domingo, 1 de fevereiro de 2015

UMA APOSTA SOLAR


"O esforço de um homem deve exceder o
seu alcance. Ou, então, para que o céu?"
(Robert Browning, escritor britânico, 1812-1889)

“A criança sustenta muitas vezes entre os seus
fracos dedos uma verdade que a idade madura com
toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a
velhice terá novamente o privilégio de carregar.”
(John Ruskin, escritor britânico, 1819-1900)

“Olho este fim de tarde e esta sombra que desce
E em tudo alonga e tece
A trama tênue do seu véu de luto…
A alma sentindo evocativa e boa,
Emocionado, escuto
O saudoso rumor do dia que se extingue…
E o dia azul que foi, apenas se distingue
Por um resto de luz que nas alturas sobra,
Por um sino que dobra
Ou uma asa que voa...”
(Crepúsculo. Mário Pederneiras. 1914)




Ver o pôr do sol na Usina não era coisa muito simples: poucos eram os lugares com vista descortinada e os mirantes onde se podia vê-lo se pondo no horizonte. Mesmo a partir do campo  de futebol — um dos lugares altos da Usina —, haviam arvores à oeste e sudoeste impedindo a livre visão. No entanto, para quem assistia aos jogos de futebol de domingo estando-se na elevação atrás da trave de cima do campo, ele  podia ser visto caso fosse época de inverno.

À esquerda ao alto, o abacateiro do laranjal do Tramontelli (posto abaixo). Em branco, o Restilo. Abaixo e em primeiro plano, as chaminés da Usina.

Fundos do campo de futebol da Usina Palmeiras ao pôr do sol em
23-3-1975. Notar no canto superior esquerdo o cume da Morro Alto.
Só lá nos altos do sítio do Narciso — lugar onde não íamos com tanta frequência —, é que se podia vê-lo abertamente. Daí também era possível distante na linha do horizonte o citado morro da fazenda Morro Alto, onde, anos depois seriam instaladas as antenas de retransmissão de sinais de TV. A partir do abacateiro que existia no extremo leste do laranjal do Tramontelli, só se podia ver o cume desse morro, que mesmo estando-se em pé nos altos das tubulações do Restilo também não era visto.

No Restilo, apesar de ser um lugar relativamente alto, a visão do pôr do sol também era difícil, já que havia o citado laranjal adiante. Lugar excelente mesmo para o horário do crepúsculo — o melhor, aliás —, era sob as paineiras da entrada da fazenda Santa Clementina, mas um lugar que também pouco frequentávamos, porém com a grande vantagem de se ter uma visão de 360 graus do horizonte. 



A aposta solar


Em cima da tubulação, o Julião, junto dele o Isnaldo, ambos já falecidos.
Uma certa tarde — era em janeiro de 1975 —, fomos dar uns bordejos lá nos altos do Restilo, o Isnaldo, eu e o negro Julião. Sentados em sua borda estávamos eu este último em longas conversas, enquanto o primeiro, encostado numa das tubulações, ficava fazendo intermináveis bolas com seu chiclete. Tínhamos ido ali fazer umas fotos com a nova máquina fotográfica que eu havia ganho de Natal, uma Olympus Trip-35. Poucas, fotos, pois, infelizmente, a coisa não era como hoje, quando se pode fazer centenas de fotos digitais sem preocupação com filme e revelação. 

Na hora do crepúsculo, o Sol já ia sem pondo enquanto as sombras do laranjal iam se esticando lentamente morro abaixo em direção à colônia. Foi quando resolvi fazer uma brincadeira com os amigos:

— Vamos ver quem consegue ver a luz do Sol sumir primeiro?

— Vamos! — disse eufórico o Julião. O Isnaldo não quis brincar e limitou-se a entreter-se com as bolas de seu Ploc.

Enquanto eu me equilibrava na ponta dos pés para ver o Sol já sumindo atrás das copas do laranjal do Tramontelli, o Julião, que era mais baixo que eu, num lance de esperteza, gritou para o Isnaldo:

— Saí prá lá, Bedão, que eu vou subir!

O Julião e eu nos registros do Restilo, em foto feita pelo Isnaldo..
— Bedão, seu rabo, seu chaminé no avesso!— retrucou o Isnaldo, fulo com o apelido que o irritava.

