inerente, e como se verá, à contestação também (e põe contestação nisso!...).

Imerso nesta fase da vida em que temos dificuldade no lidar com conceitos abstratos, eu teimava...

― Mas, seu Laerte, todo filho não puxa para o pai?

― Sim, mas...

Eu insistia...

— ...mas ninguém sabe como é a cara de Deus, Seu Laerte?

— Não é cara que se fala, Wenilton é face, face de Deus! E face, só de Jesus, e olhe lá!... 

Entre minhas perguntas que não queriam calar e mudezes que nada perguntavam, o catequista foi incisivo:

— Aliás, o rosto de Jesus está lá impresso no Santo Sudário, para quem duvidar!

─ “Santo Sudário”! O que é isso?! ─ perguntei curiosíssimo.

─ É um pano em que Jesus foi enrolado após ser retirado da cruz, também chamado mortalha. O sangue e o suor Dele ficaram marcados no tecido , o que causou uma impressão total de Seu corpo! 

A coruja Suindara, ou Rasga-mortalha
─ Essa mortalha tem a ver com aquela coruja branca que passa voando de noite por aqui, não é, Seu Laerte? 

─ A Suindara, aquela que vem lá do oco da paineira da entrada da fazenda Santa Clementina?

─ Não sei, mas meu amigo, o Machado, disse que lá na fazenda Capitólio, em Leme, tem umas num galpão.

─ Isso mesmo, Wenilton! Mas isso é folclore, porque dizem que quando ela canta ela imita o sudário sendo rasgado. Ela também é chamada de Rasga-mortalha.

─ Que legal! Já tinha ouvido falar!

─ Legal?!

─ Ah, Seu Laerte, quando a gente está de noite lá perto do casarão abandonado, e ela passa voando e cantando por ali, a gente arrepia com aquele ruído estranho que ela faz!


─ Mas chega desse papo, meninada! Vamos voltar ao assunto da aula!

― Mas, então, Seu Laerte, o homem não foi feito igual à Deus, como diz a Bíblia?

― Sim, Wenilton, mas não quer dizer que somos a cara Dele, pois...

─ Mas não é face, Seu Laerte?

Com um sorriso amarelo, ele completou:

─ Sim... então, cada um tem a sua própria face. Isto quer dizer que o homem se parece com Deus, mas não com um animal. Entenderam?

― Sim ─ concordei, não convencido de todo...

*   *   *

Da direita para a esquerda, Binão Mathias,
Celso e Gustão Domingues e Paulo Caetano
O Gustão Domingues passou pelo passeio da colônia, e da janela, com o rádio em alto volume, ouvimos a nova canção do Roberto...

”Jesus Cristo
Jesus Cristo
Jesus Cristo
Eu estou aqui!”

─ Não sei o que está acontecendo com essa juventude, com esses chamados rockeiros?! ─ indignou-se o Seu Laerte. Primeiro veio a tal de “Jesus Cristo Superstar”; depois aquela ruivinha cantando “Meu bom José”; quase junto veio o Roberto Carlos com “Jesus Cristo”, e, por fim, aquele cabeludo e barbudo do Beatles com a tal de “My Sweet Lord”! O que eles pensam? Que podem competir com os compositores religiosos?!

─ Mas são músicas bonitas, Seu Laerte!  ─ acrescentei. Ele meneou a cabeça e virou-se para a lousa sem falar nada. Mas... voltou-se e acrescentou:

─ Sinceramente: espero que o Joaquim Gouveia não esteja tocando essas músicas lá no clube, enchendo a cabeça de vocês! 

Muitos se entreolharam ali dentro, prestes a rir...


Antropomorfizando Deus... 

O famoso Deus pintado por Michelangelo na Capela Sistina
É curioso que, já em 325 d. C., o Concílio de Nicéia estabeleceu as bases da Igreja Católica e... Deus passou a não ter mais forma!... Muito depois, a humanidade foi exposta ao chamado “Deus de Spinoza” ─ o ente despersonalizado e geométrico do famoso filósofo, que ia na contramão de todas as formas de se conceber Deus como uma espécie de entidade. Segundo este filósofo, “o nosso destino está marcado”, “Deus é o Universo, e o ser humano é uma partícula ínfima desse mesmo Universo”. 

Porém, já por esta época, havia muitos artistas que retratavam-No como um senhor de barbas brancas sentado sobre um trono. Oras, Deus criou o homem à sua imagem, mas Deus teria a feição ariana como as imagens feitas Dele por humanos que nunca O viram?! Pelo menos, não no desenho do Seu Laerte, que ia totalmente na contramão...

Ah, antes o nosso bondoso evangelizador fizesse um deus à imagem do homem; antes fosse ele um desses neitzchenianos e criasse seu deus à imagem e semelhança do homem!...  Mas não: o Seu Laerte ― certamente sem o saber ― parecia retratar naquela lousa o Deus de Spinoza ─ nada daqueles simples traços remetia à patriarcal figura de longas barbas, o Supremo de poderes sobrenaturais, o ser etéreo dos afrescos de Michelangelo na Capela Sistina (sim, sim, caro leitor, eu sei: aí já era querer demais!...).

Obviamente, não era o caso do nosso querido catequista, mas, naqueles tempos se dizia que havia os que formavam uma ideia tão imperfeita de Deus, que O desfiguravam!... À propósito, cinco anos antes de nosso catecismo, ou seja, 1966, um tal de rabino Marshal Meyer fora da opinião que a Igreja não pesquisava novos símbolos para falar de Deus.

─ Me desculpem, meninada, mas, por mais estranho que pareça, meu modo de representar Deus é assim!

Daí, que éramos lembrados do sentido oculto daquela representação:

─ Ah, meus meninos, não se esqueçam do que Jesus disse: “Felizes o que não precisam ver para crer”!

─ Mas São Tomé era um infeliz, hein... ─ murmurou o Marcos...

─ Você disse alguma coisa, Marcos?

─ Nada não, Seu Laerte... estava só pensando alto...

─ Sei...

Era mister que naquele traço simprão deveríamos entrever a luminosa figura de Deus, mas, estranhamente, acreditem, é que mesmo em sua economia de traços, o tal deus de pouco mais de uma linha numa canetada tinha a imponência de quem está nas alturas — por assim dizer, alturas de rei que não perdia a majestade! Parecia sim estar acima de nós, a nos comandar, olhando-nos, velando-nos, ou punindo-nos...

─ Marcos, pára de cochichar, ou vou te pôr de castigo! (Nunca vi, ou soube, de algum menino ir de castigo numa aula de catecismo!...)

"Deus e a criação dos animais", pintura de Rafael
Enfim, que fosse o Deus de Nicéia, que fosse o Deus de Spinoza, quiçá o Deus alado de Rafael  cabeludo e barbudo, de manto esvoaçante , ou mesmo o Deus sem rosto do Menotti Del Picchia, mas era Deus, o teu, o meu, o nosso Deus!...

Mas, curioso notar que se, hoje, fossemos analisar o caso pelas teorias dos estudos do desenho infantil, veríamos que entre os 8 e 10 anos as crianças desenham árvores onde o tronco e a copa são simbolizados por um única linha contínua, de modo que o desenho do Laerte mais ou menos se adaptava à nossa idade: ele “descia” ao nosso nível de compreensão para poder representar figurativamente Deus de acordo com a sua concepção. Aliás, dizem os entendidos do ramo que crianças facilmente impressionáveis ─ como eu (of course...) ─ desenham com traços ligeiros, utilizando sobretudo curvas, porém, veremos que não foi bem assim o meu caso...

