domingo, 10 de abril de 2016

“SEU ANJO”, O DISCRETO HORTICULTOR

Um dia em 1967 ─ O vale aprazível ─ Um Urtigão às avessas... ─ “Se você disser/Tudo o que quiser/Então, eu escuto/Fala!” ─ Paciência e paixão ─ Senta, levanta, senta levanta... ─ A vida secreta das plantas ─ Espiga solitária em campo raso ─ Observatório Solar Orbital ─ Latada de chuchus ─ A febre do ipê roxo ─ Um tal de H2 O2, ou Peróxido de Hidrogênio ─ A comporta ─ A cachoeirinha ─ “Estas terras eram minhas” ─ A horta ─ A cabana do Pai Tomás... ─ Quatro filhos, quatro temperamentos ─ No encalço do Inverno ─ O Caminho de São Tiago ─ Um homem livre ─ A luneta do bem

  .

“Assim falava pai João... eu, ouvindo-o, pensava em
todo o seu passado. Ali estava um homem que dera
tudo à terra querida: dera-lhe o suor de seu rosto,
o melhor da sua vida, toda a força do seu corpo
e todo amor da sua alma – e ainda o sangue de seus
filhos... e, agora, já quase morto, ainda amava
como nos primeiros dias; e a sua mão, cansada e
trêmula, estendida sobre os campos, parecia abençoar,
num gesto derradeiro de proteção e carinho."
(Antigo escravo. Olavo Bilac. 1904)


“O cliente está insatisfeito. Quer perguntar alguma coisa. Decide-se: 
─ Andam falando, Dr. Fritz... Posso tomar ipê roxo? 
Arigó quase se irrita, dirige-se a todos: 
─ Nada de ipê roxo! Saibam disso: ipê roxo é garrafada de macumba.
Nada de ipê roxo nem água oxigenada, Asch! Prra frente! Outrro!
(O médium Zé Arigó, em entrevista à revista Realidade, junho de 1967)

"Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh'alma."
(O Cântico do Calvário. Fagundes Varela. 1865)




Um dia em 1967 

Logo do Verão do Amor
Falar sobre o cotidiano de um lugar especial, um pequeno recanto rural da Usina Palmeiras, isto, na instigante segunda metade da década de 1960. Procurar decantar de todas as formas algumas coisas que ali se deram e as influências no lugar dos fatos que ocorriam no Brasil na época, e, até mesmo, lamentar o desaparecimento disso tudo. É o que pretendo agora. 

Os fatos e histórias que consegui arrancar à memória e colocar no papel, contar-se-ão agora. Eis o que se gravou na minha memória e nos sentidos, no que se refere ao final do primeiro trimestre ano de 1969, portanto, na alvorada daquela belíssima e inesquecível quadra outonal.

Felizmente, nem tudo desapareceu, e essa paisagem de minha infância não está de todo desfigurada e mantém ainda o aspecto natural com que a conheci em menino. 

Deixem-me, então, narrar as histórias que me vem boiando na memória, antes que, por alguma eventualidade, não possam mais ser contadas. 

O protagonista do capítulo: daquelas pessoas de se guardar com carinho especial no melhor recanto da memória. Personagem que tive a felicidade de conhecer. Um dos velhos moradores da Usina — dos pioneiros —, homem que por suas raras qualidades, ao relembrá-lo hoje, tenho o coração cheio de afeições e saudade. Dos primeiros na Usina que vim a conhecer ainda menininho: um velho horticultor que para a minha concepção daquela época já era bem idoso: um senhor simples, humilde, mas bem-humorado, e que trabalhava quase incógnito no amplo terreno situado abaixo dos quintais da linha inferior de casas da “colônia de cima”, terreno este que terminava num aprazível vale verdejante.

Neste lugar, pelas benfeitorias, a terra deixava entrever uma harmonia perfeita no, por assim dizer, entendimento do chão: o arranjo planejado dos canteiros, a disposição correta das cercas com suas trepadeiras, do alinhamento racional da plantação entre as curvas de nível, e até mesmo da construção estratégica de uma cabaninha de chuchus num ponto-chave ─ curiosa benfeitoria de que falarei em breve. Numa análise geral, um lugar cuidado por, no dizer de Rebello da Silva em Contos e Lendas, “aquela vida que a natureza ligou à sua pelas harmonias misteriosas da paternidade”.

*   *   *

Os hippies do "Verão do Amor", em 1967
Era em plena efervescência do chamado “Verão do Amor”, portanto, no primeiro trimestre de 1967, logo que nos mudamos para ali. Veja: a data do computador voltou no tempo: lá fora se iniciara a mais bela e calma das estações, o Outono! 

No entanto, como tumultuado estava o mundo neste mês! O Brasil em particular, tumultuado também, mas, culturalmente falando, de uma maneira  efervescente. O memorável ano em que o Rock and Roll e outras formas de arte se colocaram contra a Guerra do Vietnan! 

Embora a certidão de nascimento do Verão do Amor seja 14 de janeiro de 1967, a presente história se passa em 21 de março, justamente aquela data em que o explorador Francis Chichester — “o baronete dos oceanos” —, dobra o Cabo Horn em sua segunda viagem com o barco “Gipsy Moth IV”, batendo um recorde que supera em três meses o tempo de Vito Dumas, tempo este que ninguém mais conseguiu bater. Poderíamos festejar o feito, mas, agora, deixe-me dizer algo de nosso humilde protagonista e sua sonhadora façanha: não a de bater recordes, mas simplesmente a de desejar de alguma maneira pular as agruras do Inverno e ir direto para as benesses da Primavera! Oh, sim, amigo, estamos no Outono e ainda não é tempo de preocupações!

*   *   *

Como diria o Fagundes Varella no sentido poema Esperança: "Era na sazão bendita"...

Anus-branco (Guira guira)
Ouça amigo, ouça lá, pousados nos fios elétricos ao longo da estrada! Veja lá, aquele bando de belas aves branco-amareladas, com seus corpos esguios e topetes espichados! Ouça como cantam bonito, abrindo seus belos bicos alaranjados! Por acaso, os conhece amigo? 

Passarinho bom taí, Lourdes. Para quem tem horta, ele é ótimo para acabar com as pragas delas, pois come todo tipo de inseto! 

É anu-branco, né?

 Ele mesmo, Lourdes!




Mas, por ora, amigo, deixemos o cantos dos pássaros para lá e falemos de outros cantos não menos belos. 

Neste mês ainda ecoavam pelas rádios os verdadeiros e eternos sucessos que se tornaram três novas marchinhas de carnaval, ou seja, “Laranja madura”, de Ataulfo Alves, “Triste madrugada”, com Jair Rodrigues, e aquela que considero mais linda marcha de carnaval de quantas há, que é “Máscara negra”, de autoria de Zé Keti, na voz de nossa vizinha de Rio Claro, a cantora Dalva de Oliveira, a "Rainha da Voz". Rainha da Voz?! Sim: segundo a revista Rolling Stone, a Dalva foi a 32ª maior voz da música brasileira de todos os tempos. 

─ Músicas de carnaval nunca me arrancaram lágrimas, Walter, mas essa “Máscara negra” é comovente! A nossa vizinha Dalva de Oliveira arrasou nela!

─ Gosto mais de “Laranja madura”...

─ Presta atenção, Walter: estou falando de música e não de frutas!...

─ Pois “Laranja madura” é a nova marchinha do Ataulfo Alves, Lourdes!...

─ Estava brincando...

 Minha mãe cantarola:

“Quanto riso, oh, quanta alegria,
Mais de mil palhaços no salão,
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão...”



O engraçado é que esses novos radialistas não respeitam mais a lei do silêncio da Quaresma, e continuam tocando música de carnaval só porque são bonitas!

─ E nem tocar bumbo podia até pouco tempo. Lembra que as rádios só tocavam músicas clássicas ou religiosas...

─  Lembro sim.
 
*   *   *

Os integrantes da "Família Trapo".
Ah, caro leitor!... relembrar... falar de música brasileira às vésperas de abril de 1967, quando ocorreu o melhor festival de MPB de todos os tempos no Brasil – a Tropicália nascendo!... A nossa música nunca mais seria a mesma, que estava em curso uma revolução dentro do mundo cultural do Ps, isto, num momento de grande efervescência e vitalidade da juventude, da política e das artes no País! Mas, novamente, deixemos este entretenimento prazeroso para um outro e mais apropriado capítulo, e voltemos à minha mãe...

─ Walter, viu o programa que vai estrear quinta agora na TV Tupi?

─ Que programa?

─ Um programa de humor chamado Família Trapo.

─ Que nome: “Família Trapo”!... E quem são os atores?

─ Por enquanto só sei do Golias, mas só o fato de o programa ter ele já é um grande sinal de que a coisa vai ser boa e engraçada!

─ Oliiiiiiiimpiaaaaaa!!!...

─ Tá louco, óme?!... Ah, e o legal é que vai passar meia hora depois do Tele-Catch, que você e as crianças gostam de assistir.

─ Uau!

O vale aprazível

O sensibilíssimo escritor Balthazar de Godoy Moreira, em seu livro memorial lançado em 1969, escreveu com propriedade:

“Os vales quietos, nemorosos, parece que tem o condão de enfeitiçar; daí tantos livros sobre eles com sugestivos títulos que traduzem a fascinação dos autores: O Vale Aprazível; Como Era Verde o Meu Vale etc...”

Desnecessário dizer que assim era, exatamente, o vale onde se passa a presente história.

Sem mais demora, vamos conhecê-lo, amigo!

Marginado por uma colônia de casas ao norte e um rio e uma mata no eixo norte-sul, era um pequeno e alongado morro se distendendo entre uma estrada a oeste e um canavial a leste. O verde predominava, e que admirável cor local: à esquerda, junto à citada estrada, uma mangueira do tipo rosa; à sudeste, um pé de macaúba e um eucalipto; tomando quase todo o morro, uma ampla plantação de sorgo-vassoura, e milho, muitos pés de milho, que, generosamente, lançariam em breve as espigas gordas e sadias que seriam um dos sustentos de sua e de outras famílias da colônia; junto do eucalipto, canteiros de horta e citada cabaninha. O resto do terreno, do lado leste, era a sua horta. Nas baixadas, a bomba e a mina d’água e muitas samambaias, embaúbas aqui e acolá, moitas de capim colonião, contas-de-rosário, amoras-silvestre, lírios-do-brejo, taboas, arbustos de sangra-d'água, dentre outras plantas. Oh, Deus, era assim mesmo ou é a saudade que está a colorir sobremaneira as coisas?!... Não, meu caro leitor, não ― era tudo tal e qual digo: um vale aprazível por excelência!

Olha que cheiro gostoso no ar, Lourdes!

 Olhar o cheiro!... 

Para com isso: você entendeu o que eu quis dizer.

 Com certeza, é lírio-do-brejo.  

Era uma manhã de céu de brigadeiro, serena e linda, e o dia tinia de tão azul como se toda a atmosfera estivesse limpa por um filtro polarizador.
  
*   *   *

A primeira visão do protagonista desta história se deu quando fomos visitar a família dos Salmazzo, que também morava na citada linha inferior da “colônia de cima”. Sim, foi justamente aí que viemos a conhecer o curioso “estrelando” deste capítulo, isto, quando estava ele a trabalhar nas citadas terras usineiras.

Ao fundo, à esquerda, a horta do Seu Ângelo, quatro anos após sua morte, vista a partir da balança da Usina , 19-1-1975

Paramos nossa DKW à beira da estrada, logo na entrada da estradinha que leva aos fundos da colônia. Nesta hora, nossos pais riam às bandeiras despregadas, que haviam se recordado de uma curiosa história ocorrida na noite anterior, que foi mais ou menos assim, com o pequeno Weber perguntando à nossa mãe:

— Mãe... Mãe...ô, mãe!...

— O quêêêê!!

— Manhê, porque que o pai é careca?

— Hummmm... agora você me apertou, hein!... Bom... acho é porque ele trabalha bastante, é cheio de preocupações e é muito inteligente.

— Mas então porque que a senhora tem tanto cabelo?

— Cala boca, menino, seu tonto!

*   *   *

─ Desliga o rádio, Lourdes, e trava esta porta. ─ interviu nosso pai.

─ Espera um pouco: deixa acabar esta música do Roberto. Ela é tão linda!

─ Musiquinha triste demais...

Morreu Maria quando a folia
Na quarta-feira também morria
E foi de cinzas seu enxoval
Viveu apenas um carnaval


─ Onde fica a casa dos Salmazzo, Lourdes?

─ Lá em cima, no final da estradinha.

─ Desliga esse rádio, Lourdes.

─ Olha: a música nova da Vanuza!

─ Música mais triste ainda, Lourdes!...

Vem, vem pra bem perto dos meus olhos
Vivo tristinha a te esperar
Viver pra sempre junto a ti
Oh! Pra nunca mais chorar...

 
Seguimos a estradinha adiante...

— ...estou notando aqui: sua barba está bem malfeita, hein, Walter.

─ Se esqueceu que eu fiz a barba à luz de vela, ontem?

─ Ah é, tinha parado a força!

─ Mas porque você não compra um daqueles aparelhinhos de gilete, que é muito mais prático?

─ Não troco minha navalhas por nada!

─ Pelo jeito, com aquelas navalhas você não está fazendo a barba, mas fazendo a cara... está com o rosto todo lanhado!...

─ Já te disse que fiz a barba ontem quase no escuro!

— Tá bom, tá bom! Estava brincando!

Nós crianças íamos saltando pela trilha ascendente, pulando, chutando pedras e paus, dando expansão aos incontroláveis impulsos da meninice, quando, súbito, num salto para o alto, algo se elevou de uma moita ganhando o céu indo à uns três metros de altura... 

Perdiz (Nothura maculosa)
— Que é isso?! — gritou o Wagner assustado.

— Uma perdiz! — disse meu pai.

E a ave, num voo veloz, que soava como se um pedaço de papel estivesse sendo rasgado, desceu a ribanceira planando enquanto emitia um assovio trêmulo, indo pousar lá em baixo numa macega onde desapareceu.

— Que susto!


Subimos a trilha e notamos, tão bem assentada em meio aquela explanada verde, algo como uma pequena construção tomada por uma cortina verde, onde havia uma entrada voltada para a estrada e o tanque. Um lugarzinho charmoso onde um menino se esconderia esquecido do mundo — os que o conheceram, lendo estas memórias, confirmarão o que digo.

— Pai, olha aquela casinha lá, coberta de mato verde!

— É uma cabaninha de trepadeiras, acho que de chuchu, Wenilton.

— Que legal! É quem é aquele homem?

Hummm... como é o nome dele mesmo?...

— Ele mora na cabaninha?


— É claro que não, né, Wenilton, mas vamos lá conversar com ele. É uma boa pessoa.

─ O que é aquilo que ele tem na mão, pai?

─ Um alfanje, Wenilton.

─ Alfanje?!

E era linda mesmo a tal cabaninha. E como caía bem naquela colina, assentadinha como se tivesse nascido ali, brotada da terra. 

─ Este lugar aqui é muito agradável, não, Walter! Deve ser ótimo para um piqueninque!

─ Deve ser, Lourdes, afinal milhões de formigas não devem estar enganadas...

─ Ah, que exagero! Não estou vendo formiga nenhuma aqui!

─ Estou brincando!...

*   *   *

O vale se apresentava em diversos tons de verde, com alfaces, repolhos, couve-flores e brócolis plantando em fileiras bem ordenadas.

─ Que cores lindas esta horta! ─ elogiou minha mãe ─ tudo é de um frescor delicioso! Ela me lembra o título de um filme que assisti quando era menina!

─ Que filme, Lourdes?

─ “Como Era Verde o Meu Vale”.

─ Não conheço.

─ É lindo! Já passou na TV várias vezes.

Meu pai, após um instante pensativo, falou de uma novidade:

─ Neste mês de março, Lourdes, foi adotado o PAL-M, o sistema utilizado no Brasil para transmitir TV à cores! Não vejo a hora de ter uma!

─ Mais bonito que esta horta, Lourdes, impossível!

*   *   *

Levaria ainda uns oito anos para que a primeira TV à cores aportasse na Usina, o que seu deu em 1975, com a família Celeghin, cuja chácara ficava ao lado do Clube da Usina.

─ Bem que eles poderiam reprisar Como Era Verde o Meu Vale na TV, né, Walter...

─ Quando passar, você me avisa, Lourdes.


Um Urtigão às avessas...

