O blog traz alguns capítulos da série “Apologo 11- Os Devaneios de um Moleque na Era da Contracultura”, um projeto memorial composto de 11 livros, onde eu, Wenilton Daltro, registro histórias vividas em minha infância entre 1967 e 1977, na Usina Palmeiras, empresa que existiu na cidade de Araras-SP entre 1946 e 1992. Os capítulos, em torno de 300, divididos em subcapítulos, são longos, com diálogos, imagens e musicas, pensados como um episódio de mini-série - objetivo final deste longo trabalho.
sábado, 6 de junho de 2015
CANTO DE MURO
O segundo apelido ― Coração de mãe ― Seu
Paulo ― O desenlace ― A partida dos Domingues ― O “Circo dos bobos” ― As crianças diante da morte ― A catalepsia, uma morte pavorosa ― “Nunca houve um silêncio assim” ― O tal de câncer ― Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua ― Watergate
― Dona Maísa ― Conversa de
comadres ― Não existe nada mais
antigo... ― Um período de intensa
atividade musical ― Um novo e polêmico
cometa ― A erradicação do Jardim do Éden ― Os Mistérios do Firmamento
stranho dizer que
sua morte
não dissipou a sua
presença.
Continuou marcando
nossos dias (...)”
(A família de guizos: história e
memórias. Ivna Thaumaturgo.1997)
“O seu lugar aqui
nunca será preenchido.”
(Memórias
de outro tempo.
Francisco de Britto. 1980) "Os médicos nunca sabem curar os próprios males, embora os compreendam perfeitamente. Também os doentes não se curam por si mesmos, mas conhecem, quase sempre, a extensão das próprias enfermidades." (Psicanálise de gênios - Doentes célebres. Gastão P. da Silva. 1980)
O Presidente dos EUA, Richard Nixon
Era naquele período turbulento da cinzenta
trindade Nixon, Watergate e Vietnã, no polêmico ano de 1973, ano atípico que, pelo mundo todo, reuniu eventos e acontecimentos marcantes nas mais
variadas áreas, como, p. ex., na histórica, geopolítica, econômica, musical e
cultural etc. Cá no Brasil, em pleno governo Médici, era o Regime Militar ainda que era a segurança e amenidade à sua inocente e ordeira população, e o terror dos subversivos e comunistas de plantão (para estes, era a “ditadura”...). Chegávamos ao final do chamado Milagre Econômico, onde o PIB brasileiro crescia a uma taxa de quase 12%. Era o ano da inflação, do flagelo mundial, da crise do petróleo, que se aprofundaria daí por diante, onde o ministro Delfim Neto lançava por todo o Brasil os cartazes de sua campanha: "Diga não a inflação", como se isso fosse uma frase mágica que, uma vez dita, tudo começaria a mudar para melhor!...
Mas lá, amigo, lá na nossa saudosa e serena Usina
Palmeiras, algo tristíssimo também estava por acontecer, e coisa tão ruim
quanto, e envolvendo aquela entidade sinistra que apavorou, apavora e sempre
vai apavorar a humanidade em todos os tempos: a implacável senhora morte e suas
terríveis reinações! E a morte de que tratarei agora será contextualizada
dentro desse interessante e caótico cenário que foi o ano de 1973.
O segundo apelido
Mas antes de
comentarmos esse triste assunto, vamos falar de amenidades.
O Seu Paulo Domingues, em 1969
Das pessoas
adultas que conheci em meus tempos de menino na Usina, das que tive estreita
amizade, o farmacêutico Seu Paulo Domingues é uma das mais gratas e caras
lembranças que levo comigo pela vida afora. Pelo modo como me tratava, era
quase com um segundo pai para mim, um verdadeiro conselheiro, e, acima de tudo,
ótimo conversador.
Acredito que, dentre
os meus irmãos, eu era o único a ter uma amizade mais sólida e constante com ele,
e sempre que nos víamos, nunca deixávamos de bater um papo, uma conversa sobre
um assunto qualquer — não me recordo do que normalmente conversávamos, mas isto
não importa à narrativa.
O "Mosquito Elétrico"
Um apelido me foi dado por ele, “Lito” — o segundo de minha vida! —, apelido fruto dessa
intimidade e camaradagem que havia entre nós. O primeiro — ainda dos tempos da cidade —, era muito semelhante: "Nito", acho que dado pela minha querida tia Naide. Não fui o único a ser “batizado”
pelo seu Paulo, pois meu irmão mais novo, o Weber, também recebera um, e bem de
acordo com o seu temperamento na época: “Mosquito Elétrico”, e lembro-me que esse
apelido pegou, e era motivo de muitas chacotas entre a meninada.
“— Lito, cadê aquele danado do Mosquito Elétrico que não
apareceu aqui hoje!”
O "Lito", em 1972
“— Está lá na cidade, Seu Paulo, na casa da madrinha
dele”
Feito velhos
amigos, tínhamos uma relação bonita eu e o Seu Paulo, e penso que essa amizade
era muito semelhante à do seu Portuga e o menino Zezé — me refiro aos
personagens do livro “O meu pé de laranja lima” —, pois me tratava com o mesmo
carinho que um pai tem para com um filho. Mas, assim como o Zezé, eu jamais
chegaria ao ponto de dizer: “Você é malvado, menino Jesus!”, "Porque você faz
isso comigo?!”, frase que o menino, inconsolável, disse após a morte de seu grande amigo. Digo
isto porque o assunto tristíssimo de que trato aqui é justamente a morte de Seu
Paulo.
Coração de mãe
Luciana Daltro, Valéria Coutinho, Daniele Bovo e Isnaldo Coutinho, na escadaria da casa do Seu Paulo.
A casa dos
Domingues era a primeira da colônia para quem chegava da cidade, e das maiores
dentre as seis que ali havia. Na entrada havia uma escada central que levava
para a área em que de lado esquerdo ficava o consultório do Seu Paulo, e à
direita a sala do dentista Emerson Mercatelli. Este, atendia seus clientes a
noite em alguns dias da semana — era quando a área da casa dos Domingues se
enchia de clientes, que vinham não só da “colônia de baixo”, mas também da “de
cima” — e creio que também da fazenda Palmeiras —, enchendo o ambiente de um
falatório interminável. Não devia ser confortável para os Domingues assistir
televisão na sala nestas noites de atendimento, já que aquele borborinho que
reinava ali não cessava um minuto.
O quintal da casa da família Domingues, e na parede ao fundo, pichado em branco, o nome de sua filha caçula, a Ana Deise, provavelmente escrito no ano da morte de seu pai .
Sua casa era um
lugar onde frequentemente nos reuníamos para brincar, de modo que todas as
crianças ali viviam gravitando em torno do Seu Paulo e sua esposa, a dona
Maisa. E essa casa era como um coração de mãe — cabiam todas as crianças ali, e
todas eram bem recebidas, de modo que brincadeiras no quintal de sua residência
eram constantes.
“— Entra lá, Lito, que os minino estão brincando no quintal!”
Como já o disse
aqui em outro capítulo, dentre os meninos da “colônia de baixo”, a exceção era
o Toninho Lima, que tinha birras com o Seu Paulo — que o considerava um menino
rebelde —, e quem sabe se ele — que havia me confidenciado isso —, não o
considerasse uma má influência para mim. Porém, pouco tempo depois, o Toninho
veio a se tornar um grande amigo meu, e como ele era um menino meio
independente e individualista, era restrito o seu círculo de amizades ali, e,
sendo assim, nem sei como consegui invadir essa espécie de fortaleza que era o “invunerável”
Toninho. E gora, uma música adequada para sonorizar os capítulos seguintes: "Ultima Thule", com o grande Ashera!