*   *   *

Madre Emília Bizzi
O Seu Laerte precisou atender a madre Emília Bizzi, e a meninada aproveitou para espairecer lá fora.

─ Podem ir beber água na escola, se quiserem! ─ orientou o catequista.

Essa madre, cujo semblante um quase nada resta nos sótãos de minha memória, perguntou:

─ E os alunos, estão indo bem?

─ Ah, essa criançada de hoje fazem cada pergunta! Tem cada ideia!

─ Tem que levar na rédea curta, Laerte!

Desnecessário dizer que as irmãs e catequistas eram o alento moral na Usina nesta conturbada e ousada fase da Contracultura. E as crianças as adoravam, mesmo aquelas irmãs mais rígidas, de cenho fechado, que nunca riam e só repreendiam.

Súbito, no alto-falante do Clube começou a tocar uma canção, o novo sucesso do Bread, a belíssima “If”...



A Silvana Godoy e a Tuca Petruz na Balança da Usina
Nisto, duas meninas se aproximaram. Eram a Tuca Petruz e a Silvana Godoy, que, cada qual com suas cestas, levavam o almoço de seus pais lá na Balança.  O Marcos, na maior cara de pau, tascou:

─ Mas são lindas mesmo estas duas, hein!

─ São, Marcos! ─ concordei. O amigo emendou:

─ São Marcos?! Eu não sou santo não, Wenilton!

As duas beldades passaram e deram um sorrizinho.

─ Vamos convidar elas para assistir Aristogatas com a gente lá no cine Araruna, Wenilton?

─ É uma boa ideia, Marcos! Meus amigos lá do grupo Zurita falaram que o desenho é demais! Mas, você tem dinheiro para pagar para todos nós?...

─ Ih, rapai, nóis semo humirde!...

─ Há, há, há!...

─  Mas a minha irmã Valéria tem o disquinho dos Aristogatas! Vamos convidar elas, então para ouvir o disco lá em casa...

Valéria C. Pereira, set. 1971
*   *   *

Depois, um menininho em trajes sumários ia passando na estrada acima. Era o irmão do Zico, o Mineiro.

Daí que o Zico resolveu fazer um teste com ele, que era uma criança que a mãe não tinha pudor algum em deixá-lo pelos passeios da colônia só de camisa, sem as devidas vestes da parte de baixo!... Na verdade, naqueles tempos inocentes, isto era a coisa mais comum nas zonas rurais, e até mesmo nas perifirias das cidades.

Só de shorts, o Mineiro, e eu acima acenando
─ Ô, Mineiro! Vem cá, menininho sapeca!

─ Que foi, Zico?

─ Me diz uma coisa: você sabe quem é Deus?

O Mineiro tirou a chupeta da boca, fez um inacreditável ar de esnobe, e, se fiando no balão psicodélico de sua fantasia, disse:

─ Ô se sei: Deus é o amor com cabelão grande e superpoderes!

Rachamos o bico... E o Mineiro, coçando as traseiras partes de baixo, saiu correndo pelo passeio.

─ Esse meu irmão tem cada uma!...

─ Mas, Zico, mudando de pato para ganso, me diz uma coisa: tua mãe se inspirou no Pato Donald para deixar teu irmão vestido assim?...

─ Há, há, há!... Você não vai pro céu, rapai!...

Resolvemos fazer a mesma pergunta para o Nelsinho:

─ Me diz uma coisa, Nelsinho: você sabe quem é Deus?

─ Claro que sei! Deus é uma pessoa que não é pessoa, mas é como se fosse, só que é muito mais do que gente! Deus sabe tudo, tudo, tira 10 em tudo! Deus é o bom!

─ Então você acredita em Deus? ─ o Paulinho perguntou.

─ Nossa, Deus me livre de não acreditar!

Ao lado do Mineiro estava o Neguinho, e ele não escapou de uma pergunta nossa:

─ Fala aí, Neguinho, o que é o Inferno!

─ Inferno é um lugar onde a gente morre muito mais.

Rimos da colocação.

Desta vez a pergunta foi para o Picolo.

─ Você sabe o que é milagre, Picolo?

─ Milagre é mágica de Deus!

Desta vez, ficamos bestas..., mas o Picool não parou por aí...

─ Tem de ser muito corajoso para morar no céu, oceis sabia?!

─ Porque, Picolo?

─ Porque o céu é muito alto!

Gargalhadas gerais...


Deus ex machina

Mas acontece que mesmo que todos, invariavelmente, tivessem que reproduzir aquele econômico e simples traço, eu, ainda assim, desenhista que era, não estava contente nem conformado com aquela simplicidade toda: não queria mesmo representá-Lo de maneira tão prosaica. Como desde os 5 anos eu já vinha garatujando figuras com lápis e canetas, resolvi, então, fazer do meu jeito... Nisto, uma vez livre de uma certa hesitação, convém perguntar que processos seguiram os meus pensamentos. Assim, revirei a memória, e, conectando fatos, reportei à coisas passadas, uma imagem chamando outra... e eis que atinei com algo! E assim se deu.


*   *   *

— Todos já desenharam, criançada?

Um uníssono de afirmações invadiu a pequena sala, mas alguém disse:

— Nããão!... (era eu...)

O catequista, que estava ao meu lado, perguntou:

— Mas o quê que é que você está rabiscando aí, Wenilton?

Meio que encobrindo o papel com o braço em “v”, retruquei:

— Espera um pouquinho, Seu Laerte, que eu já-já mostro para o senhor.

─ Pode me chamar de Senhor, Wenilton, mas não espere de mim nenhum milagre...

─ Ãhnnn?!

─ Nada, nada, Wenilton, estava brincando... quis dizer que o Senhor está no céu...

─ Ué, mas Ele não está em todas as coisas, Seu Laerte?!

─ Sim, sim, mas...

Meio sem jeito, o catequista desconversou e tentou checar meu desenho na marra...

— Mas uma coisa tão simples assim, e você ainda não acabou, Wenilton?!

— Calma, que eu estou bem no finalzinho, seu Laerte!

— “Finalzinho”!... Me dê esse caderno aqui, menino! Deixa-me ver o que você está rabiscando aí!

Criança ñ identif., Giacomo, Angelina e Márcia Petrus no clube, 1975.
Com cara de espanto, ele mirou o desenho e perguntou meio que ressabiado:

— Mas o quê é isto, menino?! Não foi isso que eu desenhei na lousa!

— Eu sei, seu Laerte, mas eu acho que Deus é desse jeito.

O catequista não conseguiu esconder uma certa irritação, e elevou o tom...

─ Mas o quê que você não entendeu em meu desenho, Wenilton?!

─ Oras, seu Laerte: não é que eu não gostei, mas Deus não é assim...

─ Vocês crianças modernas são complicadas! A gente tem de explicar, desenhar; depois, explicar o desenho e, se bobear, tem de desenhar a explicação também!

Mais vermelho que a massa do extrato de tomate Etty, desabafei:

─ Me desculpa, seu Laerte!