Ângelo Menegazzo, déc. 1940
Nos aproximamos. Lá estava ele, curvado e de alfanje à mão, iluminando com sua presença as manhãs outonais daquelas baixadas. Meu pai, orça-lhe otica e trigonometricamente a curvatura da coluna e, como se fosse possível, estima-lhe os anos:

─ Hummm... deve ter uns 70 anos quando muito, Lourdes.

─ Por aí...

“Seu Anjo” lhe chamavam — Ângelo, pois, era seu nome. A apócope — a abreviação carinhosa com que lhe batizaram — lhe convinha: realmente um anjo em pessoa!

— Me lembrei do nome dele: Seu Anjo!

— É Ângelo, Walter, seu Ângelo! Que Anjo daonde! — corrigiu minha mãe.

— Todos chamam ele assim, Lourdes: “Seu Anjo”, e é assim que eu vou lhe chamar!...

─ Mas está errado, Walter...

─ E você não chama sua cunhada de Laza, enquanto que o nome dela é Lázara?...

─ É mesmo!... desculpa a vergonha que eu passei...!

─ Minha madrinha se chama Lázara, mãe?!

─ Vai falar que você não sabia, Wenilton?!

─ Não, mãe. Pudera: todo mundo chama ela de Laza...

─ Mas, Walter, quer mais confusão que nos nomes de seus irmãos? Nelson é Nilson, Décio é Desórdi, Nadir é Naide, Aparecida é Sinha, Neide é Noemia, e a Odila é...  ─ meu pai interrompe:

─ A Odila é Odila, Lourdes, e chega!

─ E quê que o Seu Anjo faz, pai? ─ interrompi por minha vez...

─ Ele é... como se diz mesmo, Lourdes? A pessoa que lida com horta? 

─ Horticultor ou hortelão, Walter.

― Mas hortelão não é quem cuida de hortelãs, Lourdes?

― Engraçadinho!... Chame-o de horticultor, então.
 

─ E o quê que faz um horticultor, mãe? ─ perguntou o Waltinho.

─ Cuida de verduras, legumes, ervas...

Eu perguntei:

─ Então ele é que nem o Urtigão do gibi, mãe?

─ Mais ou menos, Wenilton...

─ Nem mais, nem menos, Lourdes: não tem nada a ver! O Seu Anjo não é baixinho, não é barbudo, não é violento e nem anda com espingarda a tiracolo!... Além disso, o Urtigão do Gibi parece que nem gosta de trabalhar! Só caçar...

─ Então quer dizer que a espingarda está para o Urtigão, assim como o alfanje está para o seu Ângelo?

─ Ué, Walter, mas você quer caçar paca ou tirar retrato?...

*   *   * 

Lindos, os canteiros de horta: viçosos e bem cuidados. Havia neles um pouco de tudo: vários tipos de verdura, ervas doce e cidreira, hortelã, alfavaca, arruda, morango, salsa, cebolinha, alecrim, quiabo, berinjela, cenoura, pimentas, tomate, pepino, vagem... que sei eu!... Pelas cercas, trepadeiras diversas como feijão-jalo, maracujás, chuchus, vagens e tomates.

Quando nos aproximamos, ele vinha pela estradinha com uma carriola velha cheia de capim cortado. Parou perto de um tambor cheio d’água colocado entre pedras brancas amontoadas, onde brotavam samambaias e tufos de sapé. Lavou as mãos e, com elas em concha, jogou uma água rápida no rosto e depois se enxugou com um lenço que trazia amarrotado e aflorando do bolso.

O Weber se aproximara dele curioso e o seu Ângelo correra a mão por sua cabeça afagando-a.


Um por um, apertamos a mão suada e ossuda daquele digno homem.

― Bom dia, seu Anjo!

― Bom dia, seu Vart! Então quer dizê que já mudou aqui pra Usina?

― Sim, este final de semana que passou.

― Seja bem-vindo!

― Obrigado!

Curiosas mãos, aquelas, tão diferentes ─ mãos que, apesar de toda a insolação, eram estranhamente brancas ─ branquíssimas, aliás, com algumas veiazinhas finas e azuladas raiando-as de fora a fora.

A conversa rolou solta.

― Eu sabia que alguém estava chegando...

― Como assim, seu Anjo?

― Eu escutei o Gente-de-fora-vem cantano. Toda veiz que ele canta é porque alguém tá chegano.

― Gente-de-fora-vem. O que é? Um passarinho?

― Sim, um passarinho. Difícil de se vê, mas canta muito.

― Esse eu não conhecia.

― Ih, em bastante aí pr’esses mato.


Gente-de-fora-vem ou Pitiguari (Cyclarhis gujanensis)

Súbito, um galo cantou lá na colônia.  

─ Esse galo cantano aí é meu, seu Vart. Ô, bichinho presunçoso! Um daqueles galo que pensa que o Sol nasce só pra vê ele cantá!...

─ Há, há, ha!...

─ Sente que cheiro gostoso no ar, seu Vart?

Esta falando do cheiro de lírio-do-brejo, seu Anjo?

─  Sim.

─  É uma fragrância deliciosa.

― Fra o quê, pai? ─ perguntei...

― Fra-grân-ci-a, quer dizer o mesmo que perfume.

─  Ãnnn... mas esse aqui é o último mês que ele floresce, né?


*   *   *

─ Como que chama a sua profissão, Seu Anjo? ─ perguntou o Waltinho.

─ Tem gente que me chama de hortelão, mas tem outros que dizem ancião.

─ Eu sei o que é ancião, pai! ─ exultou o Weber.

─ E o quê é?

─ É um homem que fica sentado o dia todo!

─ Há, há, há!... O que o senhor me diz, Seu Anjo?


─ Essas criança!...




“Se você disser/Tudo o que quiser/Então, eu escuto/Fala!”

Não creia o leitor que o humilde Seu Anjo fosse detentor de um vocabulário acima da média ─ muito pelo contrário. Porém, amigos, é patente que se eu reproduzisse a realidade como ela é, talvez muito não entenderiam muito bem o falar simples desse homem, que a fala humana é naturalmente descontínua, entrecortada, com repetições, com frases vacilantes, como que pontuadas ao final com reticências, e, em certos casos, ininteligível mesmo.

A situação me remete àquele belíssimo poema do Varella, aquela joia de amor e sentimento que é o inspiradíssimo “Mimosa”, em certa altura, quando ele verseja:

“Já sei, compadre, que acharás imprópria
Nos lábios de Mimosa tanta pompa,
Tão alta locução;
Não importa, atavio-lhe a linguagem
Sem lhe afogar a ideia: ─ Se discutes
Mando-te à Introdução.”

Mas, bastava ele falar e um adulto comum entenderia tudo prontamente: o grau de erudição, a classe social, a origem geográfica etc. Convém, no entanto, lembrar que, mesmo o homem falando com economia e imprecisão verbais, de quando em quando, deixava escapulir uma observação qualquer, mas cheia de conhecimento oriundos de sua ciência infusa, aquela tão própria dos velhos roceiros dos rincões desse Brasil afora.

Porém, às vezes, enquanto Seu Anjo ia falando, meio que editávamos o que ele dizia ─ o que era facilitado por seu ritmo lento ─, no que ─ menos nós que nossos pais ─ imaginava-se as falhas e ia-se mentalmente completando as lacunas. Assim, num homem daquela origem e cultura ─ na sua rudeza, seu prosaísmo e sua sobriedade elementar ─ e mais: àquela altura da vida ─, inconscientemente concentrava-se no que era passado, ouvindo como um todo, ignorando as repetições, intuindo o que havia por detrás dos vacilos e falas interrompidas seja por falta de uma palavra adequada, seja por naturalidade do próprio e limitado jeito roceiro de se expressar.

Enfim, em se falando com ele, nada daquelas situações constrangedoras tipo próprias dos piadistas e contadores de causos, onde se escuta superficialmente o que o interlocutor diz, e se ri forçadamente, isto, enquanto nos concentramos e preparamos o que estamos ansiosos para falar em nossa vez.

Então, como não respeitar um ancião que já estava naquela idade provecta em que já falava do céu e do inferno com simplicidade igual à das criancinhas?...

O Godofredo Rangel, em seu saboroso Vida Ociosa, de 1920 parecia se referir ao Seu Anjo neste curioso trecho:

“Rememora os antigos anos de fartura, compraz-se as vezes em narrá-lo, como um viajante relata as maravilhas que viu no decurso da viagem. Essas recordações têm para ele o doce ressaibo das boas coisas gozadas, sem que lhes sinta o amargor por serem coisas idas.”

Continuemos, pois.



Paciência e paixão

Seu Anjo, Seu Anjo!... Eis aí um velho usineiro de pés cordialmente enraizados na terra ─ ei-lo com suas deficiências e imperfeições, com sua bondade e resignações; mas, nada demais, posto que era humano, de carne e osso, como todos ali. Uma pessoa, porém, que tinha a sua integridade, o seu discreto amor próprio, que lidava quase que de igual para igual, com o mesmo amor devotado, tanto com os seus semelhantes quanto com suas plantas, os animais, a terra... Com suas mãos estranhamente claras, mas certamente sujeitas à geadas e soalheiras, lidava religiosamente com a terra, com toda aquela sua humanidade temperada nas intempéries da vida empapada de suor, tingida de terra vermelha ─ sim, as estranhas mãos brancas no íntimo contato terra-a-terra. Sereno, introvertido — quase um asceta, diria um filósofo —; seria o hortelão dos hortelões, não fosse ele o único ali neste mister. De todo modo, representava um dos inúmeros e nobres exemplares da casta de trabalhadores rurais da região usineira; porém, trabalhava só, quase incógnito, único. Naquele modesto morro da colônia, nada mais fazia ele que trabalhar todo santo dia, plantando, regando, em infindos tratos culturais, esperando a sazão bendita, a colheita ─ depois o comer, o dormir, o sonhar... Assim era seu cotidiano: dia-a-dia, sol a sol, terra-a-terra ─ a sempre mesma repetição da véspera.

 Mesmo curvado pelo tempo, no resto e vida que lhe faltava, não dava sinais de que caminhava para a morte ― naquele mundo solitário, deslocando-se num cenário incomparável, seu cotidiano era o dedicar-se exclusivamente à terra que tanto amava ― aquela vivência toda herdada dos velhos roceiros paulistas: o modo de falar, de conduzir a conversa estando apoiado em seu instrumento de trabalho, de andar, de reagir, de se postar diante da natureza, o coração e alma cândida, testemunho de pureza de sentimentos, a arte de fazer rir... assim, não havia autoridade que levantasse a voz para aquela mansidão toda ― o  velho desarmava qualquer um.

Soube nesta manhã que passava o dia ali, fincando espeques, concertando o espantalho, esticando fios sobre os canteiros onde dependurava tiras de folhas de flandres para espantar pássaros, arrancando ervas daninhas, espalhando estrume de cavalo e palha de arroz, aguando com o regador, carpindo as leiras da plantação, dentre outros afazeres pertinentes.

Assim, por decisão sua, vivia como que isolado trabalhando nesse discreto e não muito frequentado recanto da Usina. E, em dois simples preceitos, parecia resumir sua filosofia de vida: paciência e paixão. Com o primeiro, tocava o dia-a-dia em trabalhos às vezes rudes, isto, sem jamais abalar a serenidade de sua alma; noutro, o amor pela terra, a paixão telúrica por tudo o que era natural, sentimento decantado por anos de convivência com as coisas de seu pequeno mundo. 

― Não dá muito trabalho cuidar sozinho desta horta e da plantação, seu Anjo?

― Entre o plantá e o colhê, seu Vart, está o cuidá e tê paciência... E quando a gente gosta do que faiz, tudo vai que é uma maravilha. 


*   *   *

Fuçando ali e aqui, distraído, arranquei um galho de um arbusto ao meu lado, o Seu Anjo falou:

─ Essa planta bonita aí é a Cravorana.

─ “Cravorana”! O nome também é bonito!  ─ acrescentou minha mãe.

─ Cravo o quê, mãe? ─ perguntei.

─ Cra-vo-ra-na.

─ Humm.

─ Serve para alguma coisa, Seu Anjo? 

─ Sim, seu Vart: ela mata piolho das ave e pulga dos cachorro. Se você colocá umas folhinha fresca no ninho das galinha, a piolhada some tudo!

─ Bom saber, Seu Anjo, porque eu crio justamente cães e galinhas, mas, e esses quero-queros aí no meio dos canteiros: eles não comem as verduras?

─ Que nada, seu Vart! Eles come tudo os pulgão tamém!

─ Olha só!

─ Tem muita coisa que a gente acha que é errada, mas num é, seu Vart. Essa pranta aqui ó, o caruru, se a gente plantá ele junto co’as beterraba, as vaquinha vai tudo pra ele e deixa as beterraba em paz.

─ Impressionante!

─ A Joaninha ─ que a gente acha que é praga, num é! É ela que também acaba co’os pulgão e as cochonilha.

─ Maravilhoso, Seu Anjo!  ─ exclamou minha mãe.


*   *   *


Ocultos por entre as flechas do taboal lá em baixo, bandos de chopins-do-brejo, tristes-pia e garibaldis faziam uma animada algazarra coletiva, como que a celebrar a vida. 


― Êta passarada feliz, seu Vart!

― Cantando assim, parece que celebram a alegria de viver num lugar como esse


― Que foi, Walter? Virou poeta agora?... ― ironizou minha mãe


*   *   *

Em todos os interstícios, seja de pedras, sejas das rachaduras nos barrancos, descendo pelos flancos, brotavam moitas de Maria-sem-vergonha, essas pequeninas flores cor-de-rosa que a gente vê muito por aí, seja no campo ou na cidade, desde que brote, em lugares úmidos e ensolarados. 

― Nossa, seu Ângelo, quantas moitas de Maria-sem-vergonha!


Maria-sem-vergonha (Impatiens Walleriana)
― Ah, dona Lourdes, elas brota por tudo lado! É uma beleza! A criançada daqui adora brinca co’elas!

― Pega esta cápsula aqui, Waltinho, e dá um apertinho nela.

― Nossa, mãe, ela explode!

― Explode e manda sementinha para todos os lados.

― Também quero brincar, mãe! ― gritou o Weber. Ele aperta uma cápsula. 

― Olha, que legal!

― Que sensação gostosa, seu Ângelo: aquele mesmo “ploc” de quando a gente morde uma jaboticaba.

― Verdade, dona Lourdes: bem lembrado.


Senta, levanta, senta levanta...

― Mai tô reparano uma coisa aqui, seu Wart: o senhor tá todo nos trinques, hein! Que calça bonita!

― É um tecido novo, o... ih, me esqueci o nome! 

Minha mãe não prestava atenção na conversa neste momento, mas ela sabia o nome. 

― Não é aquele que não amarrota e nem perde o vinco, seu Wart?

― Exatamente, Seu Anjo! Lembra da propaganda: “senta, levanta, senta, levanta...”?

― Ah, ah, ah, lembro sim! Era com aquele ator, o...

― Cláudio Marzo, seu Ângelo ― acrescentou minha mãe, que acabava de chegar ―, mas este comercial é da Sudantex, e não da Rhodia. O tergal é da Rhodia e o nycron da Sudantex.

― Ela sabe tudo de roupa, hein, Wart!

― Pudera, ela trabalhava numa tecelagem!...

― Mas você também trabalhava numa, Walter!...

― Sim, mas no escritório... 

Meu pai se referia ao célebre Tergal, um tecido de fibras sintéticas de poliéster, criado pela Rhodia e lançado no Brasil em 1961, saindo de fabricação em 2003. O Tergal, assim como outros tecidos surgidos na época, como o Nycron e o Crylor, deu o que falar na época e inúmeros foram os comerciais com esta novidade, coisa que não se vê hoje em dia. O responsável pelos comerciais na TV, revistas, out-doors e vitrines era a equipe da Standard Propaganda que trabalhava para a Rhodia. Nisto, os produtos se popularizaram assim como os artistas e modelos contratadas pela equipe.

O comercial do "senta, levanta...", de 1968, com o finado Cláudio Marzo.

*   *   *
─ Um dia desses, seu Vart, veio aqui um caminhoneiro, um desses que vem fazê frete de açúca aqui, e queria comprá uns legume, e eu disse pr’ele que só tinha abóbora. E ele retrucô que lá na terra dele abóbora era comida de porco!...

─ Nossa! E o que o senhor respondeu?

─ Falei que aqui na nossa terra também é...

─ Há, há, há!

A vida secreta das plantas

Sempre é pouco lembrar que o seu Ângelo era uma pessoa assaz carismática, que sua timidez natural o envolvia numa aura de simpatia, parecendo ter sido moldado pela própria humildade, características que deixaram em sua personalidade marcas de irreparável comedimento. Mas, apesar de tímido, como já o disse, era bem-humorado.