Seu Paulo
Seu Paulo
Mesmo passados
tantos anos, tenho ainda a voz do Seu Paulo viva em minha mente, e posso
mentalizá-lo falando-me, com aquele timbre peculiar que era só seu, e que me
lembrava um pouco o Tio
Barnabé do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” na interpretação do grande Samuel Santos. Seu
Paulo lembrava um pouco o célebre locutor Majestade, que diziam ter a
voz mais bonita que o rádio brasileiro conheceu, porém, semelhante no
rosto, não na voz. Majestade era um dos apresentadores do programa de música
clássica "Primeira Classe", que a Rádio Jornal do Brasil levava ao ar
diariamente, às 13 e às 20 horas na década de 1960.
Homem educadíssimo
e de gestos econômicos — até então, era a pessoa mais polida e recatada daqueles
idos. Apesar do falar manso e tranquilo, só erguia a voz
quando tinha de passar um corretivo qualquer em um filho seu.
“— Paulinho, ocê desce já daí, minino, ou a cinta vai
cantar!”
Depois do Seu Angelo
— o horticultor que cuidava dos milharais no declive da “colônia de cima” —,
creio que o Seu Paulo era a pessoa mais gentil e serena que conheci naqueles
tempos. Foi essa a impressão que me ficou, no meu julgamento de menino perante um terno amigo.
Sua figura era
indissociável do ambiente da Usina, em especial o da colônia onde vivíamos. Era
comum, enquanto brincávamos, vê-lo atravessando o passeio em frente às casas,
com aquele seu jeito peculiar de caminhar, andando à passos curtos, sempre tão
tranquilo e sem pressa, como que a medir o chão. Trajado com seu inseparável
jaleco branco, a calça cinza e os sapatos pretos impecavelmente lustrosos, era
inconfundível à distância.
À direita, a casa que foi residência do Seu Paulo Domingues até o primeiro trimestre de 1973. Depois, com a mudança da família para a cidade, veio o novo farmacêutico, o Bovo. Finalmente, foi do Barranquinho, em 1976. A árvore à esquerda, de tronco escuro e na curva do jardim, é o citado flamboyant, e, ao fundo, o velho barracão de açúcar.
A maior parte do tempo não havia clientes na farmácia — era quando ele saia ao passeio e parava num quanto qualquer. Ali, como um brâmane em concentração, ficava pensativo por longos instantes, olhando os entornos, ensimesmado, com as mãos cruzadas atrás das costas e a barriga para a frente, como se estivesse certificar de que tudo corria de acordo com os conformes e seus ditames. Sob essa espécie de discreta vigilância, as crianças brincavam livres e despreocupadas no gramado às sombras dos coqueiros, figueiras e flamboyants.
“— Gusto, vai buscar o dominó que essa meninada está louca
para jogar!”
Parecia-me uma
pessoa tão enraizada na vida, cultivando-a sempre, decidido, em tudo o que
fazia. Como farmacêutico, era um profissional dedicado e atencioso, no que
parecia seguir o ideal de Hipócrates, para o qual, a medicina era uma religião.
Éramos atendidos com frequência por ele, já que por brincarmos constantemente
pelos matos e quintais, sempre tínhamos um machucadinho qualquer para tratar. Lembro-me
de uma passagem em que, certa vez, meu irmão Weber — lá com seus mirrados 10
anos —, foi atendido pelo seu Paulo, pois machucara um dedo seu e tivera que
tomar uma injenção para evitar tétano. Nunca me esqueço do que ele disse à mim
e ao Isnaldo:
“— Nossa, quando ele aplicou a injeção em meu dedo,
parecia que estava enfiando uma agulha num cano!”
Eu e o Isnaldo
arrepiamos...
* * *
Um dia, eu, triste e preocupado, procurei o consolo de suas palavras:
─ O senhor gosta do quê faz, seu Anjo?
─ Muito, Lito!
─ Meu pai, às vezes, bota eu e meus irmãos para carpir a hortinha lá de casa, arrancar as tiriricas e pedras, e, pior ainda, faz a gente ir buscar lá embaixo num galpão da usina uns canos pesados que ele usa nas antenas que ele vende e instala nas horas vagas. Isto judia muito da gente. A gente quer brincar e não pode.
─ Meu filho, muita atenção no que eu vou te dizer: embora muita gente reclama, estamos ainda numa época em que é normal as crianças trabalharem, e ninguém tem o direito de divertir-se enquanto a trabalho não está pronto. Só que tem uma coisa: não há problema algum em transformar o trabalho em divertimento, e as crianças mais espertas sabem tirar partido disto. E que problema tem os meninos executarem trabalhos de homens, pois isto é uma aprendizagem para os meninos serem homem um dia. Eu, com 10 anos, já fazia uns trabalhinhos ajudando meu pai, e, apesar de ser um pouco sofrido, era meio que um divertimento.
Seus ensinamentos eram verdadeiras dicas de como ser um homem entre os homens, sem benevolência e atitudes protetoras. Ensinava que se uma pessoa fosse educada como realmente deveria ser, era quase impossível alguém, ou ela própria, matar o menino que existe dentro de si, isto, por mais rudes que sejam os golpes desferidos pelo destino e pelo acaso na marcha em busca da maturidade.
O desenlace
Chegamos, enfim, ao “dia tristíssimo” a que antes me referi. Era na quinta-feira de 29 de março de 1973, o dia da morte do Seu Paulo! Moço ainda, aos 42 anos ─ na plenitude da vida. No dia anterior ─ como esquecer ─ nossa caçula, minha irmã Luciana, havia completado 6 anos, e as crianças da colônia haviam participado da festa, inclusive os filhos de Seu Paulo, mas tristes por saber do pai internado.
Cruz e palma de anúncio funerário da época.
Sua morte pegou a todos nós crianças de
surpresa, e muitos, em sua ingenuidade, deviam pensar coisas como: “Quem
cuidará de nossas feridas e machucados daqui para a frente?”, ou “E agora: os
doentes e feridos terão de ir para a cidade para serem tratados?”
Após sua morte, as crianças da colônia começaram
a perguntar sobre o que é morrer e o que é desaparecer para sempre. Soava muito
estranho, ver alguém deixar-nos subitamente, ser lacrado num caixão e ir para
baixo da terra; aliás, isto era algo horrível, uma coisa, diria, bem
“sufocante”. Digo isto porque, por esta época, estava
dando o maior ibope a tal morte por catalepsia ― de que falo no próximo subcapítulo ―, ou seja, aquela em que a pessoa
parece estar morta, mas na verdade não está. Daí, ela é enterrada viva e
depois desperta trancada dentro do seu caixão! Não havia nada mais horrível e
pavoroso ouvir histórias como essa na televisão! As reportagens diziam que havia
quem estivesse fabricando caixões especiais, com recursos de rádio e alarme para
uso no caso de a pessoa despertar depois de enterrada!... O pavor era tanto,
que não havia quem, seja criança, seja adulto, não sonhasse em ser enterrado
num caixão com estes recursos... Certa vez o Weber disse:
“— Já pensou no que é acordar dentro de um caixão
escuro, estar preso ali, gritar, se debater e ninguém te ouvir e não ter como
sair dali!”
“— Ah, ranquei, meu!”
“— Sartei de banda!”
A partida dos Domingues
O gramado em frente à residência do Seu Paulo.
Na bicicleta, o Zico indo para a cidade; 1974.
A morte do Seu
Paulo virou uma página na história da Usina. E ela mexeu deveras com nós
crianças, e em vários sentidos. Com a
partida de sua família para a cidade após sua morte, o triste também é que perdemos
vários amigos de uma só vez. Esse agradável convívio durou por volta de seis anos,
mas foram seis anos onde, todos juntos, vivemos intensamente feito irmãos. O
baque seria grande, e, com isso, a “colônia de baixo” se tornaria menos povoada
de alegria sem essa e outras famílias que também se mudaram para a cidade pouco
depois. Numa colônia de apenas seis casas, a perda de cerca de uma dúzia de
amigos pesava muito. Vale dizer, e lamentar, que a partida para a cidade destas
famílias, diminuiu muito, por assim dizer, a nossa qualidade de vida e o nível
de nossos entretenimentos na “colônia de baixo” — o fato resumia-se num dado
muito claro: “menos amigos para brincar”.