Com o cotovelo apoiado na mesa, mantendo o dedo polegar abaixo do queixo e o indicador apoiado na lateral do rosto feito um esquadro “zero grau” de pedreiro, ele arrematou:

─ Se as crianças podem desenhar o Sol com olhos, nariz e boca, porque eu, adulto, não posso desenhar para vocês Deus com um traço só?!

*   *   *
Lá fora, próximo à janela, duas meninas conversavam:

─ Nossa, que soluço, Tuca! Acho que vou molhar o lóbulo da orelha com água. Dizem que é bom.

─ Mas não vai enferrujar o brinco, Márcia? ─ ironizou a amiga...

─ Meu brinco é de ouro, sua tonta, e não bijuteria!

*   *   *

Eu, no ano em que se passa a história
O catequista, certamente indignado, devia pensar lá com os seus botões: “Mas quem é esse menininho ─ um coisica de nada, um verme que mal aprendeu a ler e mal desenha ─, para contestar a forma do Deus imensurável, onisciente, onipresente e onipotente?!”

Ah, fosse hoje, eu perguntaria: “Mas onde nesta lousa, Seu Laerte, o Deus de misericórdia, vestido de branco, sentado num trono dourado, ou o ser transcendente flutuando pelo céu com sua bata esvoaçante?!”...

Mas, neste dia, só faltou ele dizer: "O Deus mais próximo e fiel do Deus invisível, e ainda sim onipresente, é o meu, feito apenas com meia dúzia de traços!" 

Pensado bem, menor que Deus, acho que só mesmo a assimetria de ideias entre eu e o Seu Laerte...

*   *   *

O Gustão voltou e passou pela janela novamente...

─ Aí, eu não estou falando!  ─ exclamou inconformado o Seu Laerte...

E no rádio rolava a belíssima “My Sweet Lord”!...

 


Na Escola de Jesus

Mas acontece que eu havia caprichado nos traços me fiando nas belas ilustrações que havia visto num livro de minha mãe ― o belíssimo “Na Escola de Jesus” ―, livro este em que ela me passou os primeiros rudimentos da História Sagrada, livro que quando fora lançado, eu já habitava há cerca de cincos meses o ventre materno, ou seja, 10 de outubro de 1960 (haja precisão!...). 

Passei a segunda metade de minha primeira década de vida com esse lindo livro em meu colo (ainda o tenho!); folhe-ei-o à exaustão naqueles dias de descobertas; debrucei-me sobre suas ricas e sugestivas ilustrações ― e algumas delas funcionavam como um breve, uma advertência aos pecados que eu poderia vir a cometer, pois eram imagens chocantes: o inferno, aqueles demônios, a expulsão do Paraíso, morte de crianças, os apedrejamentos... Eram cenas que me impingiam aquilo que o Erico Verissimo expressou como o “temor reverente diante do invisível”.

Fiz dele, também, uma espécie de tesouro da juventude, um registro de meus dias ― à suas imagens se liga ainda hoje a imagem de minha mãe: ela costurando no quarto, eu, sentando no chão folheando-o; ela arrumando as camas, eu folheando-o ainda; ela na janela conversando com a vizinha, eu... Livro que estava sempre ao meu alcance e jamais faltou-me: mesmo a partir da pré-adolescência,  sempre fartou-me espiritualmente, no que era algo como um meio de eu me suprir da religião que me faltava ― ou eu que não a procurava...  durante os dias da semana. 

À propósito, vale lembrar que, antes deste, eu me interessei por outro livro do gênero, na verdade, um livreto de Nossa Senhora Aparecida, que, aos 4 anos, “roubei” de minha tia Naide e fui ler em baixo de uma ponte de madeira que existia entre nossas casas. Ele percebeu, me seguiu, e ficou encantada com aquilo, fato que ela veio me revelar umas quatro décadas depois ─ aí, quem ficou encantado, fui eu...

*   *   *
Vejo-me aqui, forçado a entrar em detalhes que, é muito provável que o leitor não esteja minimamente interessado em sabê-los, mas, de qualquer modo, terá de lê-los para se certificar disto...

Já na primeira página de textos desse livro, lá estava Deus, numa ilustração denominada “O paraíso terrestre”, de autoria de Benvenuti, onde se vê Deus, enorme, barbas patriarcais, cabelos longos e revoltos, forte, robusto, cercado por dois jovens querubins que mais pareciam crianças ao seu lado. Mais adiante, outra cena: uma ilustração de Frei Bartolomeo, onde imagem parece se repetir, mostrando-o, porém, mais velho, mas com a aparência virilmente bíblica. É visto novamente nas três páginas seguintes, em outras belas ilustrações: a segunda, de Schnnor, com o nome “Deus Criador”, onde o Todo Poderoso viaja pelo Universo criando o Sol, a Lua e as estrelas; a seguinte, de mesmo autor, lá está Ele novamente, advertindo Adão e Eva... Na última, a clássica cena onde Ele aparece à la Moisés pairando em meio a uma sarça de fogo. Outras há no livro, mas basta, que o estereótipo se repete nas seguintes.


Vale dizer que estas imagens de Deus que eu conheci através deste livro, tinham as mesmas barbas brancas e longas como as de Papai Noel, mas nada tinham de seu ar bonachão, carismático e ridente ─ eram sempre sisudas e imponentes, impondo respeito e reverência. É certo que, no mundo do pensamento mágico das crianças, o mito é aceito em toda a sua plenitude, de modo que os psicólogos são unânimes:

“O peso emocional de um conceito propicia à criança uma fonte de satisfação que ela não deseja perder. mas quando a criança pergunta se ele existe mesmo é porque já tem suas dúvidas. O melhor é contar a verdade não adianta mentir. À medida que o pensamento lógico for chegando, a figura mágica de Papai Noel será eliminada”.

*   *   *

Eram estas representações de Deus mais ou menos como aquela de que falara o Raul Seixas, em que se referindo à sua infância, se recordando de um teatrinho doméstico onde um dos personagens mostrava Deus como ”um velhinho todo de branco”. O futuro Deus do Raul seria mais performático e impactante, o Deus que ele cantou a pleno pulmões numa impactante canção da qual trataremos adiante.

Perdoai-me o leitor se divaguei em excesso, mas, prossigamos; moderadamente, porém.


A Inês é morta

Santa Inês, do livro Na Escola de Jesus
Um dia, minha mãe me viu folheando novamente o Na Escola de Jesus, e apontando para uma figura na página que eu via, disse:

─ Sabe quem é esta santa aqui, Wenilton?

─ Não, mãe.

─ É a Santa Inês. Foi uma menina cristã que, mesmo inocente, foi martirizada!

─ O quê é marti... marti...?

─ Mar-ti-ri-za-da, Wenilton. Ser martirizada é ser sacrificada, judiada e morta.

─ Nossa, mãe, e o quê tanto ela fez para sofrer isso?!

─ É uma história triste, mas também tem coisas bonitas, milagres incríveis.

─ Conta, mãe, conta!

─ Pois bem: Inês era uma menina muito linda e cobiçada por todos os moços do lugar. Havia um jovem chamado Fúlvio, filho do prefeito de Roma, que se apaixonou por ela e pediu sua mão à família, mas ela se recursou dizendo que estava consagrada a Cristo e que seria Dele para sempre. Daí que isto enfureceu o rapaz, que, cheio de ódio, denunciou-a como cristã a seu pai, que mandou prendê-la. Depois, obrigou a menina a fazer coisas que iam contra sua religião, mas ela se negou. Assim, ela foi condenada a ser exposta nua num circo.