— A horta e as terras aqui são tuas, Seu Anjo?

— As terras não, a horta sim, seu Vart; e sou eu mesmo que planto e cuido de tudo.

— Que beleza! Está tudo muito bonito e viçoso. Pelo jeito, o senhor tem a mão boa para lidar com plantas.

— Pois é, seu Vart: nada que uma boa conversa com elas não resolva...

— Conversa! Como assim, Seu Anjo?

— Sim, seu Vart: eu converso co’as planta e elas me entende.

— Me desculpa, Seu Anjo, mas o senhor só pode estar brincando, né.

E como que possuído por uma bondade franciscana, revelou:

— Num tô não, seu Vart: eu converso mesmo. Olha, aquela música tá certa, quando diz que “as rosas não falam”. Elas não fala, mas elas ouve, e ouve tudo o que a gente diz pra elas.

— Essa é boa!...

— Quando falamo co’elas, elas cresce mais, cresce mais bonita, dão mais fruto e flor. Olha, seu Vart, as planta fica feliz quando damos água pra elas, e elas são capais de até de lê nossos pensamento!.

— Ler os pensamentos?! Que é isso!

— Sim, seu Vart: parece loucura, mas é assim memo, pode acreditá!

— E como faço para passar a acreditar nisto, Seu Anjo?

— Pratique, seu Vart, pratique, e um dia o senhor entenderá!... Comece assim: plante dois pé de girassol, um do lado do outro. Converse bastante com um e com o outro não diga nada. Faça isso todo dia e veja o que acontece.

— Vou tentar, seu Anjo, mas não garanto. 

O Wagner resolveu entrar na conversa...

— Seu Anjo, outro dia meu pai estava plantando uma muda de gabiroba do lado de casa, e eu tentei falar com ela, mas ela não me respondeu! Sabe por quê?

— Porque, menino?

— Por que ele era muda...


Risos gerais...

*   *   *

Dracena (Dracaena marginata)
Mal sabia o seu Ângelo que, no ano anterior, um tal de Cleve Backster ─ então o maior expert norte-americano em detecção de mentiras ─, um certo dia, movido por simples curiosidade, teve a estranha ideia de fixar os eletrodos de um de seus detectores numa folha de dracena
Livro de 1974
uma espécie tropical muito utilizada como planta ornamental. Depois, pegou essa mesma folha da planta e mergulhou-a numa xícara de café quente, e notou que a planta tinha reações semelhantes às de um ser humano submetido à estímulos sensoriais.  

Por fim, Cleve acabou descobrindo algo que viria abalar os cientistas da área da Botânica: as plantas tem uma percepção extremamente aguçada de tudo o que as rodeiam: tem sentimento, raciocinam, ouvem, enxergam, reconhecem pessoas, entram em sintonia com elas e até mesmo advinham seus pensamentos. Após divulgada a descoberta, diversos cientistas dos EUA e União Soviética fizeram novas experiências para se certificar do fenômeno, aprofundando-se nos mais variados testes, até que que dois pesquisadores, Peter Tompkins e Christopher Bird, resolveram escrever um livro reunindo estas experiências,  A Vida Secreta das Plantas, livro que acabou se tornando um verdadeiro best seller em 1974. Vale lembrar, que em plena explosão do Flower Power, na segunda metade da década de 1960, o slogan dos jovens era: “Converse com suas plantas e ajude-as a crescer.”

─ Seu Vart, sabe aquele ator, o Geraldo Del Rey?

─ Sim, conheço.

Geraldo Del Rey - 1930-1993
─ Pois, é, seu Vart: sabia que ele põe música para suas planta ouví?

─ Cara louco!...

─ Louco nada: ele disse que se num fizer isso, as planta fica amarelada e mucha.

─ Só acredito vendo!...

― Tá veno aquele pé de laranja ali, seu Vart?

― Sim.

― Pois então: as laranja era tudo azeda. Foi só começá a conversa com o pé após a florada, e as laranja nascero tudo doce.

― Está falando sério, Seu Anjo?

─ Sim, é verdade, seu Vart!!

― Se fosse laranja azeda, Seu Ângelo, eu ia queria chupar uma três! Ultimamente ando com desejos de comer e beber tudo o que é azedo.  ─ interviu minha mãe.

Lourdes grávida e Walter na A. A. A., em 1966.
― Acho que eu sei o que é isso, dona Lourdes! Me diga uma coisa: a senhora me parece que está grávida. Estou certo?

─ Sim, Seu Ângelo, estou.

─ E pelo jeito a criança já vem por aí!

─ Sim, já está para nascer! Talvez em uma semana nasce!

─ Que beleza! Menino ou menina?

─ Não sabemos. Vai ser surpresa, mas esperamos uma menina, pois, como o senhor está vendo aí, já temos quatro meninos...

─ Pois quer sabê de uma coisa, dona Lourdes: eu acho que o que vai nascê é menina mesmo! Em uma semana a criança nasce: dia 28 então, terça que vem, então!  Já pensaro num nome prá ela?

― Como o nome dos menino começam com a letra “W”, igual ao pai, vamos colocar um nome com “L”, porque o meu começa com essa letra. Estou pensando em Luciana.

― Bonito nome, dona Lourdes!

─ Mas, porque o senhor tem tanta certeza assim que vai nascer menina, seu Ângelo?

― A senhora nunca ouviu falá que mulher que tá grávida de menina gosta de coisa azeda?

― Nossa, nunca ouvi isso!

― Pois então espere, dona Lourdes! Depois a senhora me diz.

― Eu mando sim avisar o senhor quando a criança nascer.

O Weber, que ouviu atento toda a conversa, com cara de encafifado se dirige à nossa mãe:

─ Mãe! Mãe!

─ O quêêê?

─ De onde vem as crianças, mãe?

A mãe fica constrangida com a pergunta. Mas, dando uma piscada para o seu Ângelo, se sai com essa:

─ Ué, Weber, criança a gente compra...

Ele pensa durante alguns momentos, depois retruca:

— Eu não acredito que as crianças são compradas, mãe!

Meu pai interveio:

— Não acredita por que, Weber?

— Porque os pobres têm muito mais filhos que os ricos, pai!

Risos gerais.




Espiga solitária em campo raso

American Gothic, de Grant Wood. 1930.
“Seu Anjo”... Falemos ainda dessa curiosa figura. Ao tempo dessas recordações, agora já meio desfocadas, se bem me recordo, o velho horticultor era seco de compleição, enxuto de carnes, mas disposto e madrugador. O rosto, fino e comprido, vincado de dobras de rugas, suavizadas, porém, pelo seu semblante sereno e franco. Os olhos, por sua vez, já meio baços, amarelados e fundos nas órbitas, divididos por um nariz ossudo e algo espichado para a frente. Apesar de trabalhar ao sol, tinha a pele quase branca, feito um ser exangue. Ao tirar o chapéu para se abanar, via-se que os cabelos vigorosos, grossos, já brancos, mas sem “entradas”, sem tendência à calvície. Homem de fala cordial, mas voz meio rouca e já vacilante devido à idade. Em suma, era todo reverência banhada em franciscana bondade.

Sem esse desfoque, dir-se-ia que era uma figura pictórica, porém quase espectral, saída dum quadro com personagens do século XIX. Calvo fosse, diria que era o velhinho agricultor da clássica pintura de Grant Wood, American Gothic, e, indo mais longe, para usar uma expressão do Mário Lago, o seu Ângelo mais parecia uma “espiga solitária em campo raso”.

— E este sólão, Seu Anjo, não te faz mal, não, homem?

— Nessas hora da manhã não, seu Vart, mas depois das nove em diante é bom usá uma camisa de manga comprida, um lenço em volta do rosto, amarrado abaixo do queixo, e um chapelão de palha, de aba larga ─ assim o Sol não judia muito.

─ Mas e hoje: porque não está vestido assim?

─ O senhor acredita que eu me esqueci, seu Vart? A memória já não anda boa...

─ Mas é bom não abusar, né?

─ Sem dúvida, seu Vart: óia essa vermelhão no rosto. Isto é coisa de sol demais.

Neste momento, o homem cortava capim para um animal seu usando um alfanje.

─ O senhor não usa foice para cortar capim, Seu Anjo? Não é bem mais pratico?

─ Nem foice nem martelo, seu Vart...

─ Martelo! Porque martelo?

─ Sabe como é o governo da ditadura, né, se Vart...

─ Ah, sim, agora entendi...

─ A caveira da morte, neste país, seu Vart, deveria ser representada com uma foice na mão, e não com alfanje.

─ Realmente.


Observatório Solar Orbital

Observatório Solar Orbital (OSO-3)
Nestes tempos em que mal se falava em protetor solar, ignorava o humilde seu Ângelo, que debaixo daquela soalheira toda, diariamente, acima de sua cabeça, bem lá em cima, invisível nas imensidões do espaço, flutuava mais um novo engenho espacial lançado pela NASA ─ o terceiro de uma série de oito ─, o belíssimo Observatório Solar Orbital (OSO-3), colocado em órbita da Terra no dia 8 de março deste mesmo ano da graça de 1967.

Menciono este belo satélite, pois o conheci, dois anos depois, nas belíssimas figurinhas de um álbum sobre astronáutica Você e Pluft Conquistam o Espaço, lançado no efervescente ano de 1969, justamente o ano em que o danado do Costa Silva partiria para o além e o homem chegava à Lua pela primeira vez. Inesquecíveis, achava lindas as ilustrações das figurinhas que vinham de brinde neste infelizmente esquecido chiclete, o Pluft.  

Neste mesmo ano, outro álbum foi lançado, da Disney, o não menos belo História da Conquista do Espaço, brinde do gibi do Mickey, porém, desta vez, a figurinha que trazia a imagem do OSO não era pintura, mas uma foto dele em órbita, mostrando os mecanismos de ejeção em movimento giratório, linda foto, aliás.

No caso do OSO, achava belíssimo aquele painel frontal de células solares, bem como os três braços laterais, na verdade, três mecanismos de ejeção de gazes que permitiam girar e posicionar o satélite no espaço.

Observatório Solar Orbital (OSO-3)
− Mas olha só o jeitão desse painel do Observatório Solar Orbital, Tonholi. Legal, né?

− Parece um radiador de caminhão!

− Podes crer, mas olha essa figurinha aqui, Wenilton.

─ O que tem?

─ É da Soyuz I! linda nave, não é?

─ Sim, linda, mas...

Lembro-me que quando conheci o seu Ângelo, estava meio tristonho, já que no 23 de abril passado o cosmonauta soviético Vladimir Komarov, que era o piloto da citada Soyuz I, morreu quando regressava à Terra, pois o páraqueda, a sete quilômetros de altura, não abriu, embaralhando-se, fazendo com que a cápsula espatifasse no chão.

─ Triste este acidente, hein, Wenilton, muito triste!

*   *   *

Ah, lá me vem o cismado leitor com perguntas: “Mas porque o Wenilton resolveu falar de um satélite à esta altura da história, tema que nada tem a ver com o assunto corrente?!” Oras, amigo, pois não trata o citado dos males da soalheira, digo, dos perigos da exposição solar? E o fiz por dois motivos: um, é que o citado satélite tinha por objetivo justamente estudar a atividade das radiações solares; dois, é que ele, como se viu, foi lançado justamente no mês em que se passa a história; portanto... Não foi um bom gancho, né, leitor, mas, fazer o quê!... 

Seu Vart, me diga uma coisa: aquela perua Decavê lá em baixo é sua?

— Sim, mas a Decavê não é mais de si mesma...

— Como assim.

— Ela acaba de ser comprada pela Volks.

— Verdade?!

— É, Seu Anjo, e o que vai acontecer com ela e com a fábrica ninguém sabe.

─ Será o fim da nossa querida Decavê, seu Vart?

─ Só o tempo dirá...


Latada de chuchus 

Ah, a formosura desse vale banhado de luz às vésperas do Outono!... A terra varrida pelo vento sul, as terras de tijuco, pois próximas ao rio e à mata ribeirinha... A luz solar pintando tudo... as cores... a beleza... as vantagens do ar puro... tudo denotando a salubridade e a fartura desta terra!  Se neste repousante pedaço de terra não existia certas belezas dos artificiais jardins urbanos, em compensação, o olhar se espraiava em volta, abarcando tudo o que era possível, e se deslumbrava com a linha do casario com seus tijolos à vista morro acima, as panículas de sorgo-de-vassoura batidas ondulando ao vento, o arranjo dos canteiros, o contraforte verdejante da mata à sudeste, e... ah, a cabaninha de chuchus!...

Isso é um paraíso, seu Ângelo!

 Obrigado, seu Vart! As terra dessa ribancêra aqui são muito boa, cheia de húmus e minhoca, terra meio preta, terra de baixada: tudo o que planta aqui vai pra a frente: banana, verdura, mio, mandjóca, abóbra, quiabo, cenôra, pipino, chuchu, mamão... Olha, só: por tudo lado é rama-de-batata que não acaba mais — ocê planta uma veiz, e ela não para de crescê — vira selvagem! 

O Weber, ouvindo o homem pronunciar batata, começou a declamar: 


Batatinha quando nasce
Esparrama pelo chão
Menininha quando dorme
Põe a mão no coração...

― Ah, dona Lourdes, num sei se a senhora sabia, mas este versinho é declamado errado pelas criança.

― Nossa, esse eu não sabia, seu Ângelo! E como é o certo?

― Assim:

Batatinha quando nasce
Es-pa-lha ra-ma pelo chão...

― Olha só, quem diria! Realmente, não há como uma batatinha se espalhar pelo chão, né!... Mas, me diga uma coisa seu Ângelo: o senhor cria galinhas também?

― Crio sim, dona Lourdes.

― Vende ovos também?

― Sim.

― É bom saber, porque quando eu precisar, venho aqui. Nossas galinhas e o pombal ficaram lá na cidade, e precisamos ajeitar o galinheiro no fundo do quintal para trazê-los para cá.

― As galinhas minhas são caipira, dona Lourdes, e os ovo bem graúdo. E o preço é bem mais barato que nos mercado tamém.

― É, seu Ângelo, o preço do ovo aumentou muito. Se as galinhas soubessem o quanto a gente sofre com o preço desses ovos!...

― Ih, dona Lourdes, as galinha tão pouco ligano pro aumento. O único aumento que interessa pra elas é o diâmetro do ovo...

― Ah, ah, ah... ― gargalhou meu pai.

*   *   *

Legumes, verduras, flores e frutos e capinzais espalhavam pelo vale uma isosmia estonteante de essências agrestes, ao qual se misturava o cheiro de goiabas maceradas e azedas que surgia com a brisa.

Assim como nós, minha mãe não deixara de notar a simpática cabana do hortelão, isto, mesmo que telhada e emparedada por todos os lados por ramagens verdoengas de chuchus, o que fazia com que ela mal fosse distinguida junto à horta que vicejava nos entornos com os seus profusos talhões de verduras. Porém, pendurado num de seus esteios, via-se uma bilha d’água ─ uma porunga velha, na verdade.

— O senhor que fez aquela cabaninha ali, seu Ângelo? — perguntou minha mãe.
Cabana de ramas de chuchu

— Sim, dona Lourdes, e a senhora viu que ela é coberta c’uma latada de chuchu?

— Latada?! O que é latada, pai?

— Modo de dizer dos antigos, Wenilton. Latada é essa cobertura feita com ramas de chuchu e que cresceram como trepadeiras fechando tudo.

— Ô, Seu Anjo! Que cabana bacana!

— Cabana bacana?! Ah, ah, ah... mas... não há criança que não goste, né, seu Vart: todas as criança que passa aqui, não tem uma que num fique encantada! Então quer dizer que ocê gostô da minha choupana, minino?

— Choupana?

─ Choupana, cabana, tudo mesma coisa, menino... mas choupana é um nome que cai melhor...

Minha mãe disse algo que eu não entendi:

Seria a cabana do Pai Tomás, Walter?

─ Ah, o filme que está passando no Cine Araruna!

─ Dissero que é bão esse filme, né dona Lourdes? ─ perguntou o seu Ângelo.

─ Esse filme aí ainda vai dar novela, seu Ângelo.

*   *   *

Seu Ângelo. Com seu inseparável de chapelão e o grande alfanje sarraceno, tinha até uns indisfarçáveis ares de personagem de filme de terror — era bater os olhos e ver nele a imagem inequívoca. Vale dizer que, até então, eu não conhecia essa ferramenta usada no trabalho de capina — o alfanje —, com aquele seu desenho assustador de instrumento da morte, a lâmina afiadíssima em arco com a extremidade pontiaguda. Metia medo.