O gramado em frente à colônia. Ao fundo, a casa dos Coutinho Pereira, ao lado da casa dos Domingues, à esquerda. Criança não identificada; 1973.
Já com a
partida da família dos Lucredi — o que se deu creio que no final de 1970 —, eu,
particularmente falando, perdia pelo menos dois amigos “intelectuais”,
companheiros com os quais gostava de conversar, pois tínhamos muitas
afinidades. Me refiro ao Aroldo e ao Hedewandro, com os quais tinha relações mais
frequentes, em especial este último, que era um menino muito culto.
Na partida os
Domingues, perdíamos mais cinco amigos — amigos de tantas e instigantes
brincadeiras rústicas típicas da zona rural.
Tão triste quanto, um ano depois dos Domingues foi a vez dos Balotin partirem, o que nos desfalcou de outros grandes amigos, digo, amigas, as irmãs Mara, a Magda, a Márcia e a Marta.
Não pude ver a
partida dos Domingues, aliás, de nenhuma destas famílias — tudo o que sei que
é que, um dia, voltei da escola depois do almoço ou no final de tarde, e, para
minha tristeza, eles não já estavam mais lá — a casa vazia, silenciosa e fechada: não
mais havia vozes de crianças e jovens alegrando o passeio em frente à casa deles, nem de
nossos pais conversando banalidades.
O “Circo dos bobos”
O Celso Domingues
Assim, com a partida da família, não mais
brincaríamos juntos nos depósitos de açúcar; não mais faríamos cavernas nos
barrancos de terra vermelha; não mais escalaríamos as paredes do depósito
“buracão”, não mais nos enveredaríamos pelos recessos do cerradinho e do eucaliptal
que existia à sudoeste da Usina. Fumar escondido, à noite, no páteo da Usina,
nunca mais.
A Rita e o Marcos C. Pereira, de Raul Seixas, no muro da casa dos Domingues
As partidas
dominó, tômbola e baralho no banco sobre a sombra do velho flamboyant se
encerrariam para sempre, e não mais encenaríamos o nosso cirquinho no quintal
da casa dos Domingues.
Lembro-me de um
desses dias, em que o Celso, que era pouco mais velho que nós, pegou uma
cadeira e, estranhamente, se intrometeu na brincadeira, que foi a última
brincadeira que tivemos juntos ali, e, incrível, uma cena que trago tão viva em minha
mente, que “parece que foi ontem”! Em cima da cadeira, com um giz branco,
escreveu na madeira da tesoura do telhado do ranchinho: “Circo dos Bobos”,
querendo dizer que nossa brincadeira era uma tolice... Não ligamos: continuamos
nossa brincadeira, entretidos conosco mesmo, brincadeira esta cuja inspiração,
com certeza, viera das tardes de brincadeiras e aprendizados com o vovô Bombonati,
o pai de dona Maisa, de que falo em um capítulo do ano anterior.
As crianças diante da morte
Ninguém podia acreditar na morte do Seu Paulo e, como é comum entre as crianças, nós realmente não acreditamos no que aconteceu: tudo parecia uma mentira de muito mau-gosto. Era tudo tal como dissera Marcos Pivetta: “o primeiro contato de muitas crianças com a questão de finitude da vida.” Mas, cargas d’água, porquê as crianças são sempre as últimas a saber de a morte de alguém?! E, também, por que são as que menos se fazem crentes depois de saber do acontecido?!
Criançada em frente à casa do Seu Paulo, em 19-1-1975.
Eu, com meu raciocínio infantil, também não
fugia à regra e não conseguia admitir tal circunstância; e, na verdade, eu nem
tinha uma ideia muito precisa do que fossea morte — à minha mentalidade, à
incompreensão de meu jovem espírito, realmente ela era algo muito difícil de
entender e assimilar. Naquela idade, era um “mistério” que pouco compreendia —
ainda não tinha capacidade de conceber muito bem o que era origem e o final de
uma vida, e, “desconhecendo” a morte, não podia temê-la como os adultos a temem
— o que restava era tão somente a estranha sensação de não crer no que
realmente tinha acontecido. Se é difícil para um adulto processar este assunto, imagine-se para uma criança!
Mesmo quando passam a “entender” a morte,
as crianças, em sua inocência, sempre acham que um adulto muito querido é como
um herói que nunca vai morrer e o anjo da morte jamais o vencerá. Porém, todos
compreendíamos que dali para diante, simplesmente não mais veríamos o Seu
Paulo, e isso era tudo.
No curso de minha passagem pela Usina, sua
morte se tornou um dos fatos mais impressionantes de minha vida; no entanto,
pouco tempo depois, se apagara para sempre de mim este sentimento de não
entendimento e da perplexidade ante algo que até então me era bastante
incompreensível. Por outro lado, esta sensação, talvez, não deixava de certa forma,
ser uma maneira inconsciente de a imagem do Seu Paulo nunca morrer dentro de
mim.
A catalepsia, uma morte pavorosa
Seu Anselmo e sua esposa, dona Pina.
Seu
Paulo era e a primeira pessoa adulta da “colônia de baixo” que falecia desde
nossa chegada ali, exatos seis anos antes. Porém, foi em nossa viagem de
férias à Santos, na primeira semana de 1970,que
vi o primeiro homem morto em
minha vida, mas, não sei porque, aquela visão não me impressionou. Lembro-me
que, em certo trecho da estrada, tivemos de diminuir a velocidade que algo
havia acontecido adiante de nós. Ao passar, acho que por um Corcel vermelho, vi sua
porta semiaberta e sobressaindo-se à ela a careca de um homem morto num
acidente. Meses depois desta viagem,em 28 de julho de 1970, havia
falecido o senhor Anselmo Martinelli, amigo já bem idoso de nossa família e
vizinho de nossos avós maternos na cidade. Foi com sua partida que, pela
primeira vez, experimentei esse estranho sentimento de incredulidade diante da
morte de um conhecido, sentimento que durou
pouco não se fazendo sentir nas mortes seguintes. Outra morte de que me recordo e que mexeu comigo,
aconteceu dois
anos depois, meses antes da morte do Seu Paulo: a morte do ator Sergio Cardoso, em
18 de agosto de 1972. Morreu, aos 47 anos, no banheiro de sua casa. Gravava na época a
novela ”O Primeiro Amor”, e faltavam apenas 28 capítulos para o desfecho. Em seus últimos dias, andava muito preocupado com a
morte, e ouviram-no confessar: “Gostaria de morrer como Cacilda Becker: no
palco, com a cara maquilada.” Me lembro perfeitamente da repercussão que deu sua morte, e os jornais disseram que 15 mil pessoas compareceram ao enterro no cemitério São João Batista. E a coisa não pararia por aí, pois, logo depois, surgira uma polêmica lenda em torno de sua morte, e que deu o que falar: a de que teria sido enterrado vivo! Tudo começou com um boato, não se sabe criado por quem, e que repercutiu em toda a mídia brasileira, dizendo que o ator sofria de catalepsia, uma doença rara que deixa os membros rígidos por horas a fio, como se a pessoa estivesse morta. Assim, por causa da doença, Sérgio Cardoso teria sido enterrado vivo!... A história dizia até que a família pediu a exumação do corpo, e ao se abrir o caixão Sérgio estava virado de bruços, com arranhões no rosto. O boato é negado pelos familiares até hoje. Por anos à fio esta lenda andou no imaginário popular e foi recontada em diferentes versões, causando medo principalmente em familiares de pessoas vítimas de ataques cardíacos. A última morte impactante destes tempos foi a de meu
avô materno, Francisco Rocha, em 10 de julho de 1974, e a primeira de que me
recordo que vi um caixão de defunto, mas não tive coragem de me aproximar e
vê-lo exposto ali, na sala de sua casa. Esse medo “irracional” de ver um morto
em seu caixão durou até 1981, quando, certa vez, me dirigindo ao segundo andar da Igreja
Matriz, lá de cima vi um defronte o altar numa missa de corpo presente. Não sei
quem era o falecido.