─ Nossa, mãe, que judiação!

─ Então, quando colocaram ela ali, uma luz vinda do céu a protegeu e ninguém conseguiu tocar em seu corpo. Em seguida, coisas incríveis aconteceram!

─ O quê, mãe?! Conta!

─ Daí que seus cabelos cresceram e cobriram toda a nudez de seu corpo. Quando uma rapaz tentou agarrá-la, surgiu um anjo guardião, e o rapaz caiu morto, mas Inês, cheio de piedade, orou a Deus e o rapaz ressuscitou.

E arrematando sobre a pior maldade cometida contra a indefesa menina, pontuou com um fundo de suspirosa queixa:

─ Depois, o prefeito, assustado com tudo, entregou Inês ao seu substituto, que decidiu condená-la à fogueira!...

─ Nossa, mãe, ela morreu queimada?

Imagem de Santa Inês, na igreja Matriz de Araras
─ Não, Wenilton. As chamas não conseguiam atingir seu corpo, mas avançavam para os que estavam em sua volta, matando alguns deles. Por fim ela por fim decapitada!

─ Deca o que, mãe?

─ De-ca-pi-ta-da: ele teve seu cabeça cortada!

─  Nossa, mãe, que horror!

─ Mas os milagres não acabaram aí, Wenilton!

─ Porquê?

─ Quando sua cabeça rolou pelo chão, ela ainda conseguiu pronunciar algo: que, naquele momento, ela passava a pertencer a Jesus Cristo!

─ Nossa, mãe, que história incrível!

─ Mas sabe que tem uma feliz coincidência nisto tudo, e que interessa a você!

─ O quê é mãe?

─ Ela é a santa do seu dia!

─ Como assim?

─ Ela morreu no mesmo dia em que você faz aniversário: 21 de janeiro! Então, ela é tua santa protetora!

─ Nossa, mãe, não acredito!

─ Tem mais: a história conta que uma semana depois de sua morte, ela apareceu aos seus pais que, no momento, estava rezando em seu túmulo. Ela segurava um cordeirinho branco em seu colo, e estava cercada de muitas virgens e anjos, dizendo para eles ficarem tranquilos, pois estava muito feliz no reino dos céus.

─ Nossa, mãe, que lindo! Mas o que é cordeirinho branco?!

O Duca, carneirinho da Estrela, 1955.
─ Lembra daqueles bonequinhos de borracha dos teus primos, que eram do Gil, depois passou pra Lilian e depois ficou para o Davi?

─ Sim.

─ Um dos três bonequinhos não era um carneirinho branco?

─ Sim, o Duca, da brinquedos Estrela!

─ Este mesmo! Pois, então, era um cordeirinho. Um carneirinho é um cordeirinho!

─ Mas, mãe, então eu tinha um cordeirinho branco quando morava lá na cidade!

─ É mesmo!

─ E tem mais, Wenilton!

─ Conta, mãe

─ A tua avó Ana disse que lá na igreja Matriz tem uma imagem da Santa Inês.

─ A senhora me leva lá um dia para ver ela?!

─ Sim.


Os que viram Deus

Jesus Cristo e seu pai, Deus
Há quem diga que a aparência de Deus vai além da capacidade humana de compreensão e descrição ─ seria querer descrever o indescritível ─, mas, ainda assim, até hoje, há quem se arrisque ─ como a pouco vimos ─, a ilustrar a fisionomia do Divino, desejo antigo que se perde nos tempos recuados, fato que pode ─ dizem também ─ incorrer no risco de tornar a representação mais importante do que o seu significado.

─ Não estou conseguindo desenhar igual ao senhor, Seu Laerte...

─ Mas uma coisinha tão simples como essa, Viel?!


*   *   *

Lê-se lá no versículo 26 do primeiro capítulo do Gênesis um passagem que indica que temos uma identidade que corresponde a do Criador: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” Mas os teólogos afirmam que essa “imagem e semelhança” diz respeito à parte imaterial do ser, ou seja, a alma e o espírito, e não à carne e ao sangue. Muitos, se fiando nisto, dizem que Deus é um ser onipresente, onipotente e onisciente, e que isto tem a ver com a citada parte imaterial; e mais, Ele é eterno e infinito, o que sugere que Sua aparência se mantém intacta, sem alterações pela eternidade afora; mas, fica a pergunta: que aparência?

─ Tá bom assim o meu desenhinho, Seu Laerte?

─ Está ótimo, Teschinha!

*   *   *

Sabe-se que os islamitas não têm essa mesma curiosidade que nós cristãos, pois não se sentem tentados a representá-Lo com ilustrações de qualquer espécie ─ Ele existe sem um corpo, e ponto final. Na verdade, a representação de Alah é terminantemente proibida, já que isto poderia levar à idolatria. Sabe-se que nos velhos tempos bíblicos muitos personagens lançaram mão de linguagem figurada para poder conseguir expressar aquilo para o qual não se encontrava palavras. E a conversa do catequista foi nesta linha:

─ Coincidentemente, meus meninos, eu estive estudando esse assunto dias atrás, e soube que muitos personagens da Bíblia se encontraram com Deus ─ vamos ver se eu me lembro deles...

E, enumerando-os na ponta dos dedos, ia dizendo com fluência

─  Olha: teve o apóstolo João, Jó, Abraão, Daniel, Ezequiel, Jacó e Elias, Isaías... humm... Micaías também... e, como não podia deixar de ser, o famoso Moisés, mas nenhum deles pode ver Deus de modo a poder descrever Seu rosto com detalhes. Quem mais se aproximou disso foi João, que descreveu os cabelos, os olhos e a boca, porém, de maneira simbólica.

─ Sim o quê, Seu Laerte?

─ Sim-bó-li-ca: de maneira artística e não realmente como é, mesmo porque a gente não sabe como é...

─ Hummm...  ─ exclamou o Paulinho, não muito convencido da explicação.

Resolvi intervir... 

O profeta Ezequiel e a suposta visão de um UFO.
─ O senhor falou do Ezequiel, né, seu Laerte, mas lá na vitrine da gráfica São Paulo tem um livro à venda chamado “Eram os Deus Astronautas?”, e um amigo meu que leu, o Natal, disse que tem uma parte do livro que fala que o profeta Ezequiel viu Deus, mas ele estava a bordo de um disco voador!

─ Que besteira, Wenilton! Deus num disco voador?! O fato de Jesus dizer que Seu reino não é deste mundo e está no céu, não quer dizer que Ele é marciano, Wenilton! Mas, voltemos ao assunto: lembro de mais um caso, o de Felipe, que ao se encontrar com Jesus, pediu para que Ele lhe mostrasse o Pai, e Jesus disse que quem O fitasse, via o próprio Deus. Portanto, Deus é semelhante a Jesus.

─ Dias atrás, a gente estava assistindo programa “Pinga Fogo”, e eles estavam entrevistando aquele médium famoso, o Chico Xavier. Lembro que fizeram uma pergunta pra ele, e minha mãe ficou impressionada porque ele disse que existia vida nos outros planetas, que existiam extraterrestres. Ela e meu pai ficaram um tempão falando disso. Eu nem sabia o que era extraterrestre, mas depois eles me explicaram.

─ Eu não tenho nada contra o Chico Xavier, que é um santo, um amor de pessoa, mas eu não acredito em Espiritismo nem em extraterrestres, Wenilton.