E eu, em minha ingenuidade, depois deste dia, sempre que via um, ou via alguém pronunciando a palavra alfanje, imediatamente a memória me remetia à imagem do Seu Anjo — “Seu Anjo” e “alfanje”... eram uma quase-rima...

Bastava passar pela estrada que levava à “colônia de cima”, e lá estava ele: de cá para lá, de lá para cá, sempre andando vagamente por entre os canteiros, com aquela sua figura cinematográfica de personagem de filme B.

Vínhamos da escola no descidão da estrada, e ao passar pela entrada da estradinha que levava à sua plantação, gritávamos:

— Bom dia, Seu Anjo!

Mesmo sem reconhecer-nos, ele acenava ao longe.

*   *   *

O bairro rural conhecido como "Verde", e mapa da extinta Terrafoto, 1978.
Foco perfeito! “Seu Anjo”... apático, não ria — sorria apenas, e, de quando em quando, deixava escapar um ar de mofino, algo como que uma tristeza íntima por algo que não revelava à ninguém, mas...

— Meus fio foram tudo prá cidade, seu Vart... só ficou eu e a patroa aqui... mas tem o Nérso que mora aí no Verde com a famía, e, vira e meche, vem nos visitá... 

Fioravante Daltro e Emília Salmazzo, déc. 30.
Seu Ângelo se referia ao ameno bairro rural então administrado pelo Tonico Corte. Na verdade, este local englobava dois sítios e uma fazenda: os sítios São Roque e São Jorge, às margens da estrada vicinal que levava à Usina Palmeiras e ladeados pelo córrego Arari e a fazenda Verde, que se situava entre estes dois sítios e a fazenda São Vicente, à leste.

Quem ia ou vinha para a cidade nesta velha e centenária estrada, a passagem pelo Verde era inevitável, pois transitava-se ao lado do bairro. 

− Meu bisavô Domenico Dalto e seu filho Fioravante também residiram no Verde na primeira metade do século 20. Não sei se moraram aí desde que vieram para Araras em 1897 como imigrantes da Itália, mas depois que compraram terras no centro de Araras na década de 30 saíram daí.

− Quando moço, eu cheguei a conhecê o seu avô, seu Vart, o Fioravante. O véio gostava duma cana, né?... Quanta veiz eu num vi ele passano na sua carroça, beldo e cantano músicas italianas pelo caminho!

Walter Daltro, por volta de 1940.
− Convivi pouco com ele, e eu era muito menino ainda. Ele faleceu quando eu tinha oito anos, em 1945, com setenta e um anos. Realmente, seu Anjo, ele era um pau d’água!... Meu bisavô, o Domenico, certa vez amarrou ele numa árvore e deixou ele ali até que passasse o porre homérico em que se meteu!...

− Ah, ah, ah!...

− Conhece o Tonico, Vart?

− Sim, conheço.

− Que eu me lembre, ele é dono duma fabrica de farinha de mandioca aí na Santa Escolástica. Gente boa, esse hómi: em 1970 ele doou uma data no Jardim Piratininga pro SAEMA construí um reservatório pra distribuí água pro bairro. 

*   *   *

Seu Ângelo usava roupas conservadoras, jeito antigo de se vestir, mas roupas surradas e desbotadas, das quais, enquanto conversava, ora espancava calmamente a poeira, a terra e as ramas de capins, ora arrancava picões e carrapichos, fazendo-o com as mãos aparentemente frágeis. Digo aparentemente porque, pela idade, os músculos pareciam flácidos, já não respondendo como outrora, mas não: devido ao exercício diário, sua energia de modo algum estava embotada.

— Deve ser cansativo a capina destas terras, hein, Seu Anjo.

—Ihhh, seu Vart, tô mais que acostumado.

Feliz ele em seu recanto com suas discretas companhias: trabalhava entre pequenos bichos do mato, que, mesmo sem se incomodarem com sua silenciosa figura, eles nem sempre se expunham, de modo que ele mal os via, mas, constantemente, eles estavam por ali, às ocultas, perambulando por todos os cantos.

─ Ocê pode num nota, Seu  Vart, mas esses cantêro e esses mato todo aí estão cheio de bichinhos. E eles também pensam que eu num reparo que eles estão por aí, daqui prá lá, de cá prá cá...

─ Reparei sim, Seu Anjo: já vi uns anuns e uma perdiz agora pouco!


A febre do ipê roxo

Ipê Roxo do Grupo Justiniano. Foto de M. Amélia
É tempo de lembrar o leitor que esta singela história se passa exatamente naquela curiosa época em que o ipê roxo estava em alta no país todo, usado a torto e a direito como planta medicinal na cura daquele que é um dos mais temíveis males que assolam a raça humana: o câncer. Do you remember, my brother? Está difícil, não é, amigo, mas não queime tua pestana não poupe seus cálculos que eu lhe fornecerei um breve apanhado sobre a história.

─ Que árvore é esta que o senhor está plantando, seu Ângelo? ─ perguntou minha mãe.

─ Um pau d’arco, dona Lourdes.

─ Pau d’arco?! ? ─ perguntou meu pai.

─ É o ipê roxo, Walter.

─ Ah, sim, ipê roxo: conheço.

─ Belíssima árvore, de linda florada! ─ concluiu minha mãe.

─ Mas quanto tempo ela vai levar para ficar adulta, Seu Anjo?

─ Dexovê... acho que uns 40 anos.

─ Ah, mas até lá eu não vou estar vivo, Seu Anjo!

─ Iiiiih, vamos sentir muito sua falta, seu Vart!...

Minha mãe e meu pai, mesmo envergonhado, riram para valer.

─ Boa essa, Seu Anjo!... Mas é de se admirar uma pessoa que planta uma árvore da qual não sabe se vai poder desfrutar de sua sombra...

― Muito lindo, isso, seu Vart, mas num sei se o senhor já ouviu dizê, que quem planta tâmara não colhe tâmara.

― Não, não ouvi, seu Anjo, mas porquê?

― É que as tâmara leva de 80 a 100 anos para dá os primêro fruto.

― Nooossa!

*   *   *

A mania do ipê roxo começou com uma entrevista concedida à revista O Cruzeiro por Walter Radamés Accorsi, professor de Botânica da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, situada em Piracicaba. Conforme conta o pesquisador, um sonho foi o pontapé inicial do modismo: no Rio de Janeiro, uma moça com câncer sonhou que o ipê-roxo curava a doença. Curiosa, decidiu tomar um chá feito com a casca e sarou.

Um exemplar da revista O Cruzeiro de outubro de 1967 trazia:

"Está cientificamente comprovado que o lapachol, substância abundantemente encontrada no ipê e isolada pelo professor Oswaldo Gonçalves de Lima, tem ação anticâncer já em fase de experimentação pré-clínica nos Estados Unidos, conforme comunicação oficial do Dr. Jonatham Hartwell, pesquisador norte-americano, assistente extraordinário do National Cancer Institute, órgão do governo dos EUA".

No corpo da matéria, o citado Dr. Oswaldo reclamava que a imprensa está distorcendo as suas declarações, e explicava:

"Fui convocado pela Comissão da Câmara, por indicação do deputado Breno da Silveira, para uma exposição dos trabalhos que vimos fazendo sobre antibióticos e câncer... O meu maior cuidado foi em relação ao ipê. Há muito venho trabalhando em substâncias antimicrobianas, sobretudo em relação ao Lapachol e derivados, encontrados abundantemente no Ipê. Cheguei a descobrir que a planta, sob a forma de extrato, apresenta ação antimicrobiana, sendo o Lapachol a substância que mais fortemente apresenta esta forma de reação. Afirmei na exposição que os nossos estudos em relação à atividade anticâncer dos extratos da parte do líber (entrecasca) e do cerne (casca) do ipê revelaram resultados inconclusivos, isto é, inibições em tumores experimentais, resultados inconstantes e marginais, resultados estes que não podem ser cientificamente divulgados".

Por outro lado, o Dr. Jonathan Hartwell fez uma afirmação de que ele, havendo pesquisado espécies de Bignoniaceae, do gênero Tabebuia (o gênero dos ipês), descobriu que os seus extratos tinham ação anticâncer em animais experimentais e que, ademais, havia isolado da planta uma substância ativa anticâncer, o Lapachol.

Walter Accorsi
Outros relatos de cura vieram de Campinas, Americana e Piracicaba. O citado Walter Accorsi afirmou que foi o primeiro a divulgar ao público “as qualidades medicinais do ipê roxo, depois de várias experiências em seres humanos portadores de várias doenças, inclusive câncer e leucemia (...)”. Certa vez, em Itu, resolveu ajudar um amigo cuja esposa estava com câncer. Ela tomou o chá no hospital, onde tinha se submetido a cinco cirurgias. “A mulher, surpreendentemente, dormiu a noite inteira, tanto que, de vez em quando, o médico ia verificar se ela já tinha morrido”, recorda. Para espanto do médico, depois de alguns dias a mulher voltou para casa, curada. À revelia do botânico, o amigo divulgou a cura num jornal paulistano, o que motivou a reportagem da revista e a corrida aos ipês.

A relação das propriedades medicinais divulgadas por Accorsi surpreendia:

"— O ipê roxo — disse — é analgésico, sedativo, descongestionante, cicatrizante, anti-infecioso, hemostático, cardiotônico, diurético, depurativo e tónico. Em vista de todas essas qualidades, é indicado nas seguintes doenças: câncer (interno e externo), leucemia, lúpus, mal de Hodgkins, anemia, gastrite, úlceras gástricas e abdominais, colhe, cistite, prostatite, leucorreia, hemorragia, ulcerações dos intestinos, inflamações dos órgãos genitais da mulher, pólipos dos intestinos e da bexiga, sífilis, reumatismo, diabetes, bronquite, asma, psoríases, impigens, dartrose, eczemas e nervosismo. Aumenta ainda, em tempo mínimo, o teor de glóbulos vermelhos no sangue. Por essa razão é que Von Martius, em 1818 afirmou: ‘As plantas brasileiras não curam, fazem milagres!’"

Cascas de Ipê Roxo
Após ampla divulgação e altos ibopes, a corrida às farmácias se deu em todo o país. No final de março, em São Paulo, uma farmácia do centro recebeu de Itambé, da Bahia ─ onde se dizia haver a melhor qualidade de ipê roxo ─, 2.800 quilos de casca. O produto, moído e embalado custava NCr$ 5,00 o quilo. A demanda do produto foi tanta que a farmácia teve de encomendar mais 40 mil quilos. A mesma farmácia afirmou que, numa campanha numa rede de TV, havia distribuído mil pacotinhos do produto contendo 140 gramas cada. Noutra campanha, foram distribuídos mais 2 mil saquinhos,  todos destinados às famílias de baixa renda. Junto deles vinha um folheto de como usar o produto.


Na onda ipemaníaca, dois livros foram lançados na época: “O Ipê Roxo (Pau D’Arco) ─ A Cura Do Câncer”, compilação da Editora Autoprint, e “A Verdade sobre o Ipê Roxo”, de Jorge Rizzini, e se formos levar em conta o sucesso que alcançou o ipê, ambos devem ter vendido bastante. Houve, porém, gente que se aproveitou da onda de uma maneira inusitada: em São Paulo, nas livrarias, as vitrines exibiam exemplares de “O Tronco do Ipê”, do José de Alencar, com um aviso embaixo: "Últimos exemplares"...

Cita-se que a corrida atrás da "árvore dos milagres" foi tanta que “não sobrou árvore com casca, do Centro-Oeste até o Sul do Brasil”. O mais curioso foi que fazendeiros, e pelo menos uma prefeitura — a de Curitiba —, cederam à pressão popular e decidiram cortar pés de ipê roxo e distribuir pedaços, isso, fazendo-se os devidos replantios de reposição. Em Minas Gerais os guardas florestais ficaram de campana para impedir saques aos ipês de parques e jardins botânicos. Um deles, em entrevista à revista Fatos e Fotos (Nº 326, 20-4-1967), advertiu:

"Por favor, não digam que aqui existe um ipê, porque até amanhã arrombam a cerca e não fica árvore em pé.”
 
Fatos e Fotos Nº 326, 20-4-1967
Nesta época, caminhões carregados de cascas ou pedaços da árvore cruzavam as zonas rurais em direção às capitais de todo o Brasil. Como é de praxe neste País, não demorou para que estelionatários passassem a vender cascas de qualquer árvore como se fosse de ipê-roxo... Foi quando o Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional, órgão da Secretária da Saúde, entrou em ação baixando medidas para que só farmácias e ervanários legalizados comercializassem produtos oriundos da planta, isto, desde que embalados, rotulados, mencionados os fabricantes e responsáveis.
─ Arve boa taí, seu Vart! É boa prum monte de coisa! Um remédjão: as pessoa nem imagina!

Na segunda semana de maio, na Guanabara, o Secretário de Saúde, o sr. Hidelbrando Marinho, proibia a venda de qualquer espécie de ipês em farmácias e drogarias, afirmando que “só é bom mesmo para quem está vendendo”. Os cartazes publicitários também foram recolhidos pelo Serviço Nacional de Medicina e Farmácia. O autor de um dos livros supracitados sobre o tema, o técnico Jorge Rizzini, contestou tal atitude afirmando que o órgão “pretende mais uma vez desvalorizar a flora brasileira.” A mesma matéria dizia que a campanha contra o ipê industrializado “é ilegal e só está sendo feita porque sua venda vem causando prejuízos aos fabricantes das bombas de cobalto, rádios e aparelhos de raio-x, e da morfina.”

─ A sinhora num viu na TV, dona Lourdes: o ipê roxo cura memo o câncer! É um santo remédio!

─ Bom saber! Se algum dia eu precisar!...

Mal sabia minha pobre mãe que, pouco mais de dez anos depois, ela seria diagnosticada com câncer, tratada não com extrato de ipê, mas com aplicações das citadas bombas de cobalto que, em vez de curá-la, minaram com sua saúde! E realmente, eu não me recordo de ela usando esta planta naqueles tempos. E eu me pergunto se a tivesse usado, se estaria entre nós hoje? Quem o dirá?!...


Um tal de H2 O2, ou Peróxido de Hidrogênio

Água oxigenada Bozzano, 1961.
E, como veremos agora, em se falando, a ânsia pela cura à preços módicos , a coisa não se restringiu somente ao ipê roxo: na onda que varreu o país, um medicamento sintético muito comum veio em seu bojo e rendeu um ibope que chegou a galgar alturas mais vertiginosas que a do ipê, sendo até alçado à condição de “panaceia da humanidade”, ou, como se ouvia em São Paulo, "elixir da juventude"!... Me refiro à comuníssima água oxigenada, ou, como diz o subtítulo do capítulo, H2 O2 ou Peróxido de Hidrogênio. Porém, a febre da água oxigenada aconteceu antes, em fevereiro, dando ibope igual ou maior que o Carnaval.

Na verdade, tanto a febre do ipê roxo quanto a da água oxigenada ocorreram quase que simultaneamente, ou seja, no primeiro trimestre de 1967. Já em meados de fevereiro desse ano, o Jornal do Brasil dizia que a moda havia surgido entre os paulistas, que andavam experimentando a seguinte receita: “para cada 5 litros de água pura, 1 gota de água oxigenada, ingerida duas vezes ao dia, ou seja, ao acordar e dormir.” 

Os “adeptos da bossa” diziam que “a pele fica mais macia, a pessoa mais jovem, mais magra, e sente-se mais bem-humorada.” A reportagem finalizava com uma curiosidade: “Ninguém, em S. Paulo, sabe ao certo quem inventou o tratamento. O certo é que todo mundo a ele se submete.” 

─ Eu tive conversano co’o seu Paulo, dona Lourdes, e ele me disse que não é só o ipê que o pessoal tá buscano não. Andam dizeno que o tratamento com água oxigenada tamém é um santo remédio. Vira e mexe aparece um lá para comprá um vidrinho.

─ O seu Paulo é o farmacêutico da Usina?

─ Isso. O filho dele, o Gusto, sempre vem busca verdura pra selada, aqui.

─ Selada?

─ Ah!... salada, dona Lourdes... maneira de dizer... Então, o seu Paulo me disse que lá no ambulatório ele usa ela pra desinfetá infecção e limpá sangue de ferida. Já as muié usa como tintura de cabelo, mas agora o pessoal tá usano pra outras coisas que ninguém imaginava.

─ Verdade? Mas para quê, seu Ângelo?

─ Que eu me lembre, era pra custipação, dor de cabeça, dor de dente e de ouvido, afta, reumatismo... e o seu Paulo ouviu dizê que tem lugar em São Paulo que tá sem estoque de água oxigenada, tanto que vendeu! Falam até que cura câncer tamém, dona Lourdes!