À propósito, os antigos diziam que se uma
criança não vê um ente morto dentro do caixão, durante muito tempo ela irá
achar que ele não morrera. Hoje, a morte já não causa tal impacto,
principalmente quando a gente está ciente de que ela, em casos irremediáveis
assim, é um mal menor — a típica situação em que, como se diz, “deixou de
sofrer”. Como diria um futuro mestre meu sobre a morte, o etólogo austríaco
Konrad Lorenz, “ela produz um sentimento real no homem sensível, embora ele
saiba que o sofrimento e a morte são inevitáveis na grande harmonia da criação.”
À propósito, Lorenz ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina justamente
neste ano, 1973, por seus estudos sobre o comportamento animal, no ramo da
ciência denominado Etologia.
Desde esta época, eu não tinha a mínima coragem
para ver um morto num caixão. Na morte de meu avô Francisco Rocha, no ano
seguinte, em 1974, ainda mantive esse receio e sequer me aproximei de seu
caixão no meio da sala. A primeira que vi um morto — na verdade, vi de relance,
sem querer —, foi oito anos depois, já marmanjo!... — estando no segundo andar
da “Igreja Matriz”, quando me deparei com um caixão lá embaixo em frente ao
altar, e deixei a igreja imediatamente...
“Nunca
houve um silêncio assim”
Marcos e Isnaldo Coutinho Pereira; ao fundo, o velho flamboyant, sob cuja sombra brincávamos. Foto do final da década de 1970.
Foi uma consternação geral o que havia
ocorrido com os Domingues, uma verdadeira comoção. Diria, como disse a atriz
Elizabeth Taylor dez anos antes na morte de Richard Burton: “Nunca houve um
silêncio assim”, que um silêncio pareceu tomar conta de tudo, o fatal silêncio
respeitoso das pessoas quando morre um ente querido. Por várias semanas o pouco
que se ouvia entre o pessoal da colônia era algo como: “Meu Deus, porque ele
morreu?”, “Como pode acontecer isto com um homem bom como ele?!”, “Foi tudo tão
rápido!”... — ficamos todos abestalhados e inconformados, e sem repostas
convincentes para nossas próprias perguntas!
Estranhamente, não me lembro de choros
entre as pessoas de sua família, mas ocorreram, com certeza. Quanto ao Nelsinho
— o “caçula” da família —, ele ainda não tinha a dimensão exata do que havia
acontecido e, por isso mesmo, era incapaz de avaliar a enorme perda
que a família acabava de sofrer. Por outro lado, de certo modo, todos estivam como que
“preparados” — pelo menos os adultos —, já que há tempos ele vinha sofrendo
desse mal, e todos sabiam da luta que vinha travando em seus últimos dias. Também não me recordo do seu velório ou enterro, e, hoje, acho que é melhor
assim, que, desse modo, sua imagem continua viva e intocada em mim. E, puxando
pela imaginação, vejo-o na minha frente agora, ouço
a sua voz, e ele me diz: “Oi, Lito! Bom dia, menino!”.
O tal de câncer
Como
profissional de sua área, sozinho, o doutor Paulo podia fazer tudo para tratar
de um ferimento nosso qualquer em questão de minutos, mas nós todos juntos, reunidos
e “solidários no câncer”, e com todas as nossas forças, o que poderíamos fazer
contra um mal renitente e sem cura que ameaçava roubá-lo de nosso convívio?
Aliás, com sua morte, era a
primeira vez que eu ouvia falar na terrível doença que era o câncer, e creio
que foi a primeira vez que se falou ali entre as crianças o nome desta que é
uma das mais terríveis doenças humanas. Os comentários que ouvi de meus pais
após sua morte eram a de que ele, farmacêutico e guerreiro que era, para se
livrar da doença havia também tentado se automedicar com remédios de sua
própria farmácia. Creio que, naquele tempo, era muito difícil uma pessoa fazer
isso — se hoje, mesmo para um médico, ainda é algo muito complexo lidar com
alopáticos, já que envolve muitos e minuciosos procedimentos, imagine-se há
mais de trinta anos atrás!
O Paulinho e eu, em nossa Primeira Comunhão, em 1971.
No final dessa tarde, lembro-me do Paulinho
quando, triste, foi em casa a convite de minha mãe tomar uma sopa minestrone —
aquela de feijão —, aliás, uma sopa que eu vim a conhecer nesse dia, mas —
birras de criança — não tive coragem de prová-la. Ele se sentou silencioso à
mesa, jantou, agradeceu e foi embora sem nada dizer. Partiu com sua tristeza e
foi a última vez que ele entrou em nossa casa.
Por meses
ainda, ficou a sensação de que o Seu Paulo estava por ali, mas invisível, e o
que eu não daria para que, a qualquer momento, ele se materializasse ali diante
de meus olhos, naquela rua em que sempre nos encontramos — o que eu não faria para que
ele novamente me chamasse pelo apelido carinhoso que me dera e, assim, reatar
nossas amenas conversas, nossos papos naqueles dias calmos em que o seu mal
ainda não o afligia.
Quando ia bater
pernas atrás de sua casa, sempre passava pelo canto de muro e olhava para o
lado sudoeste me lembrava dele e do Caminho de São Tiago que, juntos, vimos no horizonte
sudoeste um certo dia. Pensava lá com meus botões, que ele poderia ter tomado
uma outra nuvem branca imensa como aquela, e, através dela, partiu para o além...
O que eu sei dizer é que, depois de sua morte, jamais vi outra nuvem igual
aquela — com sua partida e a posterior mudança da
família para a cidade, era findo um ciclo muito feliz de nossa infância.
Eu
Quero é Botar Meu Bloco na Rua
Depois de um carnaval feliz passado nos salões
da Associação Atlética Ararense, o que se deu entre os dias 2 e 6 de março, a morte do Seu Paulo acabou com o ânimo de todos. Nossas
fantasias, as máscaras do Batman, do Zorro e de palhaços, as pistolas d’água, martelos
de sanfona e apitos, as serpentinas e confetes, tudo, tudo ficara esquecido para
sempre num canto qualquer de nosso quartinho, com o breve destino do lixo.
Coincidentemente, nenhuma música nova e essencialmente
carnavalesca fez grande sucesso neste ano. Caetano veio com “Um frevo novo”, que
não fez o mesmo sucesso do outro frevo seu lançado em fevereiro do ano anterior, o
belíssimo “Chuva, suor e cerveja”. Já a cantora Gal Costa veio com “Estamos aí”
e não aconteceu, mas o que grudou mesmo na cabeça da galera foram outras duas
canções: o cômico samba “Ninguém tasca”, de um incógnito Marinho da Muda, e a marcha-rancho
do grande Sérgio Sampaio, a belíssima (e melancólica) “Eu Quero é Botar Meu
Bloco na Rua” (ouça abaixo).
Após
o estrondoso sucesso de “Preta Pretinha” dos Novos Baianos, a partir de
dezembro de 1972, o fevereiro seguinte foi dominado por esta canção do Sampaio,
e ela, de certo modo, eclipsaria todas as outras velhas canções carnavalescas
que ainda faziam sucesso, e vale dizer que ela não era mais uma música de
carnaval. Porém, música de refrão pegajoso que era, inda que tristonha, todo o
Brasil a cantava como se fosse, e o reinado do Momo a abraçou sem cerimônias.
Tanto o é que ela foi incluída num disco carnavalesco produzido pelo Nelson Motta
(o último que ele fez) em que só medalhões da MPB participavam, dentre eles o
novato Raul Seixas, disco este que, segundo Motta, foi “ignorado na imprensa,
nas rádios, nas ruas e nos bailes e resultou em completo fracasso”.