─ E eu nem sei o que é Espiritismo, Seu Laerte.

─ Deixa pra lá.

Desde junho, as rádios tocavam uma canção do Caetano gravada em seu exílio na Inglaterra: “London, London”...




*   *   * 

E, relembrando de um quadro tão familiar: o “Coração de Jesus das estampas devotas” de que nos falava o Gilberto Freyre, exultei:

─ Nós temos um quadro de Jesus lá na sala de casa, Seu Laerte, aquele em que ele mostra seu coração preso por espinhos e sangrando!

─ É o famoso quadro do Sagrado Coração de Jesus! Belíssimo quadro, aliás, Wenilton!

─ Sim!

─ Pois, então, Wenilton, quando olhar este quadro, imagine estar vendo o próprio Deus.

─ Só que imaginando Ele bem mais velho, né, Seu Laerte?

─ Ah, meu Deus!...

─ Mas, Seu Laerte, me diga uma coisa: porque em todas as pinturas de Dom Pedro I e Dom Pedro II, o filho é sempre mais velho que o pai: o pai moço e magro e o filho gordinho e de barbona branca?

─ Verdade! Eu notei isso nos livros de História do Brasil!  ─ exultou o Nivaldo Franchi.

─ Wenilton, não foge do assunto de novo: aqui estamos numa aula de Religião, e não de História! Chega dessas conversinhas!

─ Me desculpa... ─ murmurei constrangido.

*   *   *

Ainda temos em casa esse quadro mais que cinquentenário, certamente comprado de algum mascate que passara por nossa chácara naqueles tempos recuados ─ um exemplar de uma daquelas velhas e consagradas oleogravuras com o Cristo “exibindo” seu coração ferido por uma coroa de espinhos, fitando-nos com um olhar terno e compassivo, imagem que se tornou icônica com o passar do tempo. Há muita história por detrás desta simples imagem, pois ela representa, como se viu, o chamado “Sagrado Coração de Jesus”, o símbolo de um movimento resgatado na primeira metade do século 19, cuja intenção era lembrar ao mundo que os severos ataques contra a fé cristã faziam sangrar o coração de Cristo, ataques estes desferidos, dizem, pelo Protestantismo.

─ Mas que Deus é representado mais velho que Jesus, ah, isso Ele é, Seu Laerte!


Aulas de desenho através de gibis

A uma certa altura, pensei comigo se o Seu Laerte conhecia aquelas imagens de Deus no livro “Na Escola de Jesus”. Então, baseado na lembrança das ilustrações deste livro foi que desenhei um Deus lembrando Jesus, mas com cabelos e barbas longas, porém, mais portentoso. Na verdade, acreditem, eu já era meio tarimbado para desenhar corpos humanos, isto, depois das “lições” que vinha aprendendo não só nos gibis dos citados super-heróis, mas também com os mestres Jayme Cortez e o Eugênio Colonnese, que eu conhecia de gibis de histórias de guerra da editora Taika, o célebre Combate. Em novembro passado eu havia comprado o Nº 7 desta revista, cuja capa ─ a cargo do grande Salatiel de Holanda ─, eu achei o máximo na época, em que havia uma bela ilustração de um avião Spitfire numa cena de batalha mergulhando no céu sendo perseguido por um Zero, gibi que, recordo-me, fui ler na barbearia do Gervásio enquanto esperava minha vez.

A esta altura, é bem provável que o leitor venha a contestar minhas capacidades como desenhista, duvidando que, já nesta idade, eu era capaz de reproduzir tais desenhos... Pois bem. Convém esclarecer que, já em 1969, além de aviões, eu estava desenhando naves espaciais, como, p. ex., houve um desenho de que não me esqueço, que era uma reprodução minha da ilustração “A True Gateway” ─ uma estação espacial ─ feita por Robert Gilruth, engenheiro da Nasa, em junho de 1968, ilustração esta que meu pai guardou com o maior carinho numa pasta sua por mais de 30 anos, desenho que, infelizmente, se perdeu. Para finalizar este parágrafo, gostaria de lembrar o leitor, isto, sem comparações pretensiosas, que o pintor francês impressionista Toulouse-Lautrec aos 9 anos já enchia cadernos e mais cadernos escolares com belos desenhos, e cita-se que, aos 15, seus retratos da mãe, do pai e dos criados eram primorosos.


Neste mesmo ano, em junho, comprei o meu primeiro gibi, o Nº 3 do Homem Aranha, numa história em que ele duela pela primeira vez com o vilão Dr. Octopus (e que acabou indo para a tela dos cinemas em 2002), de modo que passei a travar contato com super-heróis a partir deste gibi da editora Ebal. Depois, vieram Capitão América, Thor, Homem de Ferro, Hulk e Namor, e deste, desde 1970, eu vinha acompanhando suas histórias do também chamado Príncipe dos Mares ─ personagem desenhado pelo grande John Buscema ─, e gostava de tentar reproduzir aquele que para mim é o maior vilão de todos ─ o temível Tubarão Tigre ─, isto, mais especificamente a partir de setembro, quando ele surgiu. Vale lembrar que neles, assim como nos gibis do Thor, havia muitos figurantes atlantes e asgardianos, que, de imediato, me remetiam à personagens bíblicos, de modo que eu convivia com frequência com estes notáveis tipos rústicos e antigos, a maioria corpulentos, fortes,  cabeludos e barbudos.

O vilão Tubarão Tigre entre personagens da Atlântida. Gibi Namor e Hulk - Nº 39 - Novembro de 1970


Namor e Tubarão Tigre, Nº 40, dez. 1970.
─ Puxa! Olha que corpo musculoso e perfeito tem o Tubarão Tigre, Teschinha!

─ Nem o Joe Weider tem um corpo assim!

─ Podes crer!

─ Mas o Namor não fica atrás, não, Wenilton! Meu irmão está se matando para ser musculoso assim, mas não sei se ele vai conseguir não...

─ O Fio?

─ Sim.

─ Já pensou se fizessem um filme com os dois?

─ Um filme com meu irmão?!

─ Não, seu tonto: com o Tubarão Tigre e o Namor duelando?

─ Nossa, ia ser demais!

*   *   *

O Fio e o Teschinha
Assim, de posse daquele nada modesto cabedal de mestres do desenho, saiu um desenho que...

— ...está certo, Wenilton, o teu desenho está lindo, mas eu já não falei aqui que ninguém neste mundo sabe como Deus realmente é?!

Mais por ingenuidade que por pretensão, obviamente (que seria querer demais para o menino que eu era), emendei:

— Bom, seu Laerte, então se não sabem como Deus é, agora vão ficar sabendo...

― Eu te chamaria de herético, se você não fosse tão convencido, menino!...

─ Heré o quê, Seu Laerte?

─ He-ré-ti-co! Herético é quem desafia a religião, que vai contra ela!

─ Nossa, eu fiz isso?!

─ Quando você for pro Céu, Wenilton, finalmente vai ver Deus como Ele é ─ se é que você vai para lá, né...  ─ ironizou o Marcos.

─ Sem gracinhas, Marcos! Isto é coisa que não se brinca, menino!

─ Me desculpa, Seu Laerte!!...

─ Se continuar a dizer estas coisas, quem vai para o inferno é você, e vai arder nas chamas que nem aquele estúdio da Rede Globo a semana passada, quando acabou a novela Bandeira 2!