─ Impressionante!

O secretário da Saúde de São Paulo, o Dr. Walter Laser, afirmou que o povo estava servindo de cobaia ao usar água oxigenada indiscriminadamente. Já o Dr. Carlos Cruz Lima, da UFRJ, disse que as qualidades terapêuticas da água oxigenada “não tem qualquer base científica”. Na mesma cidade, os estoques se esgotaram, e comentou-se que a situação chegou à um ponto em que havia barmans fazendo coquetéis com água oxigenada!... 

Em dois dias a novidade chegou ao Rio de Janeiro, e todos comentavam a “grande descoberta”. Na onda, as farmácias vendiam entre 200 e 300 vidros do produto diariamente. Depois que um programa de TV anunciara que “a água oxigenada, em doses diárias, cura varizes, úlceras, restaura as forças e até tira rugas do rosto”, os laboratórios precisaram aumentar a produção porque a procura era tanta que havia filas nas farmácias para se comprar o produto. Em São Paulo, um dos livros mais vendidos pelos camelôs era “A Cura pela Água Oxigenada”, de autoria ignorada. Na onda, outro livro foi lançado, “Envelhecimento Humano – Uma causa, muitos efeitos”, do engenheiro químico Francisco Antunes, formado pela Escola Politécnica da USP, onde dizia que estava provado o efeito no organismo da água oxigenada. O livro fez sucesso: no final de abril computava-se 100 mil exemplares vendidos.


─  ...o estranho, seu Ângelo, é que a água oxigenada existe há tanto tempo, e só agora é que se descobriu que ela serve para tantas outras coisas!

─ Estranho memo, né, doma Lourdes... mas eu acho engraçado esse nome, dona Lourdes: água oxigenada.

─ Estranho porque, seu Ângelo?

─ Se é uma água que tem oxigênio, então acho que ela serve tanto para quem tá com sede como prá quem tá com falta de ar, num é?...

─ Ah, ah, ah...

Por fim, o livro do Francisco Antunes virou um best-seller, e várias edições sucessivas se fizeram necessárias, tal a demanda. No entanto, Antunes foi ironizado pelo General Lúcio Muniz Barreto, ex-assistente de Química da USP e UFRJ, também ex-chefe de Química do Instituto de Biologia do Exército, que afirmou que o “o emprego da água oxigenada no combate a toda sorte de doenças tem muita semelhança com o sonho da juventude eterna dos alquimistas da Idade Média.”... Na mesma reportagem no Jornal da Tarde (23-5-1967), com fortes argumentos baseados em conhecimentos científicos, rechaçou os novos usos da água oxigenada. Dias antes, no mesmo jornal, Hélio Póvoa, chefe da Divisão de Química do Instituto Osvaldo Cruz, afirmava que a água oxigenada “é o mais potente entre cerca de 400 agentes cancerígenos experimentados”.

Como é comum no Brasil, há sempre aqueles espertalhões que gostam de pescar em águas turvas, e, como a demanda era tanta, começou a haver casos de falsificação, no que as entidades sanitárias prometeram localizar e prender todos os falsificadores. 


─ ...sim, dona Lourdes, as pessoa costuma usá a água oxigenada pra outras coisa, e até memo a minha esposa usa prá removê mancha de vinho e sangue das roupa.

─ Bom saber isso, pois o Walter, toda vez que vai fazer a barba, “faz a cara” e enche a toalha de manchas de sangue!...

─ Não exagera, Lourdes!

─ Então qué dizê quiocê usa a navaia prá “fazê a cara”, seu Vart, e não prá fazê a barba?...

─ Não vai na conversa da Lourdes, Seu Anjo!

─ Ih, ih, ih...

O Wagner entra na conversa:

─ Mãe, eu vi numa tirinha da Turma da Mônica uma história em que o Cebolinha passa água oxigenada no cabelo para ficar loiro e...

─ Verdade?! Até nas histórias em quadrinhos isso tá dando ibope?!

─ ...e, então, mãe, o Cebolinha foi se olhar num espelho de mão para ver como tinha ficado o tingimento, e viu que só um dos cinco fios de cabelo que tinha na cabeça foi tingido, e ficou tão loiro que parecia transparente!

─ Ah, ah, essa é boa, Wagner!

─ O engraçado, mãe, é que na hora em que ele tava se olhando no espelho, ia passando um amigo dele e achou que tava faltando um fio na cabeça dele...  E o amigo foi embora triste, achando que o Cebolinha, um menino tão novinho, estava começando a ficar careca...

─ Ah, ah, ah!... bem bolada essa tirinha do Maurício! Esse cara é bom e promete!

─ Me lembrei duma coisa, Dona Lourdes: minha esposa, a Estela, tava quereno clareá os cabelos, e tava pensano em usá água oxigenada, mas eu disse que, ela, mais hora menos hora, ia fica com os cabelo branco de quarqué jeito. Aí ela me perguntô: “Mas se eu ficá de cabelo branco, ocê vai continuá me amando como sempre, querido?”; e eu retruquei: “E ocê já não tingiu os cabelo de tanta cor na juventude, e alguma veiz eu deixei de te amá, muié?!”...

─ Ah, ah, ah... o senhor é muito engraçado, seu Ângelo!

À esta altura, convém esclarecer que a água oxigenada usada com fins medicinais, era a “10 volumes”, enquanto que a para descolorir ou fixar tintura de cabelos, era a de “20 volumes”, mas não é de se descartar que, em se tratando de brasileiros, ambas estavam sendo usadas com os mesmo fins medicinais!... Numa entrevista dada ao Jornal do Brasil em 9 de março, uma vendedora de drogaria por nome Maria Regina, afirmou que havia “excesso de gente procurando por ela. Mas, de qualquer maneira, a mais vendida em nossa drogaria é a de 20 volumes. Essa eu sei que serve para clarear cabelos.“

Por fim, numa reportagem publicada no mesmo jornal meses depois, em 20 de julho, reportagem esta que listava experiências científicas feitas com ambos os produtos, se lia o título:

 “Ministro da Saúde diz que água oxigenada provoca câncer e ipê não o cura”...


*   *   *

─ O senhor goza de ótima saúde, seu Anjo! Espero vê-lo comemorar seus 80 anos!

─ Mas eu estou fazendo 80 anos hoje, Seu Paulo!

─ Eu não te disse!...

─ É brincadeira, seu Paulo...  Eu ainda tenho 76 anos...

─ Falta pouco, então!

*   *   *

─ O show do Chico Anísio lá no Clube Ararense dizem que foi de arrebentar, Walter. Ironizou a tudo e a todos, e nem a febre do ipê roxo e da água oxigenada escaparam.

─ Olha só!

─ Dizem que ele até falou: “Se aquela 8ª maravilha que é Zé Arigó não acredita nessas macumbas, quem sou eu para acreditar? Mas dizem que a maior ironia dele foi com o próprio clube.

─ Por quê?

─ Ele não acreditou em ver os jovens ainda usando paletó e gravata obrigatoriamente...

─ Até para assistir cinema nesta cidade temos de ir vestidos assim!...

─ O mais engraçado é que ele próprio estava de terno e gravata borboleta! E mais, o clube, depois do show, fez uma brincadeira dançante!

─ E que mal há nisso, Lourdes?

─ Brincadeira dançante em plena Quaresma, Walter!...


A comporta

Wenilton e Wagner, na comporta do tanque do meio, 1975
Mas, deixemos as panaceias para lá, e voltemos nossa atenção a outro assunto interessante, a comporta do "tanque do meio".

Era evidente que o mundo em que passávamos a viver era mais rico do que o que deixamos na cidade, pelo menos no que dizia respeito à natureza — e o humilde Seu Anjo, sem o perceber, nos dava algumas prova disso:  

— Já levou as criança para pescar ali ao lado da comporta, no pesqueiro debaixo do bambuzal, seu Vart?

— Ainda não, Seu Anjo? É pesqueiro bom?

— Pega bastante lambarizinho.

— Mas lambari é peixe muito pequeno, Seu Anjo: peixico de pouca carne.

— Lembra de uma coisa, seu Vart: o lambari é pequeno pra a gente, mas pr’as criança ele é enorme, quase maior que a mãozinha deles.

— Realmente, Seu Anjo... nunca tinha pensado nisso!... Mas, e o senhor, tem pescado ali ultimamente?

Outro dia eu fui pescá com minha sogra, se Vart, mas não deu muito certo, não.... Da próxima vez eu vou pescá com minhoca...

 Ah, ah, ah... mas quantos anos sua sogra tem, Seu Anjo?

 Ihhhhh...

*   *   *

Cartaz do filme de 1967
Abaixo das plantações do velho horticultor, nas baixadas mais úmidas próximas à mina d’água, havia muito mato e era neste lugar, a partir de finais de julho, que indo ou vindo do cinema à noite, ouvíamos o coro de sapos que aí cantavam assoviando e que gostávamos de imitar.

─ Dona Lourdes, a sinhora passa de noite aí na estrada e é uma sapaiada só assubiano no meio da escuridão, que até assusta! Parece um monte de gente atentano a gente!

─ E vai que aparece aí no cinema da Usina o novo filme do Zé do Caixão, o “Esta noite encarnarei no teu cadáver”! Quem assistir, vai sair bem medroso do cinema, né, seu Ângelo?!

─ Aí é que a criançada não passa memo por aqui, dona Lourdes!...

Me pai desabafou:

Cartaz do filme
Zé do Caixão!... Deus me livre! Prefiro ver esse filme novo do tal de Django.

─ E eu prefiro assistir à esse filme novo da Leila Diniz e o Paulo José: “Todas as mulheres do mundo” ─   acrescentou minha mãe. 

― Iiih, taí: cinema ― coisa que raramente vou.

  ─ É serio, seu Anjo?! 

Verdade! Oceis acredita? Eu sou gente das antiga. Eu malemá assisto tevelisão... Esse radinho que eu tenho aí na casinha de chuchu me basta.

─ Televisão ainda é novidade, mas cinema e rádio são bem antigos, seu Ângelo.

Mal sabia minha mãe que, dois anos depois, ela ia execrar a Leila... 


― Mãe, olha no rádio aquela música que a senhora gosta!

Todo mundo diz que você faz o que bem quer,
Mas a mim só interessa mesmo o que você disser.
E mesmo que você disser que não gosta de mim.
Meu bem ainda respondo que eu te amo mesmo assim.

É do tal de Queijinho de Minas.

― “Queijinho de Minas”, dona Lourdes?! ― repetiu o seu Ângelo encafifado.


― É o apelido que o Roberto Carlos deu para essa cantorinha nova, a Martinha...


 A cachoeirinha 

Corredeira após a cachoeira da comporta do "tanque do meio". 19-1-1975
─ Orquídea é bonita, dona Lourdes, mas os gravatá são mais bunito ainda.

─ Porque o senhor diz isto?

─ Os gravatás tem partes mais bunita neles, e dura mais e dão menos problema pra cultivá, mas pouca gente sabe disso.

─ Quem diria!

─ Aí embaixo, nessa matinha disposs da cachoeira da comporta tem gravatá aí, aquela pranta que dá aquele fruto amarelo, e que é medicinal.

─ Sim, Seu Anjo, eu conheço o gravatá. Minha mãe fazia xarope  curar doenças respiratórias, como tosse e bronquite.

— Isso memo, dona Lourdes! Mas, seu Vart, venha um dia aqui e traiz os minino para conhecê essa cachoeirinha ali em baixo.

— Trago sim.

— É pequenininha de nada, mas um lugarzinho bonito e as crianças vão adorá, tenho certeza — é um lugar gostoso, sossegado, com muitas arve e sombra. Tem as pedras da cachoeira, tem pés de sangra d’água, contas-de-santa-bárba, contas-de-rosário, amora-silvestre e até manga rosa, mas, esta, a época de fruta já passou. O córguinho, após duas ou três curvas, segue uma reta no meio do capim gordura e vai se espreguiçá lá nas baixada do “tanque de baixo”. 

— Tem amora lá ainda, Seu Anjo? 

Caranguejo-de-água-doce (Trichodactylus sp.)
— Eu acho que não, mas essa amora aí é meio sem graça, meio seca. A de arve é bem mais gostosa. Na verdade, seu Vart, num é bem uma amora, mas uma espécie de groselha.

— Groselha?! Olha só!... E é lugar bom prá pesca lambari ali em baixo, Seu Anjo?

— Num sei, seu Vart, mas andaro encontrano um caranguejinho marrom ali no córrego depois da cachoeirinha, mas num sei se é bão pra comê.

— Nossa, caranguejo de água doce! Eu nem sabia que existia isso!

— Procê ver...

*   *   *

Mas eu tinha qualquer coisa para falar que já não lembro... ah, a Páscoa seria no final de semana e, coincidentemente, o seu Ângelo falou de alguns animais que se via ali, zanzando” por entre as plantações com certa frequência:

─ E as pragas aqui, Seu Anjo? Elas tem visitado sua horta?

─ Vem, mais eu controlo c’um remedinho casêro, como calda bordalesa, solução de água e sabão, chá de fumo ou um maceradinho de alho, e basta, seu Vart.

─ Bom, mas e animais selvagens não frequentam aqui?

─ Vem uns coelho-do-mato e preás de vez em quando, mas eles num faz estrago, não. De veiz em quando eu vejo uma perdiz passano aí por entre as moitas.

─ Nós vimos ela agora há pouco ali em baixo!

Tem tamém um bando de anu-branco que, vira e mexe, vem batê-campo aqui ─ ele vão andano que nem uma comitiva de frente de carnaval e vão comendo tudo quanto é bichinho que encontra pela frente. 

─ Olha só a coincidência: nós também vimos eles pousados num fio lá embaixo! 

― O senhor não caça aqui, Seu Anjo?

― Não, num caço, não, seu Vart. Já cacei, mas hoje minha pica-pau tá lá esquecida num esteio do rancho. Eu devia era caçá os rato que tem por aqui, mas os prejuízo que eles faiz num é nada. Dêxa os bichinho queito reinano por aí...

─ O coelho que o senhor falou é coelho de ovo de páscoa, Seu Anjo ─ perguntou o ingênuo Weber.

─ Acho que é, né, seu Vart...

─ Final de semana agora eu venho aqui buscar uns ovos de páscoa desses coelhinhos aqui, né, seu Ângelo?... ─ disse minha mãe, piscando para o seu Ângelo...
Porquinho-da- índia ou Preá (Cavia porcellus)

─ Vem sim, dona Lourdes.

─ Obaaaaa!

─ Mas, ô, dona Lourdes, me diga uma coisa: a senhora sabe como se faz omelete cum ovo de páscoa?

─ Omelete com ovo de páscoa! Nossa, eu nunca vi isso! Mas como é que se faz, seu Ângelo, ensina aí.

─ A senhora pega o ovo de páscoa e quebra ele dentro de uma frigideira...

*   *   *

Mas, continuemos em nossa ronda pelos instigantes caminhos do passado.

E o antigo dono daquele mundo de terras era de um temperamento calmo à toda prova, e quiçá os donos da Usina não se sentiam solidários com ele, cada vez que, passando por ali, viam-no à sós a capinar o seu outrora pequeno pedaço de chão que agora lhe cediam. Chego a pensar até que talvez não conseguissem descobrir em que residia a nobreza de sua tarefa, mas, com certeza, davam silenciosamente seu apoio, sua atenção e sua estima. Imagino até que muitos dos que passavam por ali admiravam discretamente o seu trabalho, encarando tudo aquilo como se ele estivesse cumprindo uma nobre missão, o gesto bendito de depositar sementes na terra...

Ainda o vejo, com os olhos da memória, sempre com seu alongado instrumento a capinar os matos que cresciam na encosta abaixo da colônia de cima. 

Hoje, mesmo passados 45 anos, sua voz nunca me saiu da cabeça: uma voz rouca, baixa e vacilante... “coisas da idade”...

— Ru-rummm... Está meio frio e ventano um pouco, né, seu Vart, mas o tempo não vai mudá não; eu acho.

O homem pediu licença, adentrou o ranchinho de chuchus e voltou com algumas frutas na mão, e distribuiu para nós crianças.

― Toma, meninada! É goiaba!

― É época agora? ― perguntou meu pai.

― Tá acabano a temporada, seu Vart, pois dia 19 de março último foi o dia da enchente das goiaba. Essas aí são temporona.

― Enchente das goiabas? ― exclamou minha mãe.