Curiosamente, o jornalista Aramis Millarch, num artigo seu publicado em 4 de
março de 1973, perguntava:
Vânia Domingues (à esquerda), amigos não identificados, Nilza Coutinho Pereira e Deise Domingues. Provavelmente em 1972.
“Mesmo não querendo, uma pergunta é inevitável: e as músicas do Carnaval deste ano? Desafio alguém a cantar, ao menos uma estrofe, de três composições feitas especialmente para este Carnaval? O que se ouve são os maiores sucessos do passado e dois ou três sambas que apareceram no meio-do-ano e, graças a uma maior divulgação, obtiveram relacionamento com o público mais jovem, sendo lembradas agora. É o caso de ‘Partido Alto’ que Chico Buarque de Hollanda criou para a trilha sonora do filme’..., ‘Quando o Carnaval Chegar’ e da qual o MPB-4 vendeu quase 100 mil cópias; ‘Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua’, com a qual Sérgio Sampaio disputou a parte nacional do Festival Internacional da Canção ou ‘Ninguém Tasca’ (O Gavião).”
Neste mesmo mês, explodia nas rádios o
alegre samba “Do lado direito da rua direita”, o grande sucesso dos Originais
do Samba (35 mil discos vendidos), que, ao contrário de “Ninguém tasca”,
estranhamente não foi aproveitada como música carnavalesca. Tampouco se
aproveitou outro também grande sucesso da época, “Fio Maravilha”, que havia
feito sucesso com a cantora Maria Alcina ao vencer o citado VII Festival Internacional
da Canção, em setembro do ano anterior.
Como se vê, como não se bastasse a morte do
Seu Paulo, 1973 foi de um carnaval bem triste e enfadonho, musicalmente falando.
Se o carnaval foi ruim, as músicas românticas estrangeiras foram um arraso.Na
virada março-abril, uma belíssima canção se fazia ouvir nas rádios:
—
Olha que música nova linda no rádio agora, Lito! Ouve que voz linda esse cantor
tem!
—
Linda mesmo, Seu Paulo! Linda!...
Ao final da canção, o locutor disse:
—
Você acabou de ouvir “Me and Mrs. Jones” com o cantor Biiiiiilly Paul!
Geração Pop
Revista Geração Pop Nº 5, março de 1973.
A cultura hippie ia a todo vapor no Brasil neste ano, o que podia ser
conferido na principal revista jovem do momento, a então Geração Pop, que, desde seu lançamento, em novembro de 1972, vinha
recheada de música, moda, esporte e psicodelia. Em sua quinta edição, lançada
neste mês de março, nesta época em que muitos de nossos brinquedos eram
artesanais e feitos de materiais reciclados, havia uma matéria sobre decoração
realizada a partir da reciclagem de móveis usados e fora de uso — uma das
reportagens dizia o seguinte: “o móvel da televisão da vovó vira armário para
guardar livros ou qualquer outra transa: só que tem de ser muito colorido”... Vale
lembrar que foi justamente neste trimestre que chegaram ao Brasil as primeiras
camisas estampadas e com anúncios publicitários, e a moda pop
seria a que mais se beneficiaria da novidade com as estampas feitas em silk screem.
“— Cara, eu pirei numa camiseta com a estampa
do “Dark side of the moon” do Pink Floyd que eu vi lá na cidade!” “— Eu pulei carnaval com uma dos Secos & Molhados que é um barato!”
Nixon, Watergate, Guerra do Vietnã...
Foram dias tumultuosos os do mês de março de 1973,
aliás, talvez o mês mais crítico deste ano. Sete dias antes de o Seu Paulo falecer,
um estudante de Geologia considerado terrorista, o jovem Alexandre Vannuchi
Leme, integrante da Aliança Libertadora Nacional, foi morto num atropelamento
em pleno centro de São Paulo quando fugia de agentes de segurança, o que
possibilitou a detenção de quatro outros alunos subversivos, todos estudantes
da USP.
No plano internacional,
justamente na mesma tarde do fatídico dia 29, o último fuzileiro naval dos EUA
abandonava o Vietnã do Sul, isto depois de 11 anos de uma guerra terrível que
custou a vida de 46 mil soldados norte-americanos. O ibope negativo desta guerra foi tanto, que os grandes
artistas da música pop colocaram suas músicas como instrumento de crítica clamando
por seu fim. Três dias antes, no dia 26, era lançado nos EUA um compacto
simples do cantor Elton John que trazia duas canções marcantes e de grande sucesso:
“Skyline pigeon” e “Daniel”, que pareciam ser canções românticas (e o Brasil as
encarou assim), mas a primeira dizia da liberdade de um pombo, enquanto a
segunda falava justamente da Guerra do Vietnã, sobre um jovem que voltara cego de
lá. Esse intenso período, entre
o final de 1972 e o início do ano seguinte, fui justamente o período onde Elton
estava se tornando um superastro. E os grandes astros da música pop nesta época,
começaram a fazer shows em grandes estádios, tocando para 60 mil pessoas
regularmente. Esses shows tinham se tornado eventos concorridos e grandes
espetáculos, e assim, sendo um novo tipo de entretenimento, os fãs não os
perdiam por nada neste mundo. No caso de Elton, seus shows eram animadíssimos e
ele tinha se tornado um grande show-man.
E é aí justamente que entravam seus shows, que eram um verdadeiro espairecimento e alívio contra a negatividade que estava no ar, o período sombrio da trindade Nixon, Watergate e Guerra do Vietnã, assunto
de que ninguém mais suportava ouvir falar.
Três dias antes do lançamento do citado compacto, as TVs do mundo
todo anunciavam com grande repercussão o escândalo do caso Watergate envolvendo
o presidente Richard Nixon. Considerado “personalidade” típica das telas de
televisão dos anos 70, após esta data, o veríamos com frequência nos
telejornais — era um saco, todo dia aquela ladainha! Sua saída do governo foi
festejada nos EUA, e o resto do mundo acompanhou todo o escândalo
“de perto”, através dos jornais televisivos. "— Que jóça: a gente vai assistir jornal na TV e é só Nixon para lá, Watergate para cá, Guerra do Vietnã pra acolá!" "— E é ruim isso, Seu Paulo?"
"— Haja saco, Lito: só falam nisso!"
O cantor Tony Orlando, em pleno
sucesso em meados de 1973 com “Tie a Yellow Ribbon Round the Ole Oak Tree” (vídeo abaixo), foi
citado no “The San Francisco Chronicle”, que disse que ele “explodiu nas redes
de TV durante o governo de Gerald Ford”, sendo “um ensolarado antídoto contra o
cinismo sombrio pós-Watergate”. Essa música ouvia-se à exaustão nas rádios
brasileiras da época, e marcou muito, mas, crianças que éramos, desse antídoto
contra Watergate nada provamos, e nem os adultos que este assunto “não apitava
nada” para a maioria das pessoas ali num “esquecido” recanto rural do interior
paulista... Que as tropas deixassem o Vietnã e o Nixon saísse do governo,
excelente, mas o Seu Paulo nos deixar, era inadmissível! Eu próprio
tive um antídoto — não, obviamente, contra o tédio da citada trindade —, mas contra
as dores do luto por meu amigo, que era a minha querida luneta — presente de
Natal que foi o meu maior entretenimento neste período. Quiçá, na ingenuidade
destes dias, eu, como cantor Fábio e sua “Stella”, perguntasse à mim mesmo
olhando o céu:
"— Seu
Paulo, em que estrela você se escondeu?!"