─ Deus me livre, Seu Laerte!!...

─ Estou brincando, menino...

Nisto ─ era por volta das 9 horas ─ se ouviu o apito do trem passando lá na encruzilhada perto do sítio do Marião.

─ Olha o trem da Fepasa!

─ Fepasa? Que nome é esse? Não é o trem da Companhia Paulista, Seu Laerte?

─ Era, Marcos. Desde outubro passado é Fepasa, a Ferrovia Paulista Sociedade Anônima. A Companhia Paulista foi extinta e incorporada à Fepasa.

─ Olha só!

─ Para mim, essa empresa vai durar mais uns cinco ou seis anos, quando muito!

─ Nossa, Seu Laerte!


*   *   *

E assim, amigos, eu fui “repreendido” pelo catequista, e só não fiquei de castigo porque isto era coisa que não existia em aulas de catecismo... As vezes, fico a pensar de ele me punindo, me obrigando a confessar o meu deslize quando fosse debulhar o rosário de meus pecados pela primeira vez com o padre Lanza no dia de minha Primeira Comunhão... No fundo, ele sabia que eu não havia cometido pecado algum, sequer um pecadilho, por venial que fosse.

─ Você aí, Zico, que fica conversando com o Wenilton toda hora, me responda uma pergunta: quantas pessoas formam a Santíssima Trindade?

 E o Zico, após fazer rapidamente o “Pelo Sinal” murmurando baixinho os dizeres que o acompanham, disse convicto:

─ Quatro, Seu Laerte.

─ Quatro, Zico?! São três, menino: Pai, Filho e Espirito Santo!

─ Mas e o Amém, não conta?

─ É claro que não, que Amém não é pessoa! Amém significa: “Assim seja”!

─ Hammm...

─ Então me responda Zico, o que Deus fez depois de Adão?

─ Depois que Ele viu que Adão era muito feio, fez a Eva.

─ Olha, Zico, e eu aqui pensando que o Wenilton era o problema!...

*   *   *

Walter Daltro com a Veraneio da Usina, e, ao fundo, os sítios do Narciso e do Marião
Ao final da aula, saímos pelo passeio, e as nuvens cumulos, como que em especial deferência ao Sol, abandonaram o céu. Ah, aquela luz dominical de banho de ouro do meio do dia!... Sob a sombra a imensa figueira que ainda existe ao lado do clube, entre coágulos de sombra e sol, ficamos conversando amenidades. Em plena temporada das cigarras ─ a cigarra-dos-cafezais ─, a serrazinada de legiões delas musicavam os ares naquele apitar contínuo. Súbito, surgido em meio a luz brilhante do campo aberto, apareceu na estrada, vinda dos lados do sítio do Narciso, a nova e estimada Veraneio da Usina, linda, toda azul, enorme, brilhante  sim, ela, o mesmo modelo cor azul que, em 1983, ficou famosa no filme "Pra frente Brasil!"!

─ É meu pai! ─ gritei.

─ Essa é a que tem três bancos, Wenilton? ─ perguntou o Teschinha.

─ Essa mesmo, espaçosa pra caramba!

─ Três bancos! ─ exclamou o Zico. Três bancos dá certinho...

 ─ “Dá Certinho” pra quê, Zico? ─ perguntei curioso.

─ Certinho para as três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo...

─ Ah, seu malandro! Depois é eu e o Marcos que não vamos pro céu, né, rapai?!

Rimos à beça...

─ Mas é linda mesmo essa tal de Veraneio, hein!

E quem diria que a nossa querida "caminhonete de três bancos" teria uma utilização inglória!... Daí que a nossa primeira e única crítica musical de rock ─ a grande Ana Maria Bahiana   disse que a Veraneio "costumava causar arrepios na galera desbum, porque também servia de "camburão"...

Nisto, passou um sorveteiro.

─ Olha o sorveeete! Hoje criança não paga!

─ Ooooba!

─ Quem paga é o pai!...


*   *   *

O padeiro Pretti e sua Kombi
Um caminhoneiro pára na estrada e pede uma informação para o Julião, que havia acabado de chegar:

─ Ô, menino, uma informação, por favor!

─ Pois não, meu senhor.

─ Esta estrada aqui vai para a fazenda São Bento?

─ Se vai eu num sei não, senhor, mas se for vai fazer muita falta!

Daí que o Isnaldo viu o padeiro Pretti jogando uma água na sua Kombi com uma mangueira emprestada do clube, e perguntou alheadamente:

─ Tá lavando o carro, Seu Pretti?

─ Não, não, tô regando pra ver se ele cresce e vira um ônibus...

Rachamos o bico...

Neto Baggio
Nisto, passou o Seu Lima levando os catequistas de volta para a cidade.

─ Alá, Isnaldo, o ônibus do Lima, aquele que antes era uma Kombi!!...

O Neto Baggio, que havia acabado de chegar de bicicleta, também riu da piada.

─ Mas que monareta mais linda essa, Neto! ― elogiou o Pretti.

─ É a Tigrão, a nova monareta da Caloi! Presente de meu pai!

─ Mas nem chegou o Natal ainda, menino!

─ Ah, eu vi a propaganda na TV, e já fui falando: não esqueça da minha Caloi!...

─ Tigrão? Ficaria melhor Tubarão Tigre... ─ ironizei...

A famosa Tigrão
Não houve quem dentre o meninos que não tivesse babado com essa "magrela", com seu banco comprido revestido de napa lembrando a pele de um tigre, e aquele incrível santo antonio atrás, tal como as motos do tipo chopper ─ sim, igualzinho ao da moto do Peter Fonda.

─ Ela tem um visual muito louco: parece uma moto, Neto! ─ elogiou o Isnaldo.

─ Meu pai me queria dar uma berlineta Dobramatic, aquela que tem uma mochila do lado, mas achei ela muito caretona.

─ Se eu tivesse uma Barra Circular da Monark, para mim já estava de bom tamanho! ─ desabafou o Pretti.  


*   *   *

Como meu pai não me viu, fui embora a pé eu, o Marcos e o Paulinho, e ao passar novamente pela venda, lá dentro rolava uma nova e belíssima música: "Don't let it die", do Hurricane Smith:

“The mounta inside, the flower grows
The riverside where the water flows forever
The jungle life of mystery
The wide and graceful history of life

Don't let it die...”

─ Que música linda, hein, Marcos?!

─ Demais!

─ E de que fala essa música? ─ perguntou o Paulinho.

─ Sei lá!

Fato criticado pelos mais velhos, não ligávamos por não entendermos as letras em inglês, afinal, como bem colocara o Cyro dos Anjos em seu “A Menina do Sobrado”, a música era uma “linguagem universal, não tolhida pela fronteira das línguas” e que “se transfundiam o pensamento e o sentimento, apurado na essência das essências”...


 

*   *   *


O Leiteiro
O Leiteiro chegou na venda trazendo um cavalo pela rédea.

─ E esse cavalo aí, Leiteiro? 

─ Estou alugando ele para passeios na Usina.

─ Que legal! Então eu quero dar uma volta! Eu nunca andei num cavalo na vida!

─ Ôôô, mentiroooso!

─ É verdade, Leiteiro!

─ Bom, então monta neste: como ele também nunca foi montado, você aprendem juntos!...