― Sim, dona Lourdes: quando cai as última chuva de março, acontece isso: é dia que chove pra daná, venta bastante e não fica uma fruta no pé. As goiaba cai no chão e a enxurrada carreia elas pro rio. Uma beleza de se vê, e uma alegria prá peixada! Mas tamém é uma água preta que escorre que, Deus me livre! As goiaba podre se desfaiz no chão e vira uma pasta preta, e se bobiá, ocê pisa ali e leva o maior tombão!

― Interessante!

Propaganda publicada no gibi
Tio Patinhas Nº 27- Out. 1967.
― Ela acontece no dia de São José, antes da entrada do Outono. A coisa é assim memo, dona Lourdes: as chuva de verão só termina na enchente das goiaba, mais esse dia 19 de março não é muito certo não, pois ela pode acontece em quarqué dia da segunda metade do mês. Os nordestino planta o milho nesse dia, mas aqui é diferente e a gente planta um mês dispoi.

─ Mãe, tá gostosa essa goiaba, mas eu queria mesmo era comer aquele chocolate Galak que tem fruta cristalizada. Vamos lá na venda depois comprar, mãe, vamos?!

─ Você só pensa em comer doce, Wenilton! Chega! Parece que tem lombriga! 

― Quando forem lá, por favor, comprem uma paçoquinha Amor para mim.

― Nossa, Walter eu não sabia que você gostava de paçoquinha Amor?

― Sim, e gosto de amor sem paçoquinha também...

― Engraçadinho!

─ Posso pegar mais uma goiaba, seu Anjo?

─ Claro que pode, menino.

Qual é a palavrinha mágica que se fala, Waltinho?

─ Tem mais, seu Anjo.

─ Há, há, há!... Tem sim, meu fio.

─ Não foi assim que eu te eduquei, Waltinho!

─ Daqui há pouco você vai ficar que nem o “Goiabão” do Eduardo Araújo, Waltinho!... Essa é a quarta goiaba que você come! ─ ironizou meu pai.

─ Não diga isso, Walter! Isso diminui o menino! Incentive-o! Diga que ele vai ficar que nem “O bom” do... Eduardo Araújo!...

 O seu Ângelo resolveu intervir:

─ Num seria mió o “Tremendão” do Erasmo Carlos, dona Lourdes?

─ Ah, ah, ah...

─ Outro dia, tinha dois menino brigano por causa de goiaba ali perto do bambuzal, e eu tive de ir lá apartá, só que era um meninão contra um menininho! Daí eu falei: "Ô, menino, ocê num tem vergonha não de batê num menino bem menor quiocê, seu covarde?!"

─ Nooossa, e o que ele respondeu, Seu Anjo?

– Veja só: "E o senhor queria o quê? Que eu ficasse esperano ele crescê?"

─ Ih, ih, ih... essa molecada não tem mais jeito, seu Ângelo!

─ As criança mudaro muito urtimamente! Naqueles bons tempos, seu Vart, elas era capaiz de citar dezenas de nomes de parentes, e mesmo parente distante que pouco viam. Hoje, nenhuma criança tem muita intimidade com um tio-avô, um primo-segundo, e até mesmo com o padrinho e a madrinha, que naquela época era quase como um segundo pai e uma segunda mãe.

─ Inclusive, beijavam a mão quando os encontrava!

─ Verdade, Wart: hoje em dia ninguém mais dá bença!


*   *   *

─ ...esse ano está bom para plantá, seu Vart. O ano passado choveu bem, e este ano está no mesmo pique.

─ Pois eu acho que começou mal, Seu Anjo...

─ Porquê, Seu Vart?

─ Não viu a chuvarada que caiu no Rio de Janeiro no começo do ano que matou mais de 700 pessoas?

─ É memo!

─ E essa agora em Caraguatatuba, ontem mesmo, que matou uns 400!

─ Essa eu não vi na tevê!... Pelo jeito, eu acho que o ano que vem vai dá uma grande seca.

─ Não precisa ser tão seco, mas também nem tanta chuva.


“Estas terras eram minhas”

A Usina Palmeiras em construção em 1945
Ouvi de um dos Salmazzo, certa vez, que as terras em que se assentava a Usina pertenceram ao Seu Ângelo, e foram adquiridas por um consórcio de cinco acionistas.

— Essas terra tudo aí, seu Vart, eu herdei do meu pai, e depois vendi pro grupo formado pelos Baggio da fazenda Parmêra, mais os Delamain, Coimbra, Andrade, Graziano e Gagliardi, isto prá eles construí essa Usina bonita que o senhor tá veno aí. Isso foi lá pelo final da década de 40. Tudo pessoa boa e honesta, essa gente!

Não se sabe se, monetariamente falando, fez bom negócio, mas deve ter dividido o montante com os filhos.

— Fizera bom negócio vendendo estas terras, seu Anjo?

— Na época fiz sim, seu Vart... mas... gostaria que, pelo menos este pedacinho de chão fosse meu, né... 

Dito isto, instintivamente, ele baixou a cabeça, escondendo um sentimento negativo qualquer. O curioso é que morava numa das casas simples e pequenas da “colônia de baixo”, no que se notava talvez uma negação completa de luxo e ambição.

O Weber, curioso, remexia numa caixa de verduras.

Mas, me diga uma coisa, seu Vart, e me corrija se eu estivé errado: se não me engano, foi seu pai e seus tio que erguero os prédios da Usina, num foi?

— Sim, seu Anjo, há 21 anos atrás. O três tinham uma construtora em sociedade, e ergueram também os prédios das usinas São João e da Santa Lúcia.

— Que ótimo construtor que eles era! Basta dá uma olhada nas chaminés prá vê a obra-prima que eles construíro. Aquilo não é obra pr’um pedreirinho quarqué, né, seu Vart?

Banco de granito ao lado do coreto da praça Barão, de 1955
— Sem dúvida, Seu Anjo.

— Não precisa nem dizê que eles fizero um bom negócio, né, seu Vart.

— Sim, e meu pai, o Davi, com os lucros, compraram umas boas datas de terra lá no centro da cidade, nas terras da fazenda São Joaquim — terras onde cabiam um bairro dentro!

O Weber interrompe o diálogo:

― E essa verdura aqui, Seu Anjo, o quê é?

― Couve-flor.

― E porquê aquelas couves do outro canteiro estão sem flor?

― Lá é repolho, menino!

― Ah, ah, ah...

― Alguém já disse, Walter, que couve-flor é um repolho com grau universitário... ― acrescentou minha mãe, ainda rindo do Weber.



As terras da Usina Palmeiras: antigo reduto
dos primeiros escravos libertos na cidade

Muitas décadas antes do seu Angelo, temos notícia de um outro proprietário destas terras, um fazendeiro, o sr. João Soares do Amaral, então genro do Barão de Arari, isto pouco antes da data da abolição da escravatura em Araras, o que se deu em 8 de abril de 1888, mas temos notícia dele ainda em 1902 num mapa da cidade mostrando a localização de sua fazenda e o casario, que era a fazenda Palmeiras ― ainda existente e gênese da própria Usina Palmeiras ―, e também proprietário da fazenda Santa Maria, à nordeste da primeira, fazenda aliás onde moraram meus bisavós maternos e seus filhos. O Almanak Laemmert - 1905  cita o senhor João Soares do Amaral, de Jaboticabal, como “fazendeiro de café” da localidade Barrinha, e é muito provável que se trate da mesma pessoa.

É possível que, após a morte de Amaral ou mesmo por ocasião de novas retalhações de terras da fazenda Montévideu, o seu Angelo tenha adquirido as terras à Leste e Sudeste da fazenda Palmeiras, ou seja, as mesmas que deram origem à Usina Palmeiras.

Aliás, há três fatos curiosos na vida de João Soares do Amaral: foi um dos sócios comandatários de uma das principais casas comissárias paulistas nas décadas de 1870 e 1880, a firma J. F. Lacerda & Cia., situada em Santos, atuando na compra e venda de café. Amaral foi também um dos acionistas da empresa que deu origem à Nestlé (1920), a Companhia Leiteira Ararense, fundada em 1909 pelo empreendedor Louiz Nougués, e, por fim, este: em 6 de fevereiro de 1956, o jornal Semanário de Araras entrevistou um cidadão ararense de 89 anos de idade, que havia presenciado a abolição da escravatura em Araras, o senhor João Antonio Eliseu, nascido nos distante 25 de janeiro de 1875. Disse ele:

“– Recordo-me que naquele dia, o genro do Barão de Arari, sr. João Soares do Amaral, chamou os escravos e lhes disse: – De hoje em diante vocês não são mais escravos, vocês estão livres. Mas aqueles que quiserem continuar a trabalhar na fazenda podem ficar, e quem não quiser pode ir embora.”

Assim posto, podemos cogitar que houve entre os moradores da fazenda e da Usina Palmeiras famílias de negros descendentes destes primeiros escravos libertos em 1888.


A horta

Seu Ângelo... em o vendo, parecia irradiar uma vontade inabalável de assim viver mantendo sempre acesa a chama pela terra que amava, com aquele jeito manso de viver e que não deveria acabar nunca, entregue ao trato diária da terra, à prazerosa lida com suas estimadas plantas. Por anos a fio cuidara com carinho e dedicação deste sagrado pedacinho de terra, fazendo do trabalho cotidiano como que uma prece contínua.

Muito antes de os galos anunciarem o incêndio do Sol atrás dos sítios do Marião e do Narciso, lá estava o Seu Ângelo em seu elemento. Em o vendo, parecia irradiar uma vontade inabalável de assim sempre acesa a chama pela terra que amava, com aquele jeito manso de viver e que não deveria acabar nunca, entregue ao trato diária da terra, à prazerosa lida com suas estimadas plantas. Por anos a fio cuidara com carinho e dedicação deste sagrado pedacinho de terra, fazendo do trabalho cotidiano como que uma prece contínua.

Em foto minha, vista panorâmica da "colônia de cima". Ao centro, acima da estrada, a antiga horta do seu Ângelo. 19-1-1975

Do modo como trabalhava — sozinho, econômico nos gestos, imerso em silêncio —, devia fazer um serviço meticuloso e bem feito, com aquele carinho especial que os italianos (sua descendência) tem pelos vegetais — mas tem mesmo? —; pois, se não tem, o seu Anjo tinha de sobra — pelo menos era isso o que deixava transparecer.

Era sempre assim: naquela vida solitária em meio às hortas e plantações, movia-se entre os canteiros e aceiros, lentamente, com seu ar espectral de personagem de filme de mistério, empunhando seu velho alfanje. Ainda que trabalhasse entre agruras e durezas, não parecia estar abatido pelo cansaço dos anos nem dolorido por um reumatismo qualquer.

Naquelas manhãs de Outono, um vento já com um pouco da frigidez invernal cortava as plantações, mas seu trabalho era como um rito de esperança que talvez permitia-lhe — como já disse — pular as agruras do Inverno e ir direto para as benesses da Primavera.

— Parece que vai chover, Seu Anjo.

— Ih, seu Vart, se eu fosse ficá prestano atenção no tempo com todas as mudança que acontece, eu nem plantava mais. Com sol ou chuva, com calor ou frio, com vento ou ar parado, eu venho aqui e faço o que tenho de fazê, e o resultado é esse aí que o senhor tá veno.

— Isso aqui está tudo muito bonito e viçoso, Seu Anjo! 

─ Mas, no começo, seu Vart, num foi nada fácil prepará essa terra! Era pedra e pedaço de pau prá tudo quanto é lado, um monte de porcaria que num acabava mais!

─ Era quem essa música nova do Tom Jobim que está fazendo sucesso aí? ─ acrescentou minha mãe.

─ Que música, dona Lourdes?

Ela cantarolou a abertura da belíssima canção outonal:


“É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol...”

─ Sim, sim, dona Lourdes, é bem por aí: e também tinha toco e caco de vidro prá daná!

─ Há, há, há!...

E a conversa rolou para assuntos diversos.


*   *   *

Súbito, começou a rolar no rádio do seu Ângelo a canção “See you in september”, da banda The Happenings, e o velho horticultor, como que a compartilhar à toa uma imagem feito quem divide na escola um pedaço de sua merenda, disse entusiasmado:




Os suportes dos antigos "sprays", no "tanque de baixo" da Usina, 
local onde se reuniam as garças que caçavam peixes mortos.1983.
─ Veja, criançada: as garça branca indo pr'o tanque de baixo!

─ Olha, mãe, quantas garças! 

Um bando de cerca de vinte pequenas garcinhas passavam já mergulhando em direção aos baixios do tanque que ficava logo adiante.

─ Elas vão ali pescá os peixe que morrero e que boia na água que o restilo envenenô.

─ Mas elas não morrem comendo peixe envenenado, Seu Anjo? ─ indagou meu pai.

─ Vai saber, seu Vart... Alá, olha que engraçado agora, seu Vart: passou um bando de garça branca, e, olha agora vino lá da estrada um bandão de chupim preto!

― Grande mesmo, hein.

― Agora em março e abril eles aparece em bando. Desce aí nos capinzal e vem comê bichinho do mato. O bonito é que eles fica revoano o tempo todo, de cá prá, de lá prá cá, e faiz uma cantoria danada.


*   *   *

O solo onde vicejava aquela horta, podia-se adivinhar: aerado ao extremo, cheio de buraquinhos que permitiam a entrada de ar e umidade, tudo na medida certa sem encharcá-la. Aquele solo misto de barro, areia e cascalho fino, cheio de detritos vegetais em decomposição ─ excelente alimento para as minhocas. E ali, às ocultas, viviam legiões delas, como minúsculos processadores desse material, triturando tudo até se transformar numa pasta, e só se dava conta de sua existência, alguém como o próprio Seu Anjo, que apontando para uma curiosas espirais de terra aflorando à grama, dizia:

─ Está vendo, menino, esses montinho de terra brilhante aqui, tudo em gominhos?

─ Sim, Seu Anjo! O que é?

─ É coco de minhoca...

─ Nooossa! É memo?!

─ Mas é justamente isso que deixa a terra boa prá plantá. Sabia que as minhocas são tudo banguela?

─ Também não.

─ Os grãos de terra que elas engole junto com as folha que elas come serve de dente e ajuda elas a mastigá seu alimento.

─ Nooossa!

─ Aqui embaixo da gente, onde a gente pisa, essas minhocas fizero um monte de túnel fininho como elas, mas que deixa a terra bem arejada.

─ A terra deve ser boa mesmo! Olha que beleza esses pé de mandioca, hein, Seu Anjo!

─ Sim, quando a gente planta na lua certa eles vingam mesmo!

─ E qual a melhor lua para se plantar mandioca?

─ A lua de mel...

Meu pai e o Seu Anjo riram a valer; nós crianças também, mas sem entender porque riam.


A cabana do Pai Tomás...

Não deixava de ser uma cabaninha. Era feita de quatro mourões de eucalipto e encimada e ladeada por fios de arame esticados de lado a lado, onde o horticultor deixara crescer propositalmente várias ramadas de chuchus, que acabaram por envolvê-la completamente, ficando dotada de teto e paredes fechadas por uma cortina verde. Era linda! Está certo, não era uma cabaninha como a que Thoureau construiu isolada no meio de uma floresta nas imediações do lago Walden, belíssima cabana de madeira por sinal, mas a do seu Ângelo passava a mesma impressão de lugar discreto e acolhedor, lugar para se isolar e esquecer do mundo.

— Pai, vou entrar lá no ranchinho. Quero ver por dentro.

— Eu também!

Contas-de-rosário (Coix lacryma-jobi)
— Pode ir, meninada! Pode vir aqui sempre que quisé.

— Obaaaa!

— Se oceis quisé tomá água, há uma moringa com um copo pendurada num prego do mourão.

— Eu quero um gole d’água sim, Seu Anjo.

— Oh, seu Vart: vai ali é bebe sim! É água da mina que tem ali em baixo: água boa e fresquinha!

— Hummm, água de mina!

A nascente fica ali em baixo, depois da bomba d’água, perto da comporta num barranquinho de piçarra branca. É uma beleza! Não seca nunca!

— Aonde fica, seu Ângelo? — perguntou minha mãe.

— Está veno aquelas samambaia e tocêira de conta-de-rosário ali em baixo, dona Lourdes?

— Sim.

Amora-Silvestre (Rubus procerus)
─ Fica ali.

— Eu quero ir lá conhecer, depois, mãe! — disse o Waltinho.

— Depois, na volta, nós vamos lá.

— Olha, pai, que coqueirão! — exclamou o Wagner.

— É um pé de macaúba, seu Vart.

— Sim, é macaúba mesmo. Eu conheço.

Sem deixar de falar, o velho agachou-se, ergueu uma das barras da calça e se pôs a coçar o canela da perna lisa e sem pelo algum, canela branca que nem vela, e toda riscada aqui e ali de veiazinhas azuis.