Dona
Maísa
O desaparecimento do Seu Paulo parecia
trazer, em que pese a alusão, o
mesmo
sentimento
de desencanto da era pós-Watergate, pois a colônia não seria mais a mesma sem a sua
pessoa, aquela sensação de vazio imenso que as mortes mais sentidas trazem. Coincidentemente, quatro
dias antes de seu desenlace, o programa humorístico “Faça humor, não faça guerra” —
que vinha sendo exibido desde 30 de junho de 1970 —, sairia do ar. Foi neste
programa que o Jô Soares estreou na Globo, e o quadro que eu mais gostava de
assistir era o do “Bêbado”, personagem já citado aqui num dos capítulos. A
curiosidade deste programa é que, em meio à Guerra Fria e ao conflito do
Vietnã, seu nome parodiava o slogan pacifista hippie “Make love, don't make
war” (Faça amor, não faça a guerra) , e, como vimos, saiu do ar quatro dias
antes que o último soldado deixasse o Vietnã.
Dona Maisa Domingues.
No final da década anterior, as mulheres
norte-americanas se manifestavam contra essa maldita guerra e bradavam pela
libertação delas próprias, fato que muito influiu na criação do Dia da Mulher,
e, coincidentemente, 29 de março era o Dia da Mulher! Dona Maísa, com certeza,
estava inconsolável com a morte de seu marido, e, justo nesse dia dedicado às
mulheres, talvez não esperasse que isso fosse acontecer isso com ela e sua
família. Se a vida não deu ao Seu Paulo a longevidade da esposa, deu-lhe em contrapartida
a disposição férrea para o trabalho e a criação da numerosa família, a vontade
de vencer e o talento para a profissão que escolhera.
Quanto à ela, bem me recordo,
era uma moça muito simpática e elegante, e se esmerava no vestir, não deixando
de esconder uma certa ponta de vaidade, e realmente, ela era uma mulher bonita —
minha mãe sempre nos dizia isso. Nunca me esqueço: dona Maísa— que, pelo
jeito, cozinhava muito bem — fazia um bolo de milho tentador — feito naquelas formas redondas cônicas —, que, toda vez, estando
por ali, se eu via um deles em cima da mesa ou sentia-lhe o cheiro, no ato me vinha
água à boca, mas, infelizmente, nunca tive o prazer de prová-lo... Bastava um
amigo de seus filhos vir visitá-los, e, prontamente, lá estava mais um bolos
desses à sua espera... À propósito, amigos, este assunto me lembrou algo: não é porque o
Paulinho não me ofereceu um pedaço desse bolo tentador naquela tarde calorenta
de verão — sim, aquela segunda-feira de 3 de janeiro de 1972 —, às 13:35hs, que eu guardei
mágoa dele!...
Conversa de comadres
Nossa casa, e a janela de onde minha mãe conversava com a Dona Maísa Domingues, naqueles velhos tempos.
Quantas vezes, antes de dona Maísa ir para
a cidade, eu não a vi em longos bate-papos com minha mãe, cujos assuntos às
vezes descambavam no “trabalho” que nós crianças dávamos para sermos criados, e
o quanto éramos irrequietos... Nestas horas, pouco antes do almoço, “dona
Lourdes” costumava ficar à janela do quarto que dava para o passeio — era na
segunda casa onde morávamos.
Walter, Lourdes e Luciana, em 1967, ano de nossa mudança para a Usina.
Em frente a essa janela havia um antigo pé
de manga manteiga que foi cortado logo depois. Era ali, Sol a prumo, que as
duas colocavam seus assuntos em dia — dona Maísa, em pé no passeio, sombrinha
aberta apoiada nos ombros; dona Lourdes, debruçada no alto da janela, à sombra
da copa da velha mangueira. E a conversa rolava solta enquanto o ônibus não
aparecia. Eu, por minha vez, despreocupado e marinhando pelos galhos da
mangueira, ficava a ouvir as duas “comadres” na entabulada conversa:
—
Olha esse aí, dona Maísa: vive em cima das árvores e não para um minuto! Parece
um sagui!
—
Deixa ele, dona Lourdes, criança é assim mesmo!
Não
existe nada mais antigo...
Todos nós meninos estávamos tristes, e nem
mesmo assistir a novela “Carinhoso”, que passava às 17h na Rede Globo,
conseguiu amenizar o reinante clima de tristeza desta noite da partida de seu
Paulo. No mês seguinte, porém, nossos finais de
tarde se tornariam mais animados, pois a mesma rede de TV nos brindaria com um
rico repertório de desenhos animados com o programa “Globo Cor Especial”, o que
se deu no dia 2 de abril, seis dias antes da morte do pintor Pablo Picasso. O
programa tinha esse nome em alusão à chegada da TV à cores, o que havia
ocorrido em 24 de janeiro com a estreia da famosa novela “Bem-amado”, que
passava às dez da noite. Porém, levaríamos ainda alguns anos para ter nossa. Assistir
ao “Globo Cor Especial” numa TV à cores era demais, e como esquecer sua
música-tema, a animada “Cinto de Inutilidades”, composta pelo Nelson Motta e
Marcos Valle, que dizia:
“Não existe nada
mais antigo
Do que cowboy que dá
cem tiros de uma vez
A avó da gente deve
ter saudades
Do zing-pow, do
cinto de inutilidades...”
E esta música da dupla é inesquecível —
tinha bem o clima da época —, tanto que sei sua letra na íntegra até hoje.
Assim, passamos a assistir “Os Flintstones”, “Os Jetsons”, “Jornada nas
Estrelas — Série Animada”, “A Fábrica Adoidada do Mickey Mouse”, “Zé Colmeia”,
“Manda-Chuva”, “Jackson 5” e “Tutubarão”. Além dos desenhos, éramos brindados
também com as ótimas séries nesse mesmo programa, como “Abbott e Costello”,
“Dick Van Dyke”, “Mary Tyler Moore” e “Família Do-Ré-Mi”. Em março de 1974, o
programa foi transferido para o horário das 12h às 13h. Lembro-me que mal meu
pai acabava de assistir seu programa de esportes, corríamos para assistir os
desenhos antes de ir para a escola.
Desde janeiro o neologismo “apenasmente”
estava na moda, na boca de quase todo mundo, sendo utilizado por artistas,
músicos e literatos em geral; mas que termo é este, perguntará o curioso
leitor? Pois bem: ele foi cunhado pelo prefeito de Sucupira, o Odorico
Paraguassú, sim o cômico personagem da novela Bem Amado, o mesmo que pretendia
inaugurar o cemitério da cidade, mas não tinha um defunto para tal!...
Um
período de intensa atividade musical
Coincidentemente, na mesma noite da morte do
Seu Paulo, o maior astro do Funk —
ou, “O Rei do Soul” — o negro norte-americano James Brown, faria seu segundo em
último show no Brasil, naqueles que foram os primeiros shows de musica pop do
ano. Não só não me recordo de as TVs anunciando estes shows, e talvez o motivo
e que ainda não tínhamos sido fisgados pela música pop, o que se daria em
breve. Não mesmo curioso, o cantor Cat Stevens esteve no Rio de Janeiro no mês
anterior, mas preferiu manter-se incógnito...
Quanto aos outros famosos representantes do
gênero, digo, os Jackson 5, em breve explodiria nas rádios a bela canção “Music
and Me” na voz do finado Michael, creio que o primeiro grande sucesso do cantor
no Brasil, canção que, por sinal, era um das que compunham a ótima trilha
sonora da citada novela, que nesta época era exibida às 7 horas da noite.
Período intenso da música, este: nas
rádios, era o “rancoroso” Gonzaguinha que cantava as agruras brasileiras da
ditadura em sua polêmica “Comportamento Geral”, e que, por isso mesmo, acabou
sendo censurada. Aliás, essa época foi o período mais negro do regime militar,
então sob as rédeas do temível Emílio Garrastazu Médici — que parecia gostar
mais de futebol do que do próprio povo brasileiro — o mesmo militar
impertinente que convidava o povo brasileiro a deixar o País caso não estivesse
contente com o regime. Por outro lado, eram os bons tempos do jornal O Pasquim, em que o ratinho Sig combatia
o “monstro SIST” de que falava o Raul Seixas. Este, prestes a lançar seu
primeiro sucesso em compacto, em abril, o disquinho com a célebre “Ouro de
Tolo” e conquistar definitivamente, os jovens de todo o Brasil — e em questão
de meses nasceria aquele que viria a ser o maior rocker do País de todos os tempos! E eram bons tempos estes, apesar
dos “maus tempos”...