─ "Nunca foi montado"? Ôôô, mentiroooso! 

─ Mas, ô, Mirão: acho bom você pagar adiantado...

─ Que é isso, Leiteiro?! Tá com medo que eu volte sem o cavalo?!

─ Não, meu amigo: eu estou com medo é que o cavalo volte sem você!...


Música no clube


O abandonado Clube Recreativo da Usina Palmeiras, em 17-11-1998

A velha Guitarra Celio
Dentro do Clube Recreativo, a Fio Tesche perguntou para o guitarrista Joaquim Gouveia, músico que acompanhava a comitiva das irmãs:

─ Ô, Joaquim, por acaso você não toca “Jesus Cristo Superstar” na guitarra?

─ É uma música orquestral e com muitas vozes, Fio, mas posso tocar uma outra mais simples, uma daquela cantora dos Mutantes, que começou a fazer sucesso agora depois do carnaval.

─ Qual?

─ “José”, com a Rita Lee.

─ Pois manda brasa, Joaquim!

*   *   *

Ao final, perguntei ao Joaquim se podia mostrar para ele um pequeno solo que eu havia tirado no violão de meu primo Gil Nascimento. Ele consentiu. O Joaquim era um cara legal, e sempre deixava a gente dar uma fuçada em sua guitarra, uma Celio, nacional, relíquia hoje. Após ouvir, ele matou a pau:

─ Ah, é o solinho final de “Guajira”, do Santana!

─ Isso!

─ Grande guitarrista, o Santana!

Joaquim Gouveia, em 1971
Não pensem vocês que, às vésperas de completar 11 anos, eu já conseguia tirar solos do grande Santana, que eu não era nenhum um geniozinho precoce. Era apenas o trechinho final do primeiro solo de guitarra desta canção, que parece um pouco solo de música nordestina feita numa única corda, a chamada “Mizinho”...

─ Eu toco essa aqui também ─ e emendei no bordão algo semelhante.

─ Ah, o tema do Batman!

─ Você não toca o tema do Mancha Negra também, Wenilton?... ─ ironizou o Zico...

Ao final, executei de maneira meio capenga o solinho de “Menina da Ladeira”.

─ Ah, o solinho da música do João Só! Linda, esta música!

─ Uma das que eu mais gosto, ultimamente, Joaquim!

─ Todos esses solinhos são um bom começo para quem quer aprender guitarra! E você leva jeito pra coisa, Wenilton.

─ Sério, Joaquim?!

*   *   *

O Giacomo repreendeu o Isnaldo:

─ Ô, Isnaldo, não sabe que é feio cuspir no chão?!

─ Eu sei, Seu Giacomo! E até já tentei cuspir no teto, mas ele cai na cara...

─ !!!

E o Isnaldo, cuja família havia há pouco se mudado para a Usina, conversando depois com o negrinho Julião, perguntou alheadamente:

─ Aonde você mora, Julião?

─ Na casa de meu pai, Isnaldo.

─ E onde mora o seu pai?

─ Ele mora comigo, Isnaldo.

─ Disso eu já sei, caramba! Eu quero é saber onde vocês moram?

─ Moramos junto, caramba!... 

─ !!!

*   *   *

Era ser “descolado” nesta época conseguir tocar de músicas famosas de MPB que tivessem introduções usando riffs puxando para o rock.

─ Faz aí, Joaquim, a introdução daquela música do Paulo Diniz que ele fala da Bahia! ─ opinou o Nino.

─ “I Want to Go Back to Bahia”? Faço sim!!

E o danado fez igualzinho!

Mas ouve esta aqui, Nino, meio parecida, mas é mais difícil : “Criola”, do Jorge Bem”.

Tocava demais o Joaquim! Numa palavra: perfeccionista! Ele arrematou:

─ Essas aberturas de rock samba são um barato!

Um pouco antes de tomar o ônibus, o Joaquim fechou com "Goin’ back to Indiana", do Jackson Five, da trilha sonora da novela Bandeira 2.

─ Demais essa, Joaquim! Parabéns!  Elogiou o Gustão.

─ Bom amigos, goin’ back to city!

*   *   *

─ Mas, ô Gustão, linda esta música rolando aí no rádio, hein!

─ Sim, Marcos! Um sucessão no Brasil! É do novo disco do Paul MacCartney! Ela se chama “Uncle Albert/Admiral Halsey”!


Entrei na conversa:

O RAM, do Paul McCartney.
─ Meu primo Gil tem esse disco, e eu conheço essa música, de ouvir lá na casa dele.

─ O Big Boy disse que ele fez essa música em homenagem a um tio dele, chamado Albert, e que esse tio tinha a mania de declamar versículos da Bíblia quando estava bêbado!

─ Há, há, há!... Que barato!

O catequista, que se aproximava, ouviu a conversa...

─ Que barato daonde, Wenilton! Não é nada bonito declamar versículos da Bíblia quando se está embriagado! Onde já se viu!

─ Me desculpa, Seu Laerte...


Versículo versus versículo...

Outro dia, pretendendo botar um ponto final no assunto da imagem de Deus, o Seu Laerte me abordou antes da aula, e com uma Bíblia nas mãos, foi logo dizendo:

― Wenilton, quanto àquele assunto da aparência de Deus, vamos deixar que Ele próprio nos diga através de Sua palavra de “como” Ele é. E, abrindo uma página marcada com um papelzinho, apontou com o dedo um determinado versículo e o leu:

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. ― E completou, fazendo questão de soletrar: ― “Gê-ne-sis, Ca-pí-tu-lo 1, Ver-sí-cu-lo vin-te e seis”. Então, estamos conversados, senhor Wenilton?

Meio constrangido, murmurei-lhe:

― Sim, Seu Laerte, mas acontece que eu também trouxe algo para lhe mostrar...

― O quê?

Puxei um papelzinho do bolso e li em alto e bom som...

― Conversando com minha mãe sobre esse assunto, ela se lembrou de um capítulo do Velho Testamento, e procurou um trecho no livro. Depois que ela encontrou, anotou neste papelzinho aqui uma passagem que fala da aparência de Deus, e mandou mostrar para o senhor.

― Deixe-me ver.

Antes que entregasse o papelzinho, notei algo nos escritos:

― Olha só que coincidência, Seu Laerte!

― Que coincidência?

Fiz questão de soletrar:

― “E-ze-qui-el, Ca-pí-tu-lo 1, Ver-sí-cu-lo vin-te e seis”...

― Nossa, que coincidência! ― Ele exclamou, e tomando o papel de minha mão, foi lendo:

― “E sobre o firmamento, que estava por cima das suas cabeças, havia uma semelhança de trono, como a aparência duma safira; e sobre a semelhança do trono havia como que a semelhança dum homem, no alto, sobre ele.”

Meio constrangido, ele murmurou:

― Hummm... “como que a semelhança dum homem”...

E acrescentou:

― É a mesma coisa, Wenilton!

Como havia falado de minha mãe, resolvi fazer uma pergunta:

― Seu Laerte, me diga uma coisa: vamos supor que eu fosse para o céu e a minha mãe para o inferno.

― Sim.

― Então, será que eu ia conseguir ser feliz, mesmo sabendo que a minha mãe está naquela danação sem fim, já que a religião diz que quem vai pra lá vai sofrer no fogo eterno, sem chance de se salvar?

Ele entregou os pontos...