— Tem um menininho, de uns quatro anos — um dos fio do Mindú —, que toda veiz que vem aqui ele tenta subi no pé! E olha que o tronco é cheio de espinho!

— Filho do Mindú estivador? Só podia ser filho dele: homem danado de forte! Muito gente boa, esse homem! 

Espatódea (Spathodea campanulata)
E aquela árvore ali, seu Anjo, com aquelas flores vistosas de cor laranja?

― Ah, belas flor mesmo, seu Vart! Aquilo eu conheço como mijo-de-macaco...

― Mijo-de-macaco! ―
interrompeu meu pai. Porquê esse nome?

― Quando eu era criança, eu pegava aqueles tubinho ― que é a flor que num abriu ainda ―, cortava o biquinho dele e espirrava nos meus amigo a aguinha que tinha dentro.

―  Pega um mijo-de-macaco pra mim, pai, pega! gritou o Weber.

― Já vou pegar, espera.

Mas essa flor aí, o que ela tem de bonita, ela tem de perigosa, e ela é um veneno pros beija-flor, podendo até mata!

Beija-flor Tesoura (Eupetomena macroura)
― Olha um beija-flor alí, seu Anjo! ― gritei. 

Era um beija-flor Tesourão que se sentou num dos fios de arames que cercavam um canteiro, e ficou se banhando no spray da mangueira que banhava as verduras.

― Eles vem toma banho aí prá tirá do corpo o nectar das flor que gruda nas pena.

― Olha que engraçado, pai: ele fica girando para lá e para cá com a asa aberta!

*   *   *

Eu particularmente, fiquei apaixonado por aquela construção, que hoje alguém diria ser algo como uma construção avant-ecológica. E tanto me marcou este ranchinho, que toda vez que penso em construir uma cabana para uma criança qualquer, é em sua lembrança que, primeiramente, coloco meu pensamento.

E, realmente, nada havia de mais gracioso naquele recanto da Usina que aquele ranchinho verde coroando a encosta com o toque luxuoso de sua singela poesia arquitetônica  mais lindo, só mesmo um gazebo. Um lugar incrível para uma criança brincar, embora nunca tenhamos brincado nele; estranha e incompreensivelmente, sequer fizemos cabana igual em nossos tempos de Usina  com certeza, mais por descuido que por dificuldades, já que era algo de tão simples confecção.

Súbito, vindo lá da mata, uma ave pareceu gargalhar.

― Ouça que canto bonito, seu Anjo!

― Esse aí é um avezinha de nada, com o corpo todo rajado. A gente chama ela de choquinha. Ave muito bonita, e ave muito bonita não presta matá.

― Não conheço. Acho que lá na cidade ela não existe. 


Uns oito anos depois, eu fui conhecer esta bela avezinha lá nas matas do tanque de baixo, um macho que foi morto pelo Italiano com sua espingarda pica-pau. Poucos anos depois, ele faleceria no tanque de cima, onde, num acidente, caiu com seu Fusca!...

A choquinha cantou novamente.

― Não parece aquele canto de passarinho que a gente ouve no filme do Tarzan, pai? ― acrescentei.

― É, lembra um pouco.

― Bonito memo, seu Vart, é ouvi aí na mata o Tiê-sangue pouco antes do Sol nascê. Ô, coisa linda! 
Ô, coisa linda! Dispoi vem as saracura Treis-pote, que fazem uma cantoria escandalosa que só veno!





*    *    *

Quando estivemos aí pela primeira vez, éramos menininhos ainda, e nossa irmã Luciana estava prestes a nascer. Não devia ser fácil, para minha mãe, grávida, prestes a dar a luz, cuidar de quatro meninos irrequietos. Contratar uma empregada era a solução para esse impasse.

— Seu Ângelo, a conversa está boa, mas vamos seguindo, pois vamos visitar os Salmazzo ali em cima, pois disseram que uma das filhas dele se ofereceu para trabalhar de empregada para a gente.


À esquerda, Ângela Salmazzo, em dia de
catecismo. Meados da década de 1960.
— Ah, é a minha xará, dona Lourdes!

— Xará?

— Sim. É Ângela o nome dela, mas a gente chama ela de Nega.

— Nega? Ela é mulata? ─ perguntou meu pai.

— Não, não, seu Vart. Ela é loirinha que nem esses sorgo-de-vassoura aí! Esse é um apelido carinhoso que dero prá ela.

— Engraçado... — desabafou minha mãe.

— A sinhora vai gostá dela, Dona Lourdes: um anjo de menina! 

Alguém aí talvez cogitasse se, como “o velho da horta” do Gil Vicente, o Seu Anjo era apaixonado por alguma mocinha cliente sua... Não, não amigos ─ sem devaneios descabidos: o nosso bom velhinho era casado ─ e bem casado ─, e, na verdade, um homem à sua idade, inda que fosse viúvo, já não tinha disposição nem vitalidade para correr atrás de rabos-de-saia... Um amor platônico, vá lá, mas não, pois, certamente, o fogo das paixões há muito se encontrava apagado ─ sequer fumegava ali uma mera piúca... 

─ Mas a sinhora qué aproveitá e levá uns chuchu e abacate prá casa?

— Ô, quero sim, seu Ângelo.

— Pega dentro d'um jacá ali na casinha de chuchus.

— Nossa, que abacate diferente.

— Eu apanhei num pé que tem aí drento dessa mata aí adiante do pé de macaúba. É um abacate diferente, meio amargo, mas dá prá fazê  um sorvete muito gostoso com ele, juntano leite e açúca.

— Hummm... vou fazer prá criançada.

— E o chuchu, Seu Anjo, é prá fazer sorvete também? — perguntou o Weber, da altura de sua inocência...

— Sorvete de chuchu?! — exclamou nossa mãe, e todos caíram na gargalhada...

O seu Ângelo, rindo, acrescentou:

— Quem sabe um picolé de chuchu!... mas é muito sem gosto, né, dona Lourdes!...

Gargalhadas gerais ecoaram pelo milharal...

Ramas de batata doce, Usina Palmeiras, 19-9-2008


— Ah, dona Lourdes, aproveita e leva um pouco de batata, batata-de-rama, tamém porque está perdeno de tanta que tem!

─ Pai, o que é aquilo? Um bonecão?

─ Não, Weber, é um espantalho.

─ Espantalho?!

─ Sim. É é um boneco usado para espantar os passarinhos que vem roubar milho.

─ Legal!

─ Caprichou no espantalho, hein, Seu Anjo!

─ Foi minha esposa, a Estela que fez.

─ E ele está espantando mesmo a passarinhada?

─ Ô, se está, seu Vart! Depois que eu coloquei ele aí, o susto que ele deu na passarinhada foi tão grande que eles trouxero de vorta todas as semente de milho que tinham roubado uma semana antes!...

─ Ah, ah, ah... Êta, fumico forte, Seu Anjo! Essa mentira, nem o pescador Civilico tem melhor! Mas, seu Anjo, não seria melhor colocar uma cerca aí?

Fica muito caro, seu Vart... mas eu estou pensando em cruzá minhoca cum porco espinho.

─ Cruzar minhoca com porco espinho?! Como assim?

─ Sim, pra consegui arame farpado!...

Ah, ah, ah...

─ Ué, mas o Civilico num cruzava abeia cum vaga-lume pras bichinha podê  trabaiá de noite?!...

─ Ah, ah, ah!...

─ O negócio é esse, seu Vart: dá risada e ser feliz!

Súbito, no rádio do seu Ângelo, uma nova música de sucesso começa a rolar: "Georgy Girl", com The Sekkers!


Surpreendentemente, parece que o velho gostava de música jovem, daquela animação toda surgida com os Beatles ─ nada mais contradizente com alguém que, há muito, os cabelos algodoaram-se... Mas, pensando bem, à essa altura da existência, certamente era uma pessoa que já devia granjear a resignação filosófica do conformismo, e, nas conversas, não dava mostras de que era um daqueles velhinhos saudosos que vivia a recolher retalhos do passado para ver se da coleção multicor tecia um feliz simulacro de colcha de vida. Na verdade, era de se crer que, intimamente, somente o assunto da morte o preocupava, e, assim, só esperava partir com saúde, com a salvação de sua alma e a misericórdia de Deus para com seus erros.

─ Olha mãe, que sapão bonito! ─ gritei entusiasmado...

─ “Sapo bonito”! Onde já se viu!... ─ ironizou meu pai.

─ Mas ele está morto! ─ acrescentou o Weber.

O Wagner, com um pedacinho virou ele de costas.

─ Num faça isso, menino! ─ advertiu nosso pai.

─ Mas porque, pai?

─ Se você virar um sapo morto de costas vai atrair chuva, e já choveu demais esse ano!

─ Nossa!

O Seu Anjo riu da brincadeira de nosso pai, e acrescentou...

─ Sapo é um dos melhor bicho da natureza, seu Vart. Ele come tudo esses bichinho que ataca as horta: besouro, gafanhoto, grilo, formiga, cupim... Só perde prá coruja e curiango.

─ Mas é um perigo para os cães. Lá na cidade, já vi cão morrer por morder sapo: ele ficou babando, virando em roda até morrer!

─ É o xixi deles que mata!

─ Mas não é xixi não, Seu Anjo: é um veneno na pele. A água que sai do sapo quando ele é apertado sai de umas bolsas d’água que ele tem no corpo.

─ Essa eu num sabia... Mas o que eu sei é que ele não é bão só pra horta, mas pras plantação de cana tamém ─ um agrônomo que me disse. Ao contrário dos outro sapo, ele consegue vivê muito bem dentro de um canavial, longe da água, e dizem que ele acaba com os besouro e as larva de broca dos canavial.

─ Que ótimo, Seu Anjo!

─ Casa que tem largatixa e sapo por perto, tem pouca barata.

─ Olha só! Acho que vou adotar uns sapos!

─ Eu caço eles pra senhora, mãe!  ─ exultei...

Todos riram.

Quatro filhos, quatro temperamentos

Nelson Menegazzo - 1928-2011
Seu Ângelo era pai de quatro filhos. Eram os filhos do nobre senhor das hortas personalidades dotadas de curiosas caraterísticas psicológicas, como se verá.

Disseram-me que, décadas antes da presente história, os filhos, ainda moços, deixavam-se ficar em casa, em tardes ociosas, retidos pela preguiça e pelo alheamento a tudo ─ estranhamente, o mesmo descaso que prepara os anciãos a se despedirem da vida. Porém, neste dia, instado sobre tal, resignado, não se perturbou com o fato, e penso que se soubesse que o seu próprio fim já lhe acenava ao longe, o fato passariam em brancas nuvens...

*   *   *

Conheci-os pessoalmente poucos anos depois de mudarmos para Usina. Todos, exceto um, moravam na cidade. Eram homenzarrões, como se dizia antigamente, espadaúdos, fortes, que nem pareciam ter sido crias do velho e apoucado seu Ângelo. Quatro personalidades distintas, mas poderíamos dividi-los em duas duplas: uma, de introvertidos, e a outra, o seu oposto. Num perfil rápido, assim os descreveria hoje: a primeira dupla, com o Nelson, o tímido, e Laerte, o sério; a outra: com o Odair, o pacato e risonho, e Armando, o cômico ─ o personagem desse antiga clã da Usina que me ficou mais nítida na memória.

Naquela Araras provinciana da virada das décadas de 60/70, eram vistos com frequência pelo centro da cidade  eram muito populares e passando pelas ruas centrais da cidade, não havia quem não os cumprimentasse. 

O Laerte, 1936-1991,
goleiro em sua juventude.
Na primeira dupla, o Laerte, caladão e “sério”, pouco dado à risos, frequente ensimesmado, “na sua” , “sem boca para nada” — a impressão que me deixou na época O outro, o Nelson, também de não muita fala, fala de pouco volume, cabisbaixo, sorriso tímido, pai do Jair — o  “Lemão” —, amigo nosso dos tempos de ginásio, e que, na época, morava no já citado bairro rural conhecido como Verde. Um caso ocorrido com o Nelson, que quase lhe custou a vida: certa vez, trabalhando com um trator, caiu dentro do tanque da Usina, mas escapou ileso.

Odair Menegazzo - 1940-2004
Na segunda dupla, o Odair, o amigo de todos, pacato feito boi manso, sorriso leve, sorria por um nada qualquer, homem que, ao final da vida, abandonou tudo e foi viver feito andarilho pelas ruas da região central da cidade, fase em que se tornou ainda mais bem-quisto por todos. Por esta “nova” vida, foi alçado à categoria social de tipo popular de rua, e por isso mesmo, passou a figurar em livro meu que trata destes curiosos personagens das ruas da Araras antiga. Mas o Armando, ah, o Armando!... era um caso à parte: extremamente falante, amicíssimo dos botequeiros, riso fácil, fazia rir — a gargalhada mais gostosa que se possa imaginar — riam de sua gargalhada, boca larga, poucos dentes, meio murcha, mas gargalhada contagiante, frouxa, de desopilar. Cômico por natureza, humor de caras e bocas, soube de histórias hilárias suas, e vivenciei pelo menos uma delas em sua companhia.

Vi-o pela primeira vez numa lanchonete. Vendia bebidas para os bares do centro da cidade. Neste dia, estando naquela lanchonete na esquina das ruas Nunes Machado e Cristóvão Colombo — a antiga lanchonete Chaparral de minha infância —, vi da porta um homem se aproximando de bicicleta. Vinha numa Barra Circular Monark já bastante surrada, selim almofadado com franjas, campainha de metal cromado que tocava à exaustão. Feito menino, vinha pedalando oscilante e rápido, óculos de aros grossos com um lado faltando uma lente, o dedão na lingueta da campainha, o ring-ring soando áspero, e a língua propriamente dita colocada de lado para fora da boca, tal e qual a lingueta da campainha!... Impossível não rir. Mas quem era aquele curioso sujeito?

— Eu corto o saco se não for o Armando Menegazzo! — disse rindo o sisudo Aldo Denardi, o dono do bar.

E era! Só podia ser...

— O Linguinha do Chico Anísio perde feio para esse aí!...

O tal de Armando estacionou a magrela, desceu e se dirigiu ao dono do bar.

— Bom diaaaaa!

— Bom dia, Armandão!

— O que vai querer hoje, seu Aldo?

O Aldo Denardi — um dos comerciantes mais sérios de Araras, aquele do qual arrancar um sorriso, por mais pequeno que fosse, era uma verdadeira façanha. Só o Armando mesmo...

Mas acontece — soube ali na hora — que o Armando não usava caderneta para anotar os pedidos— gravava tudo mentalmente, nunca errava — tudo o que gravava na “cachola” era entregue com precisão, sem mais nem menos. Estranhamente, ao modo dos quitandeiros portugueses, levava uma caneta no vão de uma das orelhas. Curioso, perguntei-lhe:

— Mas para que esta caneta aí na orelha, seu Armando, se o senhor não escreve e nem carrega caderneta?

— É para fazer conta de cabeça...

O bar veio abaixo...

Era apenas um aperitivo, a “abrideira” para contar outras histórias que faziam a alegria dos botequeiros.

— Ocê é fio de quem, moço? Parece que eu te conheço?

— Sou o Wenilton, filho do Walter Daltro.

Após uma sonora gargalhada, ele falou:

— O Vartão, o goleirão da Associação?!

— Conhece ele, então?

— Viche! Ô, se conheço! Conheço o Vart desde os tempo de Usina Parmêra! Nasci e morei lá por um tempão antes de vir prá cidade. Ele tá criano curió e cachorro ainda... mas como é teu nome mesmo, moço?

— Wenilton.

— Vinirto?! Que nome!

— Procê ver...

— Mas então, ele tá criano curió e cachorro ainda, Vinirto?

— Cachorros sim, curió não.

— Ué!... mas curió dá mais dinheiro que cachorro!

— Procê ver... mas, me diga, Armando, quem são seus pais? Eles ainda moram lá na Usina?

— Os dois já facelero. Meu pai era o Seu Anjo, aquele que cuidava das horta lá da “colônia de baixo”. Conheceu ele?

— Nossa, você é filho do Seu Anjo! Eu conheci ele sim, logo que nós mudamos para lá!

— Então ocê conhece meus irmãos: o Nerso, o Odair e o Laerte?

— O Nelson não, mas o Odair e o Laerte sim. Quando era menino, sempre via os dois lá no benefício do meu padrinho, o Virgílio Buzon!

— O Buzão! Ôôôô, gente boa!

— Mas por onde andam o Odair e o Laerte, que eu não vi mais?