Dito isto, rápido como um esquilo, o Julião escalou a tubulação e, equilibrando-se em pé sobre ela, disse que, ali, ia ver a luz do Sol morrer primeiro... 

Não demorou muito e o danado gritou:

— Alá: o Sol está sumindo atrás do horizonte! Já perdeu, Dalua!

E lá em cima da tubulação, ficava rindo e me zoando; e eu, perdedor, com a maior cara-de-sem-graça... O Isnaldo gargalhava enquanto o esperto repetia:

— Perdeu, Dalua, perdeu, Dalua!...

— Dalua seu naso!


Apelidos irritantes...

O Mineiro, em 1975
Pensei comigo: neguinho disgramado, esse apelido não; logo você! Na verdade, não fiquei bravo com o apelido que me irritava tanto quanto o que o Isnaldo "trouxe" da cidade de onde viera, Severínia, ou seja, o apelido Bedão da Cachoeira, talvez um tipo popular desta cidade de onde ele viera. Esse apelido televisivo, digo, o Dalua, me levou, certa vez, a dar uma pedrada na cabeça do Mineiro após este ter me chamado com este maldito nome.... 

Mas eu achava graça no Julião fazendo micagens lá em cima enquanto repetia:

— Perdeu, Dalua, perdeu!...

Crendo que tinha mesmo perdido a aposta, me virei com a Olympus para os lados dos prédios da Usina, e no que eu olhei para as chaminés, tive um estalo:

— Acho que quem perdeu a aposta foi você, Julião! — e soltei um sorrisinho esperto.

O Julião não acreditou:

— Como perdi, se eu estou aqui em cima e você aí em baixo?!

— Vire de costas, então.

Ele se virou, e eu emendei:

— Agora dá uma olhada lá em cima nas chaminés!

A duas chaminés da Usina iluminadas pelo Sol poente.
E lá estavam os últimos raios de sol iluminando a extremidade das chaminés da Usina!... Aí foi minha vez de zoar, enquanto, agora, ele exibia um indisfarçável sorriso amarelo:

— Perdeu, chaminé no avesso, perdeu!... — zoou o Isnaldo, e suas gargalhadas foram tantas que ele acabou por se engasgar com o chiclete!...

— Bem-feito, Bedão, bem-feito! — emendou o Julião batendo com o punho na palma da mão, no que perdeu o equilíbrio no alto do cano e por pouco não despencou lá de cima!...

— O loco, meu! Por pouco!

Foi quando todos rimos à beça.




Los três amigos


O autor, na mureta do Restilo,
local onde se passou a
história cinco anos antes.
O sino da fazenda Palmeiras soou ao longe nos dizendo que a seis horas da tarde havia chegado. Por esta época, o assovio de meu pai — que tinha função quase semelhante —, já havia caído em desuso, uma vez que já não éramos mais aqueles mesmos menininhos indefesos dos primeiros anos de Usina que sempre  precisavam ser alertados com seu assovio que era hora de voltar para casa, pois a noite em breve chegaria. 

Assim terminava uma das muitas tardes de diversão naquele incrível recanto que era os altos do Restilo. Foi aí também o lugar que fizemos as únicas fotos em que nós, “Los Três Amigos”, estamos reunidos, lembrando que esses dois grandes amigos já partiram para outro plano, onde juntos devem estar agora, e
O pôr do sol atrás do Morro Alto, em  ‎23‎-10-2009.
juntos estaremos quando eu me for daqui, mas isto, vai isto demorar muito ainda. Assim espero!... 

Enfim, amigos, pena que o Chaminé no Ave..., digo, pena que o Julião, não era tão esperto quanto eu imaginava, pois se tivesse prestado mais atenção, teria visto uma nuvenzinha solitária iluminada pelo Sol acima do horizonte leste lá para bandas do sítio do Marião. Assim, iria resgatar o título do primeiro a ver a luz do Sol sumir naquele inesquecível final de tarde... 

Mas, caro Julião, meu amigo, saiba, onde quer que você esteja, que o título é teu sim, pois, pensando bem, você viu a própria luz do Sol sumir enquanto eu a vi indiretamente, quando iluminava o alto das as chaminés...
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* Este capítulo faz parte do  Volume 8 - Childhood's end ― janeiro de 1975 a abril de 1977". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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