O célebre compacto do Stevie Wonder, com os sucessos "You are sunshine of my live" e "Superstition, de 1973.
Voltamos à aulas em fevereiro, e nas rádios explodiam duas belíssimas canções do grande Stevie Wonder, que foram lançadas num compacto pela gravadora Tapecar: uma, a balada romântica "You are the sunshine of my life", que arrasou corações, e a outra, uma canção suingada que foi um verdadeiro desbunde: “Superstition”, aliás, uma das canções que nos levou a começar a curtir rock, uma vez
que meses depois ganharíamos este e outros compactos de uma amiga da família, a
Deise Dadona, que foram os nosso primeiros discos. Neste mesmo mês, num
depoimento ao polêmico radialista Walter “Pica-pau” Silva, o diretor de uma
certa gravadora disse que não tinha preferência em gravar musicas nacionais ou
estrangeiras, e o interesse era gravar músicas que vendiam, o que contradizia o
lema que vinha impresso nos discos da época, o de que “Música é Cultura”... O
Pica-pau ironizou que o correto seria “Música é Comércio”... Mas nada disso
abalou a revolução insuspeita que estava em processo, uma revolução que mantém
suas influências e assombra até hoje! Nem mesmo o fato de o País perder
um dos seus maiores vultos de sua história, o compositor e multiinstrumentista
Alfredo da Rocha Viana Jr., o Pixinguinha, influenciou no que estava para
acontecer.
No mês seguinte, estava em processo a
elaboração daquilo que, junto do Raul Seixas, viria a ser o maior fenômeno da
música pop-rock brasileira: os Secos & Molhados ensaiavam suas primeiras
músicas para compor seu primeiro disco, que seria lançado com estrondoso
sucesso em agosto seguinte, vendendo 300 mil cópias em três meses e 800 mil até
o final do ano. O disco foi uma verdadeira loucura entre a meninada. Era muito
para nós: Raul Seixas e depois Secos & Molhados! Se 1973, musicalmente
falando, foi ruim para o carnaval, para os outros estilos foi um desbunde, e o
seguinte seria melhor ainda para o rock nacional. Mas por que nós, crianças de
todo o Brasil (eu, com 12 anos), enlouquecemos com os Secos & Molhados? O
João Ricardo, na época, arriscou uma opinião:
“‘A música, as
cores, o mundo mágico dos sacis e das fadas atraem as crianças’, diz João
Ricardo. ‘Mas é difícil determinar porque nós atraímos as crianças como é
difícil determinar as razões do próprio sucesso. A gente não faz espetáculos
para crianças porque elas não podem ver os shows que são impróprios até 14
anos. Mas elas nós curtem pela TV e pelo disco.’”
Considerado um ano de grandes e consagradas
estreias, 1973 nos brindou com artistas inovadores que se eternizaram: Raul
Seixas, com “Krig-ha, bandolo!”; Secos & Molhados Luiz Melodia, com “Pérola
Negra”; Fagner, com “Manera, Frufu, manera”; Tom Zé, com o polêmico “Todos os
olhos”; Simone; Clara Nunes; Paulinho da Viola, com “Nervos de Aço”; o já
citado Sérgio Sampaio, com “Eu quero botar meu bloco na rua”; Luiz Gonzaga Jr.; Hermeto Paschoal,
com "A música livre de Hermeto Paschoal"; João Bosco, Francis Hime, e
Walter Franco, com “Ou não”, dentre outros.
Célio Albuquerque, em seu livro sobre este
assunto, “1973 — O Ano que Reinventou a MPB”, escreveu com propriedade:
“O cenário era uma
riqueza só, mas foi em 1973 que a música brasileira, sob um recorte temporal,
se solta do passado, sem desgrudar-se dele, passeia pelo presente e salta para
o futuro”.
Como se vê, amigos, um fenômeno
inexplicável aconteceu neste ano, e 1973 realmente foi um desbunde, isto para
não falar nos lançamentos estrangeiros!...
Um
novo e polêmico cometa
Ainda continuando essa “viagem” paralela à
morte do meu grande amigo, gostaria de falar rapidamente de outros fatos
marcantes neste mês de março, que foi a descoberta do polêmico cometa Kohoutek, que foi observado pela
primeira vez na noite do segundo dia de carnaval no Brasil, ou seja, o sábado
de 7 de março, pelo astrônomo tcheco Lubos Kohoutek. Ele tornou-se visível a
olho nu na véspera do Natal deste ano, durante um eclipse anular do Sol, mas
sua aparição noturna foi um fiasco, já que não cumpriu o grande show previsto
pelos astrônomos. Eu e minha mãe tentamos, sem sucesso, ver esse cometa, fato o
que comento em outro capítulo.
O cometa Kohoutek, oito meses após a morte do seu Paulo, novembro de 1973.
Um dia, quando observávamos com a luneta as meninas da colônia de cima, o Celso, já sabendo do cometa, me perguntou:
— Pelo jeito, quando ele aparecer, Wenilton, você vai ser o primeiro a ver o cometa com sua luneta!
— Ih, Celso, li num livro esses dias, que observar um cometa pelo telescópio é o mesmo que admirar uma linda mulher com uma lupa!...
— Ué, mas porquê, Wenilton?
— Geralmente, por ter cauda, os cometas são muito grandes para ser ver com telescópios e lunetas. A gente vê só parte deles, entendeu?
— Ãnnn... faz sentido...
Recordo-me que, em alguma dia entra 10 de
fevereiro e 8 de março — e eu já na posse de minha luneta, e também já lendo os
primeiros livros de Astronomia —, consegui avistar pela primeira vez o planeta
Mercúrio, que no crepúsculo era visto logo acima do horizonte noroeste. No
entanto, infelizmente, ela não estava comigo neste momento, e, estranhamente,
nem me senti atentado a ir buscá-la em casa para vê-lo melhor.
Foi numa de suas três elongações máximas vespertinas, que normalmente ocorrem por
ano, mas é um planeta muito pequeno, de órbita interna e próxima do Sol, de
modo que e difícil de se ver por estar sempre mergulhado nas luzes do
crepúsculo matutino ou vespertino. Estava eu justamente no “canto de muro”,
próximo ao pé de goiaba que ali existia, nos fundos da casa do seu Paulo, que
era a primeira casa da colônia, e o lugar mais desimpedido do lugar para se ver
o céu desde o lado sul até o noroeste. Logo após o Sol se pôr, lá estava ele em meio à barra avermelhada do ocaso, logo acima do horizonte. Nestas condições, vim a saber que sua irradiação é dez vezes menor do que se fosse visto alto no céu. Era uma luz brilhante amarelo alaranjada, mas sem as cintilações típicas das estrelas. Naquela época, com as poucas informações que ainda tinha, era difícil para eu tentar localizá-lo no céu, já que ele é um “planeta interior” e tem sua órbita dentro da órbita da Terra, o que o faz se afastar muito pouco do Sol; aliás, é o planeta mais próximo dele. Encontrei-o por acaso, e, repito, vi-o por pouco tempo — acho que já era noitinha —, quando foi descendo e se afundando na vermelhidão da barra poeirenta do poente até sumir. De acordo
com dados pesquisados no mapa estelar Stellarium, penso que o vi no
dia 16 de fevereiro de 1973, entre às 20:40 e 20:50hs, estando ele imerso na
barra alaranjada no crepúsculo à uns 7 graus acima do horizonte, brilhando na
magnitude de -0,96. À sua esquerda, começando a despontar no céu, estava a
estrela Fomalhaut, que eu ainda não
conhecia, mas que meses depois, na noite de 2 de junho eu iria reencontrar numa história
muito especial, de que trato em outro capítulo.