— O Laerte, sempre quietão e na dele, tá por aí, mas também faz tempo que eu não vejo.

— E o Odair?

— O Odair?!... — o homem se entusiasmou — ...olha, Vinirto, eu vendo bebida, e o Odair bebe...

— Há, há, há!...

Anotações mentais em dia, pedaladas afoitas, um olho ao vento, língua de fora sinalizando que ia sair, dedão na lingueta, campainha soando, novos risos no ar, lá se foi ele para eu nunca mais voltar à vê-lo!...

─ Ring-ring-ring...


No encalço do Inverno

Isnaldo, Wenilton e Walmir Caetano,
na cachoeirinha da comporta, 19-1-1975
Seu Ângelo. Tinha 72 anos quando o conhecemos; pelos padrões modernos, parecia ser mais idoso do que era. Ainda assim, a vida lhe concedeu mais cinco anos de lambuja para poder continuar a carpir, plantar, cuidar, aguar, adubar, colher, amar a terra..

Assim, ali, na serenidade daquela beleza rústica, viveu seu dia a dia sentindo se aproximar o inverno da velhice, mas existindo com a mesma resignação com que viu passar os anseios da mocidade, e com que havia atravessado as vicissitudes da idade viril. Parecia uma daquelas pessoas que se alguma vez pecara foi por excesso de bondade. Era um desterrado do mundo dos homens, da faina dos trabalhadores comuns: trabalhava sozinho e incógnito, com sua discreta sabedoria ― em três simples preceitos encerrava toda a sua filosofia de vida: resignação, trabalho e bondade. 

─ ...ih, seu Vart: logo, logo eu num vou precisá respeitá mais ninguém...

─ Nossa, Seu Anjo, como assim?

─ Desde menino, me ensinaro que eu tinha que respeitá os mais véio. Então, logo, logo eu vou tá fazeno 80 anos, e praticamente, num vou precisá respeitá mais ninguém, num é memo?...

─ Há, há, há!...

─ E a tua esposa, seu Ângelo?

─ Ah, a minha querida dona Estela!... À essas horas, dona Lourdes, ela deve tá lavano roupa.

─ Pelo jeito, o senhor gosta muito dela.

O homem caprichou no falar, e falou com ternura...

─ Ela é minha melhor metade, dona Lourdes! Mais anda muito triste, deprimida, dorme muito, e isso mexe cumigo dimais, que eu até penso em largá tudo e fica do lado dela... Os fio já acompanha ela e passam o dia dormindo!...

― Quatro homão daqueles e não trabalham, seu Ângelo?!

— Pro senhor vê, mas...

─ Mãe, vem cá rapidinho, por favor! ─ gritou o Wagner, interrompendo a conversa. Nossa mãe se afastou.

─ Com licença, seu Ângelo.

─ À vontade, dona Lourdes.

─ E quantos anos vocês tem de casados, Seu Anjo?

─ Já vai prá mais de meio século, seu Vart!

─ É tempo prá danar! Mas nenhuma briga séria neste meio tempo?

─ Nada de mais sério, nem memo esse tal de adultério.

─ Adultério é um problema sério, Seu Anjo!

─ Eu sei, seu Vart ─ e com uma das mãos em concha, o velho horticultor acrescentou maliciosamente: Eu penso cá c'os meus botão que a muié da gente é que nem chuchu: não tem muito gosto, mas se a gente deixá ela subi a cerca, o vizinho vem e come!...

— Há, há, há!... Boa essa, seu Anjo, mas antes esse tipo de chuchu fosse que nem a laranja madura do Ataulfo Alves, mas laranja com marimbondo no pé!...

— Há, há, há!... Esse é boa também, seu Vart!

─ E tua esposa, seu Ângelo, ainda é viva, né?

─ Graças à Deus, dona Lourdes! Vivê sozinho é muito ruim! Um óme sem uma companhêra é como uma tesoura com um só lado, num é, dona Lourdes?

─ Ih, ih, ih... verdade!


O Caminho de São Tiago

A cabaninha de chuchus...
Um dia, ali pelo meio da tarde, depois de lançar um olhar derradeiro ao Sol, que a meio caminho do poente parecia mostrar uma pálida face de convalescente, sentiu estranho o corpo. Quem o visse, notaria que a camisa parda caia-lhe inerte como se estivesse pendurada num cabide qualquer. Idem a conformação da cabeça ─ algo inclinada para a frente ─ que parecia não ser perfeitamente sustentada por um pescoço então frágil. Assim, fora se estender à sombra da choça de chuchus querendo se recompor, indisposição que acreditava ser um chilique qualquer, coisa passageira.

Na verdade, disseram, depois, que já havia meses que ele entrara num declínio gradual, num cansaço estafante e inexplicado, horas em que mal podia suster a bilha quando voltava da mina d’água ─ as alavancas incansáveis do braços arriavam sem um porquê, mais parco de gestos, então.

─ Seu Anjo!... Ô, Seu Anjo!...

Do fundo da choça rude, veio uma voz quase inaudível:

─ Quem me chama, aqui neste canto esquecido a estas horas?

─ O senhor está bem, Seu Anjo?

Com o olhar manso, a fala rouca e vacilante aliada a um complacente sorriso, ele falou:

─ Nada demais, meu fio: só uma lezeira passagêra.

*   *   *

No dia seguinte ─ outra tarde calorenta, farto e extenuado, Ângelo deu um suspiro e se deixou cair sobre leito de capins com o qual forrara o chão duro da cabana. E ali ficou, resguardado contra as insolações extenuantes; mas estava com os cabelos empastados de suor, com a face como que macerada e que lividez estranha se espalhava por seu rosto, e estaria branco como um lenço não fosse os sinais de insolação. Enfim, era a vez de se entregar e se render aquele que dizia que quem nega ao seu próprio corpo uma alimentação farta e saudável evitando as boas coisas da terra desagrada ao próprio bom Deus. Foi sempre desse modo, desde que decidiu fazer sua horta: por longos anos se desdobrou entre os homens e as verduras, e assim foi, vertendo saúde e as bondades de seu puro coração. Porém, não, amigos, não era a saúde que ia mal, mas sim o próprio peso da idade já avançada que vinha finalmente cobrar seus tributos...

*   *   *

O Caminho de São Tiago, acima do barracão de açúcar.
Enfim, noutra tarde, mas não tão calorenta como dias antes, estando a descansar num cepo diante de sua cabana, Ângelo viu-se invadido novamente por uma insondável e estranha sensação que o deixara extenuado como nunca. Porém, o ar estava liso e diáfano ─ provavelmente meados de primavera (mas parecia outono) ─, um dia de belíssimo céu de brigadeiro ─ céu de um azul impossível! ─, um daqueles deslumbrantes dias daqueles turquesas e ultramares puríssimos só encontrados anos depois nas fotos polarizadas do Klaus Mitteldorf ― o “azul celestial” jamais pintado dos velhos quadros do inspirado Frei Lippo, o azul que rivalizava até mesmo com os céus de Nice, tão bem retratados por Matisse. Num dado instante, erguendo a cabeça para se recompor, avistou algo muito bonito no céu se estirando à distância, bem lá nos fundos do horizonte
O Caminho de São Tiago visto dos altos do sítio da Barbica.

além da Usina, algo que se estendia silenciosamente desde o lado Sudeste, passando por cima da linha do casario da colônia de baixo e dos eucaliptais ao fundo, indo findar lá do lado Sudoeste, sob as bandas da fazenda Santa Escolástica.

Ele pensou consigo: “Se eu tivesse lá no canto de muro da casa do Seu Paulo, acho poderia ver mió essa coisa linda no céu, e sabê se é nuvem ou sabe-se lá o quê.”

(Ah, Seu Anjo, Seu Anjo, meu querido ancião! E não é que o senhor se lembrou do o meu recanto querido, o “canto de muro”, lugar onde tantas vezes pude ver, em dias de céu azulíssimo, surgindo lá de um radiante do lado Sudoeste, imensos fiapos de nuvens cirros que vinham se estender por sobre a Usina! Tens bom gosto, meu velho!)

O Flamboyant e o barracão de açúcar ao fundo. Nas
bicicletas, os irmãos Marcos e Isnaldo Coutinho Pereira.
E assim, abismado, o velho horticultor ficou olhando fixamente aquela aparição celestial, tão linda como igual nunca vira. Novamente pensou: “Será que o Seu Paulo está veno essa beleza aí lá de sua casa? Coitado, ele tamém tá preocupado e me disse dias atrás que tem andado tão fraco quanto eu!... Mais se ele tiver sentado lá no banco debaixo do Flamboyant, acho que vai tá veno sim. Deus permita!”

A aparição teimava em não desaparecer, e parecia cada vez ficar mais larga, mas larga no lado Leste e se afunilando no extremo oposto, tal como uma passarela ou escada que se estendesse para o infinito. Olhando, olhando, firmando os olhos, eles começaram a turvar-se, e a imagem, como num delírio, pareceu estender-se diante de si... súbito, como que tendo um insight, murmurou consigo:

─ Mas, meu Deus, isso me parece um sinal divino!... Será que eu tô veno coisa?!... Oh, Deus, será a minha hora que chegô e Deus me mostrá o caminho, a Escada de Jacó!... Não, não, é o Caminho de São Tiago, é o Caminho de São Tiago, meu Deus!

Tenho a impressão que o velho e bom Godofredo Rangels pareceu se ocupar dele  neste momento:

“E, ainda ofegante da empinada ladeira da horta, sentou-se no estrado, onde se pôs a arrancar rabos-de-burro e amores-secos aderidos à calça ensopado de orvalho. (...) A cabeça azoinada achou-se bem naquele aconchego de paina macia e a alma dilatou-se satisfeita, predisposta a cair na beatitude de um longo cochilo.”

Uma súbita lufada de vento encrespou as folhas do chuchuzal ─ era um pequeno redemoinho, que veio turbilhonando e levantando poeira fina e folhas secas pelo chão. Naquele estado de irrealidade e sonho, o nosso bom personagem pareceu ser transportando para um outro lugar pelo vórtice ligeiro que a tudo revirava.

E ali, sozinho e esquecido em sua pequena cabana, Ângelo cerrara calmamente as pálpebras ocultando os olhos baços, e como convém aos anjos terrestres, teria adormecido certamente, e do sono da vida passara sutilmente ao sono eterno ─ fechou os olhos bem-aventurados para abri-los na luz de outras paragens mais tranquilas. Naquela encosta de morro, pela última vez, ele derramou seu olhar, deixando atrás de si uma terra a ser lavrada, e amada, e seu espírito, já tendo cumprido sua nobre missão, tendo ─ como convém a um bom trabalhador ─, quitado o derradeiro tributo pela existência ─ partira, finda a sua nobre obra na Terra.

No final da tardinha, encontraram-no deitado no aconchego de sua rústica cabana ─ na face, um ar sereno de muito satisfeito de si mesmo...

─ Seu Anjo!... Ô, Seu Anjo!...

Creram que dormisse profundamente, mas...

*   *   *

Dona Estela, a citada esposa do seu Ângelo, o deixara pouco antes do início do Outono de 1971, no dia 2 de março. Ele, nascido à 24 de outubro de 1895, deixou este mundo poucos meses depois dela, justamente como convém à um horticultor: no início da quadra que rimava com seu espírito, a Primavera, ou seja, em 23 de setembro.


Um homem livre 

Ângelo. Seu nome e sua imagem, ligado intima e enraizadamente à história da Usina ─ e houve quem dissesse que com seu desenlace morria uma época ─, teimam em não abandonar a minha lembrança, e bailam na memória do adulto que sou, principalmente quando veja uma horta bem-cuidada.

Dos Menegazzo na Usina, nada mais restara: nem terras, nem pais, nem filhos, descendentes, parentes ─ nada. Nem mesmo a bela cabaninha de chuchus, que, abandonada, morreram-lhe as ramas, apodreceram os mourões ― ruíra de todo, sendo reabsorvida pela terra. A cabaninha!... Poderíamos ter se apoderado dela após o falecimento do seu Ângelo, coisa que, estranhamente, não passou pela cabeça de nenhum de nós. Infelizmente.

O aviador Saint Exupéry escreveu certa vez que “Um homem é livre quando está com uma enxada trabalhando na terra”, e depois se indagou: “(...) fico pensando:  quem vai podar minhas árvores quando Deus me levar?”.

─ Mãe, é verdade que o Seu Anjo morreu?

─ Sim, é verdade, infelizmente.

─ E agora, mãe, o que vai ser da horta dele?

─ Outras pessoas irão cuidar dela. Fique tranquilo que São Fiacre ─ o santo Padroeiro dos Agricultores ─ a estas horas já colocou ele para cuidar das hortas lá do céu.

─ São Fiacre?! Que nome esquisito, mãe!

─ Agora, Wenilton, ele está a cultivar hortas nos campos da eternidade...


─ Bonitas essas palavras, mãe!


A luneta do bem

Dos altos do Restilo, de onde eu tinha uma visão da horta e suas plantações, através das lentes de minha luneta, já não pude vê-lo trabalhando, pois quando fui presentado com ela ao final de 1972, como vimos, ele havia falecido pouco mais de um ano antes. Partira logo atrás do Inverno, justamente aquela estação que pretendia transpor nos tratos culturais de suas queridas hortaliças. 

Quem me dera que, mesmo depois de morto, eu pudesse encontrá-lo de alguma maneira! Oxalá eu pudesse vê-lo através de algum instrumento especial, como a luneta mágica do Macedo... assim, quem sabe eu não veria seu vulto espectral, com a lâmina de aço do seu alfanje reluzindo ao pôr do sol, solitário e quieto, ainda rondando por ali, trabalhando pacientemente, por entre os aceiros dos canteiros, agachado arrancando ervas-daninhas ─ ali com um bambu a derrubar mamões; acolá; catando macaúba pelo chão; mais aqui embaixo, enchendo a purunga na mina; morro acima; adentrando a cabaninha de chuchus... 

Ah, ei-lo lá! Já é noitinha! Daqui, sentado na amurada dos altos do Restilo, eu ainda vejo por uns instantes o seu vulto, alfanje às costas, subindo vagarosamente a trilha do morro entre os matagais, onde uma legião de vaga-lumes pulula e sapos fazem suas doces cantorias... E seu vulto vai sumindo, sumindo... se esvaecendo num espectro vaporoso!... 

Seu Ângelo, Seu Ângelo!... quiçá o teu espírito ainda ronde triste e saudoso pelos matos que invadiram as tuas plantações de outrora, do mesmo modo que meus devaneios hoje me permitem perambular mentalmente estas mesmas paragens tranquilas onde reinavas...


Visto dos altos do Restilo, em foto minha, a horta do seu Ângelo, num final de tarde de 1975. Abaixo, no canto à direita, a bomba d'água.

Mas, ah!... eu já vejo um leitor bem-informado erguendo a mão espalmada a me censurar com algo inusitado: — Péra lá, Wenilton: a tua luneta é astronômica, tem aumento! A luneta do Macedo é um mero óculos! Que história é esta? Está maluco, cara?!

E eu lhe respondo: — Não venha destruir minhas fantasias, seu poço de frigidez! Pouco importa o que é a luneta do Macedo! Lembre-se: ela é uma luneta mágica, tem poderes! Compreende?! 

*   *   *

E, assim, amigos, em meus devaneios eu veria o seu Ângelo, mas através dos poderes da segunda luneta do mágico armênio do Macedo — aquela que só via o lado bom das pessoas...

...mas, e lá vem o meu censor novamente a me importunar: — Oras, Wenilton!... mas era só isso que o velho Seu Anjo tinha para mostrar: o seu lado bom!... 

Bem... nisto ele está certo...

Para novamente usar uma expressão do Fagundes Varella: “Eras a messe de um dourado estio”!

*   *   *

Seu Anjo... homem que, com sua história discreta e particular, representou tão bem a história da própria Usina. E então, era mais do que justo que, para você, meu amigo, eu reservasse um capítulo nestas saudosas memórias, que você, sem dúvida, era um ótimo assunto à procura de um atento autor. Seu Ângelo, Seu Anjo... sim, um anjo de pessoa! Mas, enfim, o que seria desse teu lugar — da sua horta no vale — naqueles tempos sem você? E, igualmente, o que seria deste livro faltando esta tua singela história? Prazer em tê-lo conhecido, velho amigo!

Diga lá, Balthazar de Godoy Moreira:

“Lendo-me os pensamentos, lá do outro mundo, ele com certeza está me sorrindo.”
 
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* Este capítulo faz parte do  Volume 1 - Journey through to the past ― março de 1967 a dezembro de 1968". O livro está em processo de confecção sem prazo para lançamento.


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