― Agora você me pegou, seu menino danado! Vou ficar te devendo essa...

Pobre Seu Laerte... nem ele, nem a sua religião dele souberam me esclarecer sobre essa antiga dúvida atroz que atormenta as crianças de todo o mundo...

O Zico e o Fio na Balança da Usina, anos depois da presente história. Notar, à
direita do Fio, a cestinha de almoço, de bambu, muito comum naquela época.
Após o catequista nos orientar de como nos deveríamos preparar para a Primeira Confissão ─ aquela história de fazer um “exame de consciência” antes ─, a aula terminara tendo como tema o ato de partilhar. Ao final, cada criança ganhou do catequista um saquinho de balas, mas com o seguinte conselho:

─ Nunca esqueçam de partilhar o seu pão com o próximo, meus meninos! Farão bonito aos olhos de Deus! Bom, enfim, criançada, por hoje é só, e vamos almoçar porque ─ como alguém, já disse, e eu não me lembro quem ─ “ninguém, aguenta ser bom cristão quando se está com muita fome”, não é?! E eu estou morrendo de fome! Uma boa tarde para todos!

Saímos da aula e fomos, eu e o Zico, chupar balas no clube. Açucólatra que era, devorei minhas balas em instantes... O Zico, mal abrira o seu saquinho, pedi uma bala a ele...

─ Mas, Wenilton, você tem as suas!

─ Já acabou, Zico!...

─ Ô, loco, meu! Você mal ganhou o saquinho!

─ Vamos, Zico, vamos logo! Não vai partilhar, como o Seu Laerte mandou?!

─ Não é sua mãe que não vai para o céu, Wenilton, mas você!...

Rimos satisfeitos.


“Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons!”

Dois anos depois, ao ouvir o Raul Seixas cantando a belíssima “Ói, lá vem Deus / Deslizando no céu entre brumas de mil megatons!”, não sei porque, mas eu me lembrei de você, meu velho e bom Seu Laerte, e, como não, do seu Deus minimalista...


Sim, mestre, sim, logicamente, eu não queria um Deus em carne e osso para poder tocá-Lo com minhas mãos e certificar-me de Sua existência física, sequer um Deus para poder apenas olhá-Lo diante de mim, mas sim, um Deus que eu pudesse livremente imaginá-Lo em minha pobre mente como um homem feito nós. Jamais desejaria vê-Lo numa entidade tátil ─ como uma imagem de gesso ― coisa que nunca vi e penso que nem existe, mas algo onde eu pudesse ver e identificar semelhanças conosco ― que esse deus seria mais lógico para mim se, como seu filho, tivesse semelhança com os humanos. Seu Laerte, seu Laerte, me perdoe, mas aquela abstração geométrica de uma linha curva proposta por ti ― aquele Não-ser visual me inquietava, que minha razão pedia sim as meras três dimensões... Afinal, meu mestre, as coisas não formais que transcendem as dimensões comuns complicam o nosso ver e o sentir! Concorda, amigo? Ou não?!...

─ Acorda, Wenilton! Presta atenção na aula! Parece que está no mundo da lua, menino?!

─ Seu Laerte, me diga uma coisa: o senhor qual a diferença entre o Mar Morto, o Mar Negro e o Mar Vermelho?

─ Mas, por que você me pergunta isso, Wenilton?

─ É que eu não sei distinguir os três! Para mim é tudo a mesma coisa!

─ Mas não é.

─ É que nem Judas e Pilatos: eu não sei quem é quem, e acho que os dois são o mesmo!

─ Nossa, Wenilton, pior ainda!

─ E tem mais, seu Laerte: e Lúcifer e Satanás ─ não são o mesmo?

─ Pelo amor de Deus, Wenilton! O que você tem nesta cabeça?!

─ E papiro com pergaminho?

─ Cheeeega, menino!


*   *   *

Ao final de uma aula de catecismo em que o tema era a vida após a morte, o seu Laerte falou para a criançada:

─ Quem quer ir para o Céu, levante o braço. 

Todas as crianças concordaram, com exceção de uma... 

Cismado, ele perguntou novamente:

─ E quem quer ir para o Inferno, também levante o braço. 

Novamente, ninguém se manifestou, com exceção da mesma criança... O catequista, surpreso, resolveu interrogá-la:

─ E você, Marcos, não sabe para onde quer ir? Ou será que quer ficar no Purgatório?

E ele, na maior tranquilidade, respondeu:

─  Não quero ir para lugar nenhum. Está muito bom aqui onde estou.


Mea culpa...

Hoje, às vezes eu me pergunto: Se, na atual conjuntura, Jesus voltasse à Terra, como os crentes ─ e mesmo os iconoclastas ─ o reconheceriam? Voltaria Ele jovem, com os 33 anos que tinha ao ser morto, ou com mais de dois mil anos nas costas, envelhecido como Matusalém? Não encarariam Ele como um hippie maluco, ou um dos muitos Gentilezas da vida que pregam por aí? Ou então, voltaria “moderno”, de cabelos e barbas feitos, com roupa da moda (que moda?)? Voltaria, quiçá, na pátria Terra Santa ─ a região mais crítica e belicista do Planeta ─, ou desceria em frente ao Congresso dos Estados Unidos, como sempre preconizam os pretensiosos filmes norte-americanos de ficção? E que argumentos e artefatos Jesus deveria lançar mão em sua volta para que Se fizesse crer e O reconhecessem como tal? Abusaria de efeitos pirotécnicos tipo “brumas de mil megatons”? Deveria criar admiração ou impor medo? Surgiria triunfante “empunhando o saltério da esperança” (como diria o Varella), resoluto e amparado por chusmas e legiões de anjos, arcanjos e querubins, e acima de tudo, junto de Maria e de seu Pai, isto, ao som da retumbante “Aleluia” do Haendel, cantada a pleno pulmões por mil vozes tonitroantes?

Findemos pois, amigos, com algo mais brando, como essa pérola do Marvin Gaye, que nestas alturas da Contracultura, perguntava ao mundo: “What’s Going On”?...

“You know we've got to find a way
To bring some lovin' here to stay
Picket lines won't block our way”


Mas, basta: passemos ao próximo capítulo, capítulo este onde eu deveria me redimir de certos assuntos que falei aqui...

─ He-ré-ti-cos, Wenilton, heréticos!

*   *   *

Antes, porém, de pingar o derradeiro ponto final deste capítulo, permitam-me fazer um comentário:

Caro Seu Laerte, tens aqui, enfim, amigo, a honra de um capítulo à parte como sempre acreditei que merecias. Saiba que seu nome e sua figura  indissociáveis do ambiente da Usina daqueles tempos serenos , pululam ainda hoje em minha memória de adulto. De sua índole, ficou-me a impressão da serenidade e da placidez, que és, afinal, um dos personagens que se evidenciam no largo mural daqueles meus tempos de iniciação religiosa, onde imagens nebulosas se superpõem, todas como meninos se debatendo feito loucos para aparecer nas gravações de um cinegrafista. 
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* Este capítulo faz parte da série de 11 livros memoriais sobre a Usina Palmeiras: "APÓLOGO 11 ─ OS DEVANEIOS DE UM MOLEQUE NA ERA DA CONTRACULTURA ─ Vol. 3 ─ A Space in Time ─ jan. a dez. 1971”. Os livros estão em processo de confecção sem prazo para lançamento.

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