O planeta Mercúrio e a estrela Fomalhaut, no crepúsculo de 16 de fevereiro de 1973.
O "canto de muro", onde se vê o pé de goiabeira que havia ali.
Nestes tempos, as luzes residuais da cidade
ainda não atrapalhavam a visão desarmada das estrelas menores, e podia-se até
mesmo ver a discreta nebulosa Saco de Carvão em meio ao Cruzeiro. O Monteiro
Lobato, no saboroso Viagem ao Céu, me
dizia que no “dia 15 de maio de cada ano essa
constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças”. Não é bem assim: aqui no
Estado de São Paulo a constelação fica alta sim, mas não no Zenite; no máximo, um pouco acima da
metade do céu do lado sul. Em janeiro, estando tudo muito escuro, podia-se
se ver logo acima do barracão de açúcar, duas manchas enevoadas, como que duas
nuvens desgarradas da Via Láctea que pairavam abaixo dos pés do Cruzeiro, a
duas discretas Nuvens de Magalhães.
Wenilton e sua luneta, no "canto de muro", em 1974.
Era exatamente no “canto de muro“, o ponto
onde se podia ver o Cruzeiro do Sul mais abertamente. Lembro-me que nas noites
de final de agosto, observando-o ele se pôr, por volta das 9 horas, estranha
era a sensação que ele me passava quando se inclinava sobre o distante
horizonte sudoeste para mergulhar nas imensidões daquela região tão desabitada
da cidade, lá para os lados do antigo bairro Furnas. Até hoje tenho esta indefinível
sensação, que sempre sinto toda vez que olho à noite para estes lados do céu. Escrevendo
tudo isto, cheio de nostalgia, como queria voltar ali nestes tempos despreocupados,
nestas condições tão favoráveis para a observação do céu e os sentimentos
incríveis que elas proporcionavam!...
Feliz e coincidentemente, foi
exatamente neste lugar que foi feita a foto mais importante de minha vida,
pelas mãos do amigo Marcos Coutinho Pereira, que, no final do dezembro de 1974, me fotografou
ali, agachado num momento de descontração com minha luneta — eu havia acabado
de ganhar de presente de Natal um tripé para ela. Tenho esta foto como um
tesouro da minha juventude.
A
erradicação do Jardim do Éden
Nunca mais vou me esquecer desse dia, não
só pela visão do planeta Mercúrio, mas também porque, nesta época, para nossa tristeza, o cerrado que
havia atrás da colônia — lugar onde frequentemente brincávamos —, havia sido
desmatado há pouco. Esse desmatamento, à princípio, só teve um ponto positivo
para mim: durante o dia, naquele mundão de terra vermelha que surgiu com a
retirada das árvores, tratores e caminhões trabalhavam num ir e vir constante,
e hoje sei que só foi possível ver Mercúrio de onde estava porque houve esse
desmate, já que com as árvores ainda em pé não ia ser possível vê-lo acima do
horizonte. Nunca me esqueci do cheiro peculiar da terra fresca revolvida pelos
tratores que ali erguiam as primeiras leiras de contenção de vinhoto. Como as
árvores derrubadas eram espécimes do cerrado — portanto, de pequeno e médio
porte —, creio que não tiveram outra serventia a não ser queimar como lenha nos
fogões das casas da colônia.
Nestes dias, aprendi um pouco sobre a
transitoriedade das coisas, da impermanência das pessoas que estimamos e a
constante mutação de tudo o que se move e vive: perdia um grande amigo adulto
ao mesmo tempo em que também perdia a primeira mata em que brinquei em minha
vida. Terrível, a consciência aguda da finitude de tudo o que nos é mais caro e
sagrado.
Seu Paulo, seu Paulo, seu Paulo... nada
pudemos fazer! Sua família tirada do prumo, as perspectivas de continuidade de
vida ali comprometidas — não restou aos Domingues outra alternativa a
não se tentar a vida na cidade. Para a nossa tristeza, assim se deu, e em
questão de semanas eles partiram.
Um ano depois, no aniversário da morte do
seu Paulo, a sonda norte-americana Mariner 10 faria a primeira visita a este
planeta, fotografando-o num bem sucedido “voo rasante”.
Os
Mistérios do Firmamento
E, antes que eu me esqueça, e novamente
falando de Astronomia, gostaria de frisar que acho surpreendente o fato de logo
no dia seguinte à morte do Seu Paulo eu ter retirado na Biblioteca Municipal
pela primeira vez o livro “Os Mistérios do Firmamento” (1952), do escritor
Domingos Marchetti, que veio a se tornar um dos livros mais importantes de
minha vida, um dos livros que me abriram as portas para o céu noturno
estrelado. Assim, de certo modo, a tristeza da perda do meu grande amigo foi
minimizada pela leitura deste grande livro naquele distante final de semana de
início de Outono. Este, foi um dos livros que me prenderam por horas à fio em meu quarto enquanto o resto dos meninos se divertiam lá fora...
Celso, no pescoço do Gustão, Binão e Paulo Caetano em tarde de natação na comporta do "tanque do meio".
Datam destes dias, mal terminado o curso
primário, as minhas constantes idas à biblioteca para retirar livros com esses
assuntos que me tanto me atraíam. Também nestes dias tiveram início as minhas vigílias
astronômicas, quando mal anoitecia e eu, em minha solitude, ia lá para o
telhado do galinheiro e passava o início da noite observando estrelas com minha
luneta.
Estranhamente, com o desaparecimento do seu
Paulo, desde aquele primeiro encontro nunca mais voltei a ver Mercúrio nos
horizontes da Usina — não sei dizer o porquê, mas jamais tive interesse em
procurá-lo novamente em todas as outras vigílias astronômicas que fiz nos anos
seguintes. Era algo inconsciente, mas, pensando bem, se eu não podia mais ver o
meu grande amigo Seu Paulo e desfrutar de nossa agradável amizade, por que
rever aquele planeta esquivo que eu encontrara sem querer no distante 1972 nos
fundos da casa do meu próprio amigo, e que, de certo modo, me remetia à sua
pessoa?
Gostaria muito de saber qual foi a última conversa que
tivemos, do que falamos, do que rimos, do que lamentamos, mas, obviamente, é coisa impossível, que tudo se esvaneceu nas brumas do tempo. Só ficou uma certeza: de dores
e lamentos, ele nunca me falou de seu grave problema de saúde; e se não falara,
com certeza, o fez sabiamente, que era para não encher de tristeza o seu
pequeno amigo.
Seu Paulo, Seu Paulo... um dos muitos mortos que perduram há tanto dentro em mim, fixo como um quadro pintado dentro do peito!... Seu Paulo, Seu Paulo... em que lugar, longe da Terra azul, se encontra você, meu velho amigo?!...
No abril seguinte a família Domingues se despedia da Usina. Findava o mês mais lindo e calmo do ano, mas findava deixando as rádios repletas de músicas lindas e eternas.
Enfim, empresto aqui uma frase de lamento dita por Cuthbert Collingwood, suboficial da caravela Euryalus, participante da histórica batalha de Trafalgar, em 1805, sobre o lendário capitão britânico Horatio Nelson: "Ele partiu, e eu irei lamentar isso até o fim de meus dias."
— Linda esta música nova tocando aí no rádio, hein,
Nilza! Quem é o cantor?
— A música é “Alone again”, e o cantor é um tal de Gilbert O'Sullivan.
—
Séria candidata à uma das melhores do ano, hein, Nilza!
— Prefiro "Killing me sofltly", com a Roberta
Flack, Wenilton.
—
Esta eu não me lembro, mas a primeira é linda demais... e triste... apenasmente
triste, mas não tão triste quando a “Without you” do Harri Nilson, né, Nilza?...
— Sim, sim...
“Well I can´t forget this evening
Or your face as you were leaving
But I guess that’s just the way
The story goes.”
#
* Este capítulo faz parte do Volume 5 - "Watcher of the skies ― dezembro de 1972 a março de 1973". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